sábado, 31 de dezembro de 2011

Tempo



Nota: No início do ano me propus publicar cento e cinquenta textos, hoje estou publicando o centésimo quinquagésimo, portanto, dentro da proposta e com alguns altos e baixos, consegui cumprir a meta. Os artigos, todos de minha lavra, foram distribuídos equitativamente 13 nos meses de 31 dias e 12 nos demais, de modo que no todo representaram um esforço relativamente equânime ao longo do ano. O texto abaixo, “Tempo” nada mais é que um retorno ao tema que já abordei inúmeras vezes e me parece bem adequado a uma reflexão sobre o ano que se encerra. Aproveito para desejar aos meus leitores um ano de 2012 (se o mundo não acabar) bem melhor do que esse que fecha as portas hoje. Boa leitura!

Tempo

É um ente simplesmente imaterial, transcendental até. E sempre foi essa sua característica constante, universal. Ao pensá-lo, perguntamos, muitas vezes, se essa carência de corporalidade, de materialidade, essa intangibilidade, não foi sempre seu traço fundamental que o distingue das coisas palpáveis; desde seu surgimento num suposto big bang, até a eternidade indefinível e inalcançável. Precisamente por essa fugidia característica, poder-se-ia atribuir-lhe quaisquer virtudes ou vícios que a outros entes parecessem aberrantes. A ele, quaisquer rótulos, por mais insólitos e depreciativos que pareçam, se lançam impunemente sem temor de cometer desatinos. O tempo absorve nossos caprichos, impassível e obtuso na sua marcha amoque rumo ao vir a ser. O tempo não existe em virtude de seres pensantes que o definem ou tentam enquadrá-lo em parâmetros humanos, ele simplesmente É. JAIR, Floripa, 16/06/11
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O jogo



Já confessei em texto publicado aqui que sou tímido desde criança, expliquei o que é ser tímido e escrevi o que segue: “Se você morre de medo de falar em público, de declarar seu amor a alguém, de entrar num ambiente iluminado em que não conhece ninguém, torce para não ser notado em lugares abertos, não gosta de ficar nu perto dos outros, procura não atender ao telefone ou transpira ao fazê-lo, você é um tímido. Por outro lado, o isolamento do tímido lhe permite ser mais concentrado, mais introspectivo, mais criativo até, de forma que ao pensar mais e falar menos o tímido tende a errar menos também, porquanto seus ditames são fruto de reflexão mais demorada, mais madura”.
Pois então, como criança tímida, sempre me via em ambientes de adultos nos quais não me “enquadrava”, nos quais, sentado num canto sozinho e sem vontade de conversar com alguém, me via imaginando coisas, observando as pessoas e construindo histórias sobre o que elas eram ou poderiam ser.
Assim, inventei um jogo secreto, o qual eu poderia jogar por horas e horas sem sair do lugar, sem palavras e sem qualquer auxílio externo a não ser a observação das pessoas e minha imaginação que acabou se tornando cada vez mais elaborada. Eu ficava observando as pessoas no ambiente e tentava adivinhar, pelas roupas, adereços e comportamento, pelo que falavam ou pelo que comiam naquele momento, onde moravam, o que faziam normalmente, o que tinham acabado de fazer, qual era o destino delas depois que saíssem dali. Era um exercício de lógica dedutiva à Sherlock Holmes, mas sem crime para solucionar. Pela expressão do rosto, eu podia imaginar qual era o pensamento daquela senhora gorda que olhava a toda hora para o relógio no seu pulso e não parava de fumar; ou o que estava pensando aquele rapaz bem vestido que comia seu sanduíche e, às vezes, sorria para si mesmo como se tivesse ouvido uma boa piada. Como seria a pessoa que a mulher parecia esperar? Eu prestava atenção em frases e restos de conversa dos adultos, enquanto, também, desenvolvi habilidade para leitura labial, de forma que tinha uma colcha de retalho de expressões, frases soltas e assuntos com os quais eu podia tecer histórias as mais variadas e chegar a conclusões as mais fantasiosas.
Todos se tornavam minha matéria prima da qual eu montava minhas estórias. Por exemplo, aquela mulher alta e bem vestida, com vestido justo decotado, que estava sentada à mesa com sua amiga loira e magra, prometia bom material para uma estória cheia de nuances. Aquela mulher esperava por seu amado, que marcara encontro com ela e esquecera, e por isso ela estava intranqüila olhando para a porta, bebericando uma bebida fraca que não saboreava e nem sentia o gosto, estava se sentindo abandonada. E, de tempos em tempos, ela ia até o toalete retocar a maquiagem que se desfazia com suas lágrimas que teimavam de descer furtivas de seus olhos tristes.
No outro lado da sala, o garçom levou outra bebida para o sujeito entediado que parecia desiludido. Certamente sua mulher o havia deixado ele se sentia só e afogava as mágoas no fundo do copo. Seus olhos estavam opacos, sem vida, ele era um homem morto por dentro. E eu continuo em frente a tecer as teias intrincadas das vidas alheias. O jovem amante que levou a mulher daquele homem é forte, bronzeado e alto, além de ter dentes bons que lhe dão um sorriso de propaganda de creme dental. Aquele marido não teria nenhuma chance mesmo!
Tornei-me uma espécie de vampiro de histórias pessoais, o tempo e a imaginação me forneceram os instrumentos capazes de elaborar em minúcias os meandros e passagens que cada uma de minhas “vítimas” sofrera ou viria sofrer. Minhas estórias acabaram se transformando em verdadeiras novelas nas quais eu tinha liberdade de juntar dois ou mais personagens e conduzi-los da forma que me parecesse melhor e mais dramática. Também brinquei com a literatura, colocava meus personagens nas estórias de autores conhecidos e dava-lhes chance de viverem novas sensações, amores e aventuras.
É claro que minhas indiscrições envolviam certo risco, se a pessoa que eu observava notava meus olhares inquisitivos, eu sorria com a cara mais inocente do mundo e desviava o olhar. Não era minha intenção constranger ninguém. Na verdade tinha autêntico pavor de ser pego em flagrante nas minhas espiadelas indiscretas e minhas vítimas, ao perceberem, virem tirar satisfação. Mas de qualquer modo, necessito espiar apenas por poucos segundos meus alvos. Meio minuto é suficiente para apanhar aquele instantâneo que me fornecerá material para minhas estórias. Sou um paparazzo de almas, obtenho fotos de alta resolução das quais construo vidas muito mais sofisticadas e interessantes que as existências o mais das vezes medíocres e insípidas daqueles que clico. Se o leitor notou, a narrativa que se fazia com o verbo no passado, no último parágrafo passou para o presente. É que eu não era tímido, eu sou tímido, de modo que o jogo ainda existe, embora, hoje eu jogue muito menos, minhas estórias estão melhores elaboradas mais intrincadas e convincentes que antes, e cheias de detalhes. O jogo continua! JAIR, Floripa, 25/09/11

domingo, 25 de dezembro de 2011

Os Libertos

Palmeira, não mais, e também não menos, que outras cidades também pequenas e também provincianas, sempre teve uma sociedade estratificada: ricos, remediados, pobres e os outros, estes, inqualificáveis, algo assim como os párias da sociedade indiana. A pirâmide social da cidade era um sólido geométrico degenerado, vértice fino como agulha, terço superior alongado, corpo robusto e base achatada. Ou seja, pouquíssimos muito ricos, alguns remediados, muitos pobres e outros vergando sob o peso monumental daquela Quéops nas costas raquíticas.
Mas não é de demografia que quero falar, é sobre aqueles elementos menos citados quando se fala da história da cidade. Aqueles indivíduos, geralmente oriundos da base da pirâmide, que pela sua opção de vida, geralmente opção pela liberdade, pela livre iniciativa de viver sem muitas regras, são considerados marginais.
Já tive oportunidade de falar sobre alguns desses párias sociais como, Pé-de-bicho, Juvenal Sapo e Bacilo, este mereceu uma referência especial porque se deixou imolar em nome de um amor não correspondido. Hoje quero lembrar de outros dois exemplares marginais que não deixaram rastros.
É quase regra nessas cidades pequenas, talvez nas grandes também, que existam beatos e beatas exacerbados, inofensivos e ativos que sobressaem por sua dedicação aos ritos religiosos, não importa quais. No velho burgo palmeirense, Bom Luiz e Ximbica, dois marginais religiosos, disputavam a liderança na dedicação que mostravam às suas causas.
Bom Luiz, ou Bão Luiz como o vulgo o chamava, cujo nome de batismo era Luiz, mas cujo sobrenome ninguém sabia, talvez nem ele mesmo, era conhecido pela sua obsessão pelo puro e simples peripatetismo militante. Costuma andar sem parar sequer para um descanso ou gole d’água, durante muitas horas, algo assim como das oito da manhã até as cinco da tarde. Caminhava de Palmeira a uma das localidades próximas, São João do Triunfo, Porto Amazonas, Mandaçaia ou outra qualquer, não importava, a passos largos rezando em voz alta, eram vinte ou trinta quilômetros nos quais Bom Luiz colocava toda a concentração do mundo e parecia que limpava-se de pecados. Era um auto penitente.
Já, o outro, o Ximbica, tornara-se voluntário dos afazeres da igreja católica e a eles se dedicava em tempo integral, se alguém quisesse encontrá-lo bastava se dirigir à igreja e lá ele estava. Ximbica era o que se costuma chamar de baixinho, talvez um metro cinquenta ou menos, quase anão, mas tinha energia de gente grande estava sempre ativo e pronto para ajudar os padres,
O que tornava essas duas insólitas figuras dignas afamadas nos círculos palmeirenses, era a disputa ferrenha para carregar a cruz nos enterros que eram feitos a pé naquele tempo. Quando morria um morador da cidade, sem que ninguém os avisasse ou convidasse, os dois apareciam no velório, que lá era chamado de guardamento, e o que chegava primeiro se apossava da cruz e não largava mais. No ato de traslado do corpo até o cemitério, era costume que um condutor fosse à frente do cortejo conduzindo uma cruz, e assim aquele que havia se apossado dela primeiro seria esse condutor. O cômico da situação é que, algumas vezes, ambos, Ximbica e Bão Luiz, chegavam ao mesmo tempo ao guardamento e daí o pau comia. Não foram pouca as vezes que eles chegaram às vias de fato como se dizia. Chegava-se a dizer que alguns gozadores comunicavam a morte de alguém a ambos ao mesmo tempo para que sua chegada ao local do defunto se fizesse simultaneamente de modo que houvesse conflito.
Pois é, corria a vidinha dos dois beatos assim, até que um dia ambos foram encontrados mortos no cemitério. Mistério. Nem tanto, no dia anterior houvera um enterro em que ambos disputaram a cruz como sempre. Parece que Ximbica ganhou, mas Luiz não se conformou. Depois que o falecido desceu à cova, foi devidamente coberto de terra e os acompanhantes se retiraram do cemitério, Ximbica, como era seu costume, ficou mais um pouco para ter certeza que tudo estava nos conformes. Foi nessa hora, deduziram as autoridades, que Bão Luiz chegou para tirar satisfação e eles entraram em luta corporal. Cada um muniu-se de uma cruz de madeira, das que abundavam naquele cemitério, e a agressão tomou vulto. Ambos conseguiram ferir um ao outro com gravidade na cabeça e os dois caíram inertes no chão onde morreram dos ferimentos. Acabava assim a vida de dois “libertos”, dois seres que não se enquadravam e que viveram suas vidas sem peias. Tragicamente um rebentara a cabeça do outro com uma cruz, símbolo de suas discórdias durante suas vidas. Agora, os dois que haviam sido “libertos” durante a vida, haviam escolhido de livre vontade a forma de morrer, continuaram usufruindo sua liberdade na eternidade. Os enterros em Palmeira nunca mais foram os mesmos desde então, inclusive o enterro duplo dos dois rivais que não teve quem levasse a cruz. JAIR, Floripa, 01/12/11.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Estirpe de guerra



No princípio, quando os primeiros povos se organizaram em aldeias e clãs, os homens deram início às guerras que, quase sempre, tinham como objetivo conquistas, sejam territoriais ou de fontes de recursos. Contudo, a história registra que as guerras eram empreendidas por elites masculinas, nunca pela massa amorfa de pessoas comuns ou por mulheres. Guerreiros, cavaleiros, samurais, nobres e outras denominações seriam os que terçariam armas contra os inimigos, aos demais restava apenas “torcer” pelos seus.
Para os não-guerreiros – os camponeses, por exemplo, a guerra podia ser encarada como uma praga mortal igual à peste ou a varíola. Mas, para os guerreiros, ela era a própria essência da vida, de uma vida boa e aventurosa, da qual mulheres e camponeses estavam excluídos naturalmente. Na luta, o guerreiro tinha aventura, companheirismo, emoções violentas, heroísmo, disputas, provas de masculinidade, saques e experiências novas e a possibilidade de conseguir uma morte gloriosa que lhe concederia fama e reconhecimento, ainda que, obviamente, post mortem. Entre uma guerra e outra, o guerreiro mantinha vivos os eventos passados através de disputas esportivas, as chamadas justas, que representavam as batalhas, revivendo-as em duelos e torneios e comemorando-as com desfiles que lembravam vitórias. Rituais que tinham a finalidade de manter aquele elã tão presente nas batalhas. Os guerreiros de elite de outros tempos, certamente concordariam com as palavras de um jovem oficial alemão, escritas logo depois do fim da primeira guerra: “Vieram nos avisar que a guerra tinha acabado. Achamos graça. Nós somos a guerra”.
Ao colocar todos os guerreiros no mesmo saco como uma elite que se destacava da gentalha, estamos incluindo nela grandes diferenças culturais e históricas. Para falar só da tradição européia de guerreiros, lembremos que seus conceitos de guerreiros incluíam tanto os parrudos homens armados da idade média quanto os aristocratas almofadinhas de uma época posterior. Incluímos aquele cavaleiro que lutava num estilo mais ou menos indisciplinado e individualista, e também o oficial de um exército enorme e burocratizado, que nunca deve ter lutado, mas que comandava um grande número de subalternos que, efetivamente, enfrentava o inimigo no campo de batalha. O conceito inclui também os mercenários que lutavam para qualquer príncipe que lhes pagassem um soldo e os idealistas que lutavam por um deus e, posteriormente, por uma pátria ou país. Inclui ainda homens que dificilmente poderiam integrar uma elite: cavaleiros pobres sem terras e cuja única opção para obtê-las seria a guerra.
Se existe um pretexto para generalizar as elites guerreiras, é que elas mesmas fazem essa generalização. O general MacArthur, estereótipo do guerreiro moderno, costumava dizer-se descendente de uma “longa linhagem cinza” que remontava a centenas de anos. Ele dizia preferir terçar armas corpo a corpo com o inimigo no campo, a comandar homens para fazê-lo. No filme Forrest Gump, temos o mais radical exemplo do guerreiro consumado, Tenente Dan Taylor (Gary Sinise). Quando ferido de morte no campo de batalha no Vietnã, recusa-se a ser evacuado para a salvação, evoca todos seus antecedentes que morreram em guerras anteriores. Ele queria morrer em glória, coisa que lhe foi negada, porquanto Forrest o conduz nos ombros e o salva. Taylor é uma versão extremada de MacArthur. Para um guerreiro, a idéia que uma estirpe guerreira se estende por milhares de anos não chega ser uma abstração. O general Patton achava essa idéia bem real: sua família teve várias gerações de militares famosos; quando criança ele acreditava ser uma reencarnação de heróis mortos, tanto confederados como vikings.
Patton certamente é um exemplo exagerado, mas os guerreiros de elite geralmente são estimulados a se incluir numa estirpe guerreira supranacional. O Salão Washington, em West Point, recebe os cadetes com um enorme mural onde se lê: “São mais de dois mil anos de proezas militares em meio a espadas, flechas, mosquetes, máscaras de gás, estratégias de cerco, elefantes; Ciro, na Babilônia; Guilherme, em Hastings; Meade em Gettisburg; Joffre, no Marne”.
É inegável que as tradições guerreiras cumprem seu papel de gestar guerreiros em série de uma mesma família ou clã, contudo, quando não é possível estabelecer essa correlação, costuma-se usar a imaginação. Os prussianos costumavam dizer-se herdeiros das artes bélicas dos espartanos e assírios. O general MacArthur, discursando para cadetes de West Point, citou uma série fantasmagórica de guerreiros americanos para servirem de alter ego aos jovens. Dizia que se os cadetes algum dia deixassem de cumprir seus deveres para com o país, um milhão de fantasmas de uniforme verde, cinza, azul e cáqui, levantariam de seus túmulos e suas vozes ecoariam três palavras: dever, honra e pátria. Mas, em matéria de imaginação, nada se compara a “arianologia” alemã que procurava remontar a linhagem étnica e espiritual da Wehrmacht a milhares de anos, chegando aos bandos de homens armados da pré-história indo-europeia.
Grande parte das castas guerreiras tanto do ocidente como do oriente se manteve durante anos como uma elite contínua de sangue, até chegar à época das armas de fogo. Agora não era o mais bravo, o mais destemido que contava, era o mais bem armado.
A guerra moderna tornou-se evento mortífero “por procuração”, quanto mais letais as armas se tornaram, menos envolvimento do guerreiro, este pode ser um general que simbolicamente aperta um botão a milhares de quilômetros do fronte e mata batalhões de inimigos. O infante não é mais o peão de elite que enfrenta um seu igual olho no olho, ele pode estar a centenas de metros disparando seu fuzil de precisão e apenas vislumbra o inimigo, quando muito. A guerra pode até dissociar-se do sangue, as bombas nucleares volatizam os corpos das pessoas não deixando rastros.
Contudo, mesmo inexistindo o real cheiro de sangue, mesmo que aviadores e comandantes de tanques ultra sofisticados, apenas “joguem videogame” em batalhas virtuais mortíferas, os guerreiros ainda são uma elite que vê na guerra um meio de vida - e de morte também - perfeitamente justificável pelo qual vale a pena dedicar seus melhores anos de juventude e seus melhores e mais profícuos esforços físicos e intelectuais. Patriotismo, ideologias e justificativas morais, são apenas pretextos que os verdadeiros guerreiros usam para explicar porque vão matar gente que não conhecem em um país distante e estranho. No tempo atual, quem mais encarna a fiel definição de uma estirpe guerreira, são os soldados de elite americanos: Seals, Rangers e Ghost Warriors. Mas estes merecem outro texto. JAIR, Floripa, 03/01/11.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Borsalino




Certos bens duráveis, por sua qualidade, durabilidade, classe, preço ou estilo, têm tendência a se tornar clássicos, o que quer dizer que mesmo o passar do tempo não os tira de circulação ou não consegue sucedâneos que os tornem obsoletos ou ultrapassados. Assim é com marcas de carros, por exemplo, quando se quer dar ênfase a excelência de um carro acima de comparações cita-se o Rolls Royce. Não há necessidade de se conhecer as minúcias que fazem dessa marca a referência mundial em matéria de carro, basta dizer, tal coisa é o Rolls Royce de sua categoria. Similarmente as motos também têm uma referência famosa, Harley Davidson. Há quem diga que existem motocas, motos, motocicletas e Harley Davidson, esta está tão acima das outras que não há como comparar. Relógios mecânicos também têm seu clássico, os relógios suíços Ômega, uma máquina elegante, precisa e bem acabada que foi must antes do advento dos relógios eletrônicos de quartzo. Quem tem um Ômega sabe do que estou falando.
No caso de indumentárias, adornos corporais e perfumes é óbvio que também, existem “clássicos”, só que estes estão mais relacionados ao nome do estilista que lançou a roupa ou adereço. Dior, Madame Coco Channel, Valentino, Cartier, Kenzo e outros famosos dão o tom do que é especial na alta costura, jóias e enfeites, aliás, alta costura já se refere aos grandes estilistas. Ainda nesta área temos um chapéu clássico, o Borsalino. O senhor Giuseppe Borsalino, nascido em 1834 na cidade de Alexandria, Cecília, aprendeu a arte de fabricar chapéus na França em 1850. Voltou para sua terra e montou a fábrica Borsalino de chapéus. Segundo aqueles que entendem, entre eles o ex político Paulo Brossard, o Borsalino é mais do que um simples chapéu, é uma obra de arte. É feito à mão e escovado centenas de vezes até se tornar uma peça única de acabamento impecável. É confeccionado com feltro feito de pêlos de coelhos angorá de uma variedade só encontrada no sul da França. Começou com gangsteres da Cecília, depois os marginais de alto coturno de Chicago adotaram o Borsalino, entendia-se que roubar e matar não eximia o perpetrador de ostentar uma certa classe. Tão integrado foi o chapéu aos gangsteres, que estes eram chamados de Borsalino na Itália.
Um Borsalino está para os demais chapéus assim como o Rolls Royce está para os outros carros, O Borsalino é o Harley Davidson dos chapéus. Muitos acreditam que se trata da mais notável cobertura para cabeças masculinas que já existiu no Planeta.
Por que estou elogiando um adereço que nunca usei e sequer conheço? Pois é, nas relações com nossos semelhantes, sejam relações de amizade, parentesco, profissionais ou ditadas pelas circunstâncias, nós, o mais das vezes involuntariamente, costumamos classificar as pessoas as quais por dever de ofício ou não, nos são próximas. Essa classificação costuma ter um viés de qualidade, isto é, nos perguntamos quanto confiável é tal pessoa, quanto leal ou honesta pode ser etc. Nada diferente do que fazemos ao comprar um sapato, por exemplo. Se vamos optar pela compra, queremos saber se é confortável, durável, elegante e outros atributos. As pessoas não são coisas, mas nos passam certas impressões que nos agradam ou não.
Então, com relação às relações pessoais, existe o que os experts chamam de “teste do Borsalino”. Dizem que existe um teste para revelar se um chapéu é um autêntico Borsalino ou apenas uma imitação desprezível. O teste do chapéu verdadeiro consiste em enrolá-lo como um cilindro, transformá-lo num tubo bem fino e passá-lo por uma aliança de casamento. Se ele sair dessa prova sem marcas permanentes, se voltar à forma original, se a experiência não danificá-lo, então é um Borsalino original.
Serão verdadeiros amigos aqueles que passarem galhardamente pelo teste do Borsalino. Claro que o teste dos amigos é apenas virtual, mas não deixa de ser extremamente rigoroso, e pouquíssimos são aqueles que conseguem passar. Lembrando que o teste da amizade resiste ao tempo e à distância. Particularmente, tenho amigos de infância que fico sem vê-los anos, mas quando nos encontramos parece que foi ontem que falamos a última vez. Eles passam pelo teste do Borsalino com louvor. Não descartando meus amigos, que os tenho poucos, acho que quem sempre passará pelo teste será o cachorro. Aliás, ouso dizer que o cachorro é o Borsalino dos seres vivos. JAIR, Floripa, 12/12/11.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O linchamento

A palavra linchamento tem origem no EUA e deriva do nome Lynch, o qual tanto pode ser do coronel Charles Lynch que praticava “justiça” com as próprias mãos durante a guerra da independência, como do capitão William Lynch que mantinha um comitê independente encarregado de manter a ordem no condado de Pittsylvania por volta de 1870. De qualquer forma, independente de onde surgiu o nome, o linchamento traduz um ato de “justiça” sumária, em que a população, com ou sem razão, aplica sanções ao acusado de crime. Esses justiçamentos em geral acabam na morte do acusado.
A história registra que em quase todas as culturas existe ou existiram os linchamentos. Parece que tantos mais atos foram praticados, quanto menos aparatado juridicamente o Estado se encontrava. Embora, paradoxalmente, como se percebe pelo registro histórico, tenha sido praticado intensamente nos EUA até 1960 onde é notório um arcabouço jurídico de monta. Lá também, nos EUA, o linchamento foi amplamente usado como terrorismo racial contra negros e a Klu Klux Klan foi notória linchadora, principalmente nos estados do sul. De qualquer forma, o linchamento o mais das vezes é um ato de multidões inflamadas, e, ainda que quase sempre tenha um viés de espontaneidade, muitas vezes é resultado de incitação por parte de líderes naturais.
O que fica claro, seja o linchamento “justo” ou não, é a irreversibilidade do resultado, porquanto na quase totalidade dos casos o ato resulta em morte. Aqui no Brasil, os linchamentos já apresentaram, sobretudo no século XIX, uma conotação diretamente racial, como nos EUA; contudo, sua motivação foi sendo modificada ao longo do tempo. Atualmente, em nosso país, essas ações violentas aparecem, sobretudo, como uma atitude de combate ao crime e à criminalidade. Seguidamente os meios de comunicação nos mostram os horrores de pessoas linchadas em plena rua por motivos até fúteis.
Recentemente em São Paulo, após passar mal, perder o controle do ônibus que dirigia, atingir três carros, três motos e atropelar um homem de 26 anos, o motorista Edmilson dos Reis Alves foi linchado por cerca de 40 pessoas. O linchamento ocorreu por volta das 23h30 de domingo, 27 de novembro, no Jardim Planalto, zona leste de São Paulo.
Também, assim como os meios de comunicação evoluíram, os atos de linchamento pegaram uma carona nesse comboio e mostraram sua cara adaptada às mídias, mas nem por isso menos nociva ou destrutiva. O caso da Escola Base em março de 1994 é um evento típico. Dois alunos de quatro anos deram a entender a seus pais que haviam sido abusados na escola, pelos diretores. Os pais registraram a queixa na delegacia do Cambuci e a imprensa tomou conhecimento. O delegado que assumiu o caso executou as diligências necessárias na escola e mandou as crianças para o IML. Nada foi constatado na escola e tampouco o IML positivou qualquer violação das crianças. Achando que não havia recebido a atenção necessária, a mãe de uma das crianças entrou em contato com a Rede Globo. Naquela mesma noite, o Jornal Nacional noticiava o acontecido. Mesmo com nada realmente comprovado, todos os grandes veículos de São Paulo abraçaram a denúncia e deram manchete sobre o caso. Notícias que resultaram na depredação da escola e também no linchamento moral dos envolvidos. Estava estabelecido um caso de linchamento midiático que resultou na morte cívica de dois cidadãos que, depois se provou cabalmente, eram inocentes.
Com advento da internet e das redes sociais, o linchamento deu mais um salto qualitativo - um upgrade para falar na linguagem da Web - passou a mostrar uma cara eletrônica. Hoje, 16/12/11, a imprensa tradicional e as redes sociais mostraram com detalhes uma mulher maltratando um cãozinho que acabou morrendo. O ato dantesco, filmado por um vizinho, foi feito na frente de sua filhinha de três anos o que aumentou a indignação da comunidade facebuquiana e dos espectadores dos jornais televisivos. Parece que pelo fato de ser um caso em que a vítima maior é um cão, como os demais casos congêneres neste país, não vai dar em nada. Daí então, as comunidades das redes sociais se mobilizaram e instituíram um linchamento cibernético. Publicaram em várias páginas e saites os dados completos, como nome, fotos, endereço, CPF, RG e telefone da perpetradora. Até onde essa exposição poderá afetar a tranquilidade da mulher não se sabe, mas inaugorou-se um linchamento que, ao contrário dos antecessores, não vai eliminar fisicamente ninguém, mas poderá causar a morte virtual da acusada.
Assim considerado, está estabelecido esta modalidade menos letal de linchamento, que aos olhos de pessoas adeptas da não violência deve aparecer até aceitável. JAIR, Floripa, 16/12/11.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Tico-tico

Ninho: Ovos de Tico-tico (T) e de Chupim (C).

Tico-tico, às vezes confundico com o pardal macho.

Penso que talvez uma das aves mais tipicamente brasileira seja o tico-tico, já mereceu uma composição musical de Zequinha de Abreu, que se tornou icônica na voz de Carmem Miranda e que foi gravada até por Ray Conniff. É uma ave pequena e seu nome de origem guarani deriva de seu canto. Conhecida como jitica no Paraná, na cidade onde nasci sua sobrevivência encontra-se ameaçada pela ocupação humana e pelas ações predatórias do pardal, ave oriunda da Europa, mas que foi importada no tempo do Brasil colônia com o fito de eliminar as pragas que atacavam as lavouras. Não livrou as lavouras das pragas e a própria ave se tornou uma praga que se alimenta dos grãos nas roças, faz o ninho nos beirais das casas de madeira dos colonos, bem como expulsa o tico-tico de seu ambiente. Como quase toda solução “ecológica” sem base científica, a importação de pardais foi um tiro no pé.
Mas quero falar dessa vítima mais comum dos pardais, o tico-tico. O tico-tico é uma ave passeriforme da família Emberizidae. É um dos pássaros mais conhecidos e estimados do Patropi. Vive (ou vivia) em todas as regiões do País, com exceção das áreas florestadas da Amazônia. É migratório no Rio Grande do Sul e Paraná, aparecendo em bandos provavelmente procedentes dos países vizinhos. Encontrado também do México ao Panamá e na maior parte da América do Sul até a Terra do Fogo. Apesar dessa distribuição quase continental, não é mais tão comum vê-lo próximo aos centros urbanos.
Costumam se reproduzir na primavera-verão. Durante a reprodução vivem estritamente aos casais sendo extremamente fiéis a um território, que o macho defende com garra contra a aproximação de outros machos de sua espécie. O ninho, pouco elaborado, é uma tigela aberta e rala, feito de capim seco e raízes, às vezes rematado por dentro com crina e pêlos de animas. A fêmea bota de 2 a 4 ovos, que são de cor verde-amarelado com uma coroa de salpicos avermelhados. O fato de construir seu ninho próximo ao solo facilita a ação de predadores, especialmente cobras, que gostam de se alimentar de seus ovos e filhotes.
Contudo, o que mais torna complicada a reprodução desse passarinho são os chupins. O chupim (Molothrus bonariensis) é uma ave passeriforme da família Icteridae. O chupim não constrói ninhos, é conhecido pelo hábito de colocar seus ovos no ninho de outras aves, para que as mesmas possam chocá-los, criar e alimentar seus filhotes. Por isso, acabou virando sinônimo de aproveitador, costuma-se referir, com certa justiça é bom que se diga, àquele que vive a custa dos outros como chupim. São diversas as espécies parasitadas por essa ave, mas a mais comum de se ver alimentando um filhote de chupim, é o tico-tico, porque os ovos de ambas as aves são muito parecidos, embora os do chupim sejam um pouco maiores. E a jitica é ingênua o suficiente para não notar que os ovos não são dela. O mais perverso dessa estratégia reprodutiva adotada pelos chupins é que os filhotes destes são maiores que os do tico-tico, de forma que a maior parte da comida que os pais tico-tico trazem vai para os chupinzinhos e, muitas vezes, os filhotes do tico-tico morrem de fome. Mais uma vez a simplória jitica é enganada, é vítima dessa tragédia grega com final anunciado.
Dessa forma, o notável passarinho que deu nome a uma revista infanto-juvenil nos anos trinta e quarenta; foi objeto de um dos chorinhos mais populares e tocados do Planeta; e nomeia um tipo de serra manual usada para fazer cortes em curvas de raio bem pequeno, está à mercê de uma ave que só consegue se reproduzir parasitando outra. Será que é válido fazer uma analogia com a faustosa vida dos políticos (chupins) em Brasília, usufruída graças ao povo bisonho (tico-tico) desse país? JAIR, Floripa, 14/12/11.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Sobre tradições





Tradições são características culturais que surgem entre etnias, povos, comunidades, nações ou países e que estão, geralmente, associadas a fatos que se perdem na história, de modo que muitas vezes é relativamente fácil distinguir de onde vieram certos ritos tradicionais, mas extremamente difícil estabelecer com segurança a data que se criou tal e qual costume ou comemoração. Vejamos o que diz o Huaiss a respeito. Tradição: comunicação oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes etc. de geração para geração; herança cultural, legado de crenças, técnicas etc. de uma geração para outra, conjunto dos valores morais, espirituais etc., transmitidos de geração em geração; transmissão de uma notícia ou de um fato; em certas religiões, conjunto de doutrinas essenciais ou dogmas não explicitamente consignados nos escritos sagrados, mas que, reconhecidos e aceitos por sua ortodoxia e autoridade, são, por vezes, usados na interpretação dos mesmos; aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; recordação, memória, eco; tudo o que se pratica por hábito ou costume adquirido.
Pois é, países multiculturais como o Brasil têm miríades de tradições, tanto oriundas dos povos nativos quando dos imigrantes que para aqui vieram com seus costumes e modus vivendi. É fácil verificar na grande extensão territorial, a variedade de ritos folclóricos que se tornaram tradição que estão associados à colonização. Desde danças, música, contos, superstições, mitos e vestuários, tudo mostra o caminho tomado pelos costumes trazidos pelos imigrantes e colonizadores, e quase tudo passa a pertencer ao que se convencionou chamar de costumes regionais.
Assim podemos enumerar várias tradições que aparecem na nossa cultura como: Bumba meu boi (nordeste), Cosme e Damião (Rio de Janeiro), Boi de mamão (Florianópolis), Pilcha (Rio Grande do Sul), Feijoada (quase todo território nacional), Vaquejada (nordeste), Natal (tradição católica), Festa do Chope (Santa Catarina), Churrasco (sul do país) e comidas típicas em cada região, por exemplo.
O que podemos afirmar com segurança é que todas nossas tradições podem ser rastreadas até suas origens em algum canto da Europa medieval, nos costumes tribais de nossos nativos ou em recantos da África negra e até os confins da Ásia. Sem dúvida temos vínculos com todos os povos que nos legaram seus costumes.
Óbvio que outros países têm suas tradições que se referem às suas culturas, nada tendo a ver com as nossas. Assim como o carnaval em Veneza ou as cavalgadas dos Cossacos na Mongólia, os EUA têm um Dia das Bruxas que eles chamam de Halloween, no qual as crianças se vestem com fantasias “assustadoras” e abordam os adultos em suas casas com a expressão trick or treat? Que, numa tradução aproximada seria: “gostosuras ou travessuras?”, e recebem guloseimas em resposta. No Rio de Janeiro existe um costume similar que se refere ao dia de Cosme e Damião que se comemora no dia 27 de setembro, no qual as crianças saem nas vizinhanças pedindo doces também.
O Dia das Bruxas (Halloween) é um evento tradicional e cultural, que ocorre basicamente em países anglo-saxônicos, mas com especial relevância nos Estados Unidos, Canadá, Irlanda e Reino Unido, tendo como base e origem as celebrações dos antigos povos escandinavos que trouxeram o costume para aqueles países. Portanto, essa bobagem de querer importar o Halloween, um folclore de povos nórdicos que se comemora nos EUA, é o exemplo de macaqueação mais estranho que conheço. Nossos costumes nada têm a ver com a cultura escandinava, não fomos colonizados por eles, então querer "forçar" um hábito que não nos diz respeito é estultice da mais alta conta.
Em 2005, foi criado do Dia do Saci, que deve ser comemorado em 31 de outubro. Festas folclóricas ocorrem nesta data em homenagem a este personagem. A data, recém criada, concorre com a forte influência norte-americana em nossa cultura, representada pela festa do Halloween - Dia das Bruxas. Se quisermos andar por aí fantasiados pedindo doces, por que não comemoramos o dia do Saci-Pererê, como alguns estão sugerindo? Ou adotamos a tradição de Cosme Damião em todos os estados do país? Enquanto o Brasil estiver sentindo inveja de tradições alienígenas e tentando imitar o país mais influente, não vai achar o seu caminho. JAIR, Floripa, 16/11/11.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A lei



Aqui no Patropi é quase compulsório admitir que existam leis que “pegam” e outras que “não pegam”, ou seja, quando a lei, como uma vacina, pega, todos, ou a maioria, passam a obedecê-la, e ao contrário quando não pega. Por exemplo, alguém já foi multado por atravessar fora da faixa de pedestres? Pois é, esse é um exemplo de lei que não pegou. Além dessa faceta “contagiosa” das leis, existem outras características que as tornam absurdas ou bizarras, às vezes: a dissociação do corpo da lei com a realidade. No Brasil Central, os alienígenas seriam muito bem-vindos. O município de Barra do Garças, no Mato Grosso, criou por lei, em 1995, uma área de 5 hectares destinada ao pouso de objetos voadores não-identificados. Até o momento não se sabe se os ETs têm conhecimento dessa lei e, se o souberem, estarão dispostos a obedecê-la.
Claro que a idiotice não é privilégio nosso, também em outros países há legislação estulta, de modo que uma lei do estado americano do Tennessee determina que é proibido praticar caça esportiva sobre qualquer veículo em movimento. O regulamento faz exceção para apenas um tipo de animal: as baleias. Detalhe: o Tennessee tem um litoral tão extenso quanto os de Minas Gerais ou Goiás – a praia mais próxima fica a 500 quilômetros.
Assim como se gasta tinta, dinheiro e tempo criando leis sobre pêlo em garrafa, os cidadãos têm criatividade para contorná-las, sempre que elas lhes pareçam esdrúxulas ou despropositadas. O caso a seguir, ainda que possa se assemelhar, não é piada de português, é fato verídico ocorrido com nossos irmãos lusitanos. Em 1937, quando o mandatário português era o ditador de triste memória, Antonio de Oliveira Salazar, começaram a entrar as primeiras importações de isqueiros no país. Para os fumantes passou a ser uma questão de charme e status acender seus cigarros, charutos e cachimbos com aqueles objetos portáteis quase mágicos que, ao toque do polegar, inflamavam de imediato numa chama viva e atraente. Mas a indústria de fósforo do país (Fosforeira Nacional) não gostou do fato de ter um concorrente tão estiloso, moveu os pauzinhos de imediato para limitar o uso dessa ameaça. Foi assim que o presidente português outorgou um decreto-lei determinando que as pessoas precisavam de uma licença para o uso de isqueiros. Essa licença, um pequeno papel oficial emitido pelo governo, custava 10 escudos e deveria ser transportado pelo dono do isqueiro. Em caso de falta da licença, o portador do objeto era multado em 250 escudos. Se este fosse funcionário do governo ou militar, a multa poderia ser elevada para 500 Escudos, uma nota preta para a época.
O dinheiro recolhido pelas multas, tal como da venda de licenças, era repassado à Fosforeira Nacional. Sendo que, no caso das multas, 30% era destinado ao autuante. Essa percentagem poderia ser dividida com o delator, caso esse existisse. Essas diretrizes foram instituídas pelo Decreto-lei 28219 de novembro de 1937.
Até aí tudo bem, ainda que o valor da multa fosse proibitivo para os bolsos dos que queriam portar um simples isqueiro. Em decorrência da lei tal como foi redigida é que a tornou passível de ser burlada e, para isso, nossos irmãos lusos fumantes foram criativos. O legislador, ciente que os isqueiros eram uma realidade que veio para ficar, ao redigir a lei, procurou não proibir o uso do objeto, apenas dificultá-lo, de forma que os fósforos continuassem a ser hegemônicos. No artigo que tratava de regulamentar o uso de isqueiros, o legislador limitou sua utilização sem qualquer tipo de multa apenas à situação “debaixo de telha”, expressão equivalente a “lugares fechados”, como se diz hoje. Bem, o esperto tabagista, descobriu um “jeitinho português” e interpretou literalmente a expressão, passou a usar um caco de telha no bolso, e, sempre que queria acender seu branco cilindrinho cancerígeno, colocava o caco sobre o isqueiro a guisa de cabaninha e acendia seu cigarro sem infringir a lei e sem doer no bolso. Uma lei ridícula exigiu uma ação igualmente ridícula para fraudá-la. Como eu disse, não é uma piada de português, mas parece. Essa lei vigiu até 1970, e até essa data não era nem um pouco estranho ver os portugueses com aquele objeto inusitado - o caco de telha – no bolso. Assim são as leis e assim são os homens, de tal sorte que as primeiras serão “contornadas” pelos segundos se estes não as acharem convenientes. JAIR, Floripa, 07/12/11.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Cicuta



Sócrates, o ex jogador, amava a medicina, tinha grande amor pelo futebol e pelo fato de ter jogado no Corinthians e ter sido capitão da Seleção brasileira. Sócrates, diferente de seu famoso xará heleno, não foi obrigado a tomar veneno, tomou-o de livre e espontânea vontade. Também, diferente do antecessor, não tomou tudo de uma vez, o foi ingerindo aos pouquinhos durante muito tempo, o que teria acabado com seu fígado e, por fim, pondo em risco sua vida. A todos aqueles que lhe diziam que estava num caminho sem volta, costumava lembrar que todos estamos num caminho sem volta, é só uma questão de tempo, tempo aliás, que não nos é dado o direito de saber a duração. Ele era meio filósofo. Copo na mão, argumentos na boca, alguns dizem que Sócrates bebeu a vida. Sua cicuta tinha gosto do melhor uísque, mas era tão fatal quanto àquela que vitimou o ateniense. Pobre doutor, foi-se justamente no dia em que seu Corinthians do coração sagrou-se campeão. Costumam dizer que ele não tinha a humildade de reconsiderar a sua própria fraqueza frente à bebida, quase que se achava incólume aos males de uma cicuta moderna engarrafada em recipientes chamativos e com certidão de nascimento escocesa.
Por que isto aconteceu? Seu jogo inovador para o Corinthians, atraía a multidão de jovens torcedores. Suas qualidades de líder e sua inteligência, também colaboraram para o aumento de sua popularidade. Na época, comandou uma tal de “Democracia Corintiana”, a qual permitia que os jogadores tivessem uma vida desregrada, desde que esses desvios não influenciassem na qualidade de seu jogo, isto é, jogando bem pode soltar a franga que não tem problema. Temendo algum tipo de mudança no time, os cartolas viam em Sócrates um exemplo público e um condutor de jovens em potencial. Então ele viu-se livre para permitir-se beber e fumar sem provocar alarde na multidão corintiana que pagava seu salário de muitos dígitos. Argumentos médicos e de todos aqueles que desejavam que ele se mantivesse abstêmio, não o convenceram que sua saúde corria perigo. Alguns acusaram-no de beber o futebol que jogara, mas isso não se comprovou, quando ele aposentou-se foi por vontade própria e não por imposição de um futebol medíocre. Aposentado, exerceu o ofício da medicina e não se tem notícia que tenha deixado a desejar como médico. Consta que foi tão bom doutor como foi jogador. Apenas a “cicuta”, pode ter abreviado sua vida como já havia feito com o ilustre filósofo grego. Paz Magrão, assista daí as alegrias do seu Timão. JAIR, 05/12/11.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Helicóptero invisível

Concepção artística de um helicóptero stealth




O arredondado corpo de metal de um avião é muito bom em refletir sinais de radar, e isso facilita encontrar e rastrear aeronaves através de equipamentos eletrônicos. O objetivo da tecnologia stealth é fazer com que um avião se torne invisível ao radar inimigo. Há três maneiras diferentes para criar essa invisibilidade, duas são passivas: O avião pode ser moldado de modo que os sinais são refletidos para longe do equipamento receptor de radar; e o avião pode ser coberto com materiais que absorvem os sinais eletrônicos. E uma é ativa: O avião alvo emite sinais que confundem o radar, esta é chamada contra medidas eletrônicas.
A maioria das aeronaves convencionais tem forma arredondada porque esta as torna aerodinâmicas, mas, em contrapartida, também cria um refletor de ondas muito eficiente. A forma redonda significa que não importa onde o sinal de radar atinge o avião, sempre uma parte do sinal é refletida de volta. Pelo princípio de reflexão que estabelece que o ângulo de saída é o mesmo que o de incidência, sempre haverá superfícies cujo ângulo é favorável ao aparelho que emitiu o raio. Um avião stealth, por outro lado, é composto de superfícies totalmente planas e as bordas muito afiadas. Quando um sinal eletrônico atinge um avião stealth, o sinal reflete fora do ângulo de retorno. Em geral os aviões stealth incorporam todas as tecnologias, formas retas, materiais mau refletores de sinais e aparelhos que emitem sinais falsos.
A tecnologia stealth que foi desenvolvida para tornar aeronaves de bombardeio como o B2, invisíveis ao radar do inimigo, jamais havia sido empregada em helicópteros, porquanto estes, devido sua aerodinâmica compelxa e pás de sustentação ruidosas, não eram considerados passíveis de serem modificados para evitar detecção. Fazendo uma analogia, transformar um helicóptero em stealth era como disfarçar uma bicicleta dentro de um saco. Parece que isso mudou, um projeto ultra secreto dos EUA agora se tornou conhecido.
Helicópteros invisíveis são helicópteros que incorporam a tecnologia stealth para evitar detecção. Nos últimos anos, surgiram projetos para lâminas dos rotores que podem reduzir significativamente o ruído, que é uma questão importante para o uso clandestino de helicópteros. Um ataque no complexo de Osama Bin Laden maio 2011 utilizou dois UH-60 Black Hawk, fortemente modificados para as chamadas operações silenciosas e empregando tecnologia stealth para ser menos visível ao radar.
Uma equipe de elite de SEALs da Marinha dos EUA executou o ataque ousado que eliminou Osama Bin Laden, os comandos foram capazes de se deslocar silenciosamente graças ao que os analistas de aviação dizem ser helicópteros top secret, nunca antes vistos, helicópteros Black Hawk modificados e mantidos em segredo até para as tropas que eram conduzidas por eles.
No decorrer da operação que custou a vida do líder da Al Qaeda, um dos dois helicópteros Black Hawk, que transportava uma das equipes de SEALs que atacou a casa fortaleza paquistanesa de Bin Laden bateu com a cauda num dos muros do complexo e foi forçado a fazer uma aterragem forçada. Com o helicóptero inoperante, no final da missão os SEALs destruíram-no com explosivos para evitar que seus segredos caíssem em mãos inimigas.
Mas fotos dos restos que sobreviveram à explosão - a seção da cauda do avião, com modificações estranhas, que acabou ficando do lado de fora do muro – despertaram a curiosidade de analistas militares sobre um programa de helicóptero stealth que até então só existia através de rumores. A partir de um boom de cauda modificado a fim de provocar redução de ruído com um dispositivo que cobre os rotores traseiros e um material de alta tecnologia especial semelhante ao usado em caças stealth. Especialistas do Departamento de oficiais da Defesa e do Instituto Lexington disseram que esse helicóptero não se parece com nada que eles tenham visto antes.
"Esta é uma primeira vez", disseram. "Você não saberia que eles estão vindos diretos para você. E é isso que é importante, porque estes chegam rápidos e em baixa altitude, e como não fazem ruído, você não pode reagir até que seja tarde demais ... Isso foi claramente parte do sucesso".
Além das modificações de redução de ruído, um ex-aviador de operações especiais do Exército disse ao The Times que a forma geral do que restou da aeronave acidentada - os ângulos ásperos e superfícies planas mais comuns a jatos stealth – é uma prova cabal que era uma versão modificada variante do Black Hawk. Um alto funcionário do Pentágono disse à ABC News que o Departamento de Defesa "absolutamente não" comentaria sobre qualquer coisa relativa ao helicóptero destruído.
Vizinhos de Bin Laden em Abbottabad, Paquistão, disseram à ABC News que na noite de domingo (01/05/2011) por ocasião do ataque, não ouviram os helicópteros, até que estes estivessem diretamente em cima da casa de Bin Laden. O supressor de ruídos do rotor de cauda, juntamente com um design especial das pás do rotor principal, suprimindo o ruído de batimento característico dessas máquinas, permitiu uma aproximação do alvo quase imperceptível. Bill Sweetman, editor e chefe da Defense Technology International, resumiu: "Helicópteros fazem um som percussivo muito distinto do rotor que é causado pelo batimento de suas pás e se você conseguir diminuir a intensidade desse ruído de modo a misturar com o som ambiente, é claro que se fará um ruído muito menos audível e com muito mais chances de se integrar em qualquer ruído de fundo".
Claro que além desse ruído indistinto, as formas retilíneas do corpo da máquina juntamente com outras medidas não conhecidas, tornam os Black Hawk modificados helicópteros invisíveis de máxima letalidade numa batalha.
Desde março de 2011, a FAB possui um esquadrão de Black Hawk normais baseados em Santa Maria no RS. JAIR, Floripa, 06/11/11.


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Bacilo






Como toda cidade pequena do interior, Palmeira tinha seus marginais. E aqui marginal não quer dizer, em absoluto, malfeitor, meliante, facinoroso. Neste contexto, se refere apenas àqueles indivíduos desenquadrados, que não se encaixam nos moldes o mais das vezes hipócritas da “boa sociedade”, nas regras daquela gente que vai à missa, paga impostos, vota nos candidatos conservadores, coloca roupa “de domingo” para comparecer às festas, frequenta um dos dois clubes da cidade e costuma ser a consciência moral da população. Marginal é rótulo para quem não faz nada disso e mantém seu próprio conceito de liberdade.
Então, pelas ruas centrais, a qualquer hora, podia ser encontrado o “Juvenal Sapo”, indivíduo dono do nariz dele, alcoólatra e sem-teto que freqüentava os botecos da vida pedindo a um e outro que lhe pagasse um trago de pinga. Bom sujeito, Juvenal a ninguém incomodava, mas, para o bom mocismo palmeirense, era um marginal.
Outro livre de amarras sociais era o Pé-de-bicho. Lauro era seu nome, mas ninguém o sabia, todos o chamavam de Pé-de-bicho e assim ele atendia. Pois é, o Lauro até que gostava de trabalhar, só não era chegado a horários e compromissos que lhe tolhessem a liberdade de ir e vir. Sempre que um circo, desses mambembes que abundavam no interior naquela época, anos 50 e 60, chegava à cidade, lá estava o Pé-de-bicho se esfalfando nas lidas de montagem da lona e arquibancadas, manutenção e alimentação dos animais. Consta que quando um circo se fazia presente na cidade, os cães e gatos de rua costumavam desaparecer por obra do Lauro. Por ocasião da chegada do “Gran Circo Americano” que tinha um plantel de tigres, leões e elefantes, Lauro agiu com tanta eficiência para que não faltasse comida aos animais, de forma que até cães não tão de rua, como os cachorrinhos das madames endinheiradas, sumiram para sempre. Embora houvesse até denúncias formalizadas na delegacia de polícia nada se provou contra Pé-de-bicho e ele continuou vivendo sua vida plena de liberdade.
Entretanto, talvez o mais instigante dos marginais fosse um livre caminhante que, além de ser, como os outros, não enquadrado nas normas sociais, era oriundo da classe próspera da cidade. Seu irmão era um dos dois únicos médicos do burgo e ele poderia ter sido pessoa grada das rodas sociais, se assim lhe aprouvesse. Alto, boa pinta, bem vestido, dizem que havia estudado em Curitiba, aparentemente inteligente, não rezava pela cartilha dos líderes e tampouco ligava para as convenções, vivia sem trabalhar, sem dar bola para ninguém e, para todos os efeitos era “louco”. Parece que o rótulo que lhe apunham servia mais para justificar, frente a sociedade “de bem”, suas atitudes pouco ortodoxas, pois, antes de tudo, era um vagal assumido. Bacilo, como era conhecido Gilberto, estava sempre por aí sem fazer nada, não importava se chovia ou fazia sol.
Aconteceu que lá por meados dos anos 60, apareceu na cidade, resultado de intercâmbio estudantil, uma estudante americana. Tracy, como se chamava a típica adolescente loira e de nariz sardento, era oriunda da Nova Iorque e estava experimentando o contraste entre uma metrópole multicultural do primeiro mundo, contra o provincianismo tacanho de uma cidade do interior paranaense. De qualquer forma, Tracy se viu hospedada na casa de um dos próceres da cidade, casa que era vizinha de onde morava Bacilo. Muito bem, daí que o tresloucado Bacilo, não tendo nada pra fazer e tampouco preocupado com que o mundo pensava dele, resolveu apaixonar-se pela dita moçoila americana, que a ele não dedicava nem um trivial “good morning”. Se a tradicional família palmeirense viu com bons olhos esse romance unilateral não se sabe, o fato é que Bacilo perdeu o chão, de insano que supostamente era, passou a ser loucapaixonado sem direito a retorno.
Acontece que, assim como a loirinha veio um dia, em outro, ao término do ano letivo, ela se foi. Bacilo, desarvorado, louqueou mais algum tempo perdido em seus onirismos românticos, até que desapareceu. Passados alguns meses de seu sumiço, um palmeirense ilustre (rico) que foi a Nova Iorque a serviço, se viu um belo dia na loja Bloomingdales babando pelos artigos de luxo sem muito atino. Para sua enorme surpresa, ali também estava, vendo e babando vitrines, o Bacilo. Sim, aquele mesmo Bacilo atormentado de amor que havia desertado de Palmeira e, segundo línguas maledicentes, entrado para um convento de monges contemplativos com votos de pobreza, ou baixado num manicômio sem esperança de alta. O que vem a dar no mesmo.
Bem, pelo menos agora se sabia que o Romeu desesperançado estava vivo e gozando boa saúde em Nova Iorque, mas, quanto ao resto? Quanto ao resto, Bacilo jamais retornou a Palmeira e, oficialmente, nada mais se soube de sua doentia obsessão ou de sua vida nos estates.
Mas, à margem dos registros oficiais, através de correspondência dele com um conterrâneo, Ruy de Tal, soube-se bem mais tarde, que ele continuou vivendo e trabalhando nos EUA, perseguiu por algum tempo a sua amada, até que, não vendo mais esperança no romance depois que ela casou, tornou-se cidadão americano, alistou-se nos Marines e foi mandado para o Vietnã. Do Vietnã enviou um postal para seu amigo onde dizia que estava em Da Nang sob intenso bombardeio pelos Vietcongs.
Então a história acaba aqui sem qualquer consequência ou mérito? Não, definitivamente não. Em Washington existe o Memorial aos Mortos no Vietnã. O Memorial é um muro em forma de “V” de 75 metros de comprimento semi enterrado, com uma das extremidades, o vértice, em posição mais baixa. É feito de mármore preto oriundo da Índia, no qual estão inscritos os nomes de todos os soldados mortos no conflito do Vietnã. Está situado próximo ao Monumento a Lincoln e foi inaugurado em 1982. Atualmente o muro contém os nomes de 58.195 homens e mulheres mortos naquela guerra insana, como se toda guerra não fosse insana. Quando um visitante olha para a parede negra do muro, vê seu reflexo junto com os nomes gravados. Essa visão se destina a fundir simbolicamente o passado e o presente juntos. Lá está gravado o nome do nosso ilustre marginal palmeirense, eu o vi. Dizem que morreu virgem. JAIR, Floripa, 01/12/11.