segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A Bike


Bicicleta Monark barra dupla.

Na rua em que eu morava todos éramos muito pobres, a maioria trabalhava nas indústrias madeireiras abundantes na cidade, até que o desmedido apetite por lucros dos matadores de florestas conseguiu, finalmente, acabar com as árvores “comerciais” das matas circundantes. Os madeireiros sofriam de miopia seletiva, viam o lucro fácil que as árvores prometiam, mas não conseguiam enxergar alguns anos à frente quando as florestas deixassem de existir em decorrência de sua ganância. Todos acabaram mudando: de ramo, de cidade e região ou mudando de condição de abastados petulantes para pobres inconformados, alguns mudaram até de nome.

Trabalhar nas madeireiras significava ser uma espécie de escravo, receber um salário de fome que mal dava para as despesas fundamentais como comida e roupas, as quais acabariam pejadas de remendos, então, como possuir algum bem “supérfluo”? Não sei como, mas meu pai, decerto com algum sacrifício franciscano, comprou uma bicicleta. Lembro que eu tinha quatorze anos e fiquei maravilhado com aquela Monark vermelha de barra dupla e aro 26, queixo duro (sem marchas), modelo que, pelos padrões bicicletais de hoje, seria algo como um fusquinha comparado a um carro automático com todas as comodidades adicionais usuais desses carros, contudo “estava de bom tamanho”, como se diria hoje. Embora fosse de segunda mão, estava bem conservada e atendia aos mais recônditos desejos de um piá cheio de energia e vontade de “conhecer o mundo”, ainda que o mundo se resumisse as cercanias da cidade onde houvesse algum caminho bicicletável. Evidente que as matas e os campos estavam, a maior parte, fora desse circuito. É bom que se esclareça que a bicicleta era dele, do meu pai, mas fora liberada para toda a família: neste caso, meu irmão de 16, eu e minha irmã imediatamente abaixo de mim 12, a outra era muito nova ainda, a bicicleta era um modelo para homens adultos e ela ainda não conseguia ajustar-se ao seu tamanho.

Nós três, com maior ou menor dificuldade, acabamos aprendendo a pilotar a máquina, acabamos sendo os únicos a usá-la, meu pai nunca se preocupou com a magrela. Assim, a mim cabia a manutenção: troca de pneus, reparo de câmaras de ar, lubrificação e ajuste dos freios e troca de raios. Era trabalho diário, pois os pneus furavam com facilidade nas ruas esburacadas e cheias de pedras; os freios de mão eram do tipo acionado por hastes ao invés de cabos, em decorrência: complicados e pouco eficientes, ainda bem que o freio de contra pedal funcionava bem.

Pois é, com alguns ajustes que causaram pequenos atritos entre os três usuários, a bicicleta acabou satisfazendo nossas necessidades de locomoção, com um tempo maior de uso para mim, já que quem a mantinha rodando era eu. Vocês talvez não consigam imaginar o que aquela bike representou para o adolescente cheio de energia agora sobre rodas, era uma emoção fantástica que, até hoje, não consigo expressar com exatidão. Mais do locomover-me daqui prá lá e de lá prá cá, a máquina me deu uma sensação de liberdade, a qual não imaginava existir. O fato de transitar por lugares antes muito distantes para chegar a pé; o fato de encurtar o tempo de locomoção à escola a aos lugares aos quais tinha que ir a mando de minha mãe, costureira, que sempre necessitava de aviamentos e outros detalhes para confecção de suas costuras; o fato de ver o espaço que me cercava se movendo para trás com velocidade que eu podia variar a meu gosto. Tudo isso era um mundo novo que me trouxe na vida um sabor até então nunca sentido. Tornei-me um centauro metade bike metade guri, uma entidade que se locomovia por rodas de borracha e carregava um cérebro pensante que a tudo via e a tudo analisava a partir de um ângulo inaudito.

Havia sonhos, vento na cara, derrapagens, curvas, aceleração, freadas súbitas, disputas com outros ciclistas, subidas de lareiras íngremes, descidas perigosas, joelhos ralados e outras escoriações mais ou menos leves, passeios extenuantes, idas a lugares deslumbrantes, paisagens novas, férias, natação em rios distantes e o primeiro namoro. Foi o período de emoções mais intensas de minha vida infanto-adolescente. A bike representou o rito de passagem da bisonhice inocente à mobilidade altiva do garoto do interior. Minha primeira namorada, Nelci, a conheci no ginasial, mas ia a seu encontro de bike, tão mais rápido quanto permitiam os músculos de minhas pernas de centauro juvenil.

Hoje a atitude politicamente correta dita que andar de bike é saudável e preserva a natureza, naquele tempo não existia nada que incentivasse o ciclista mas, sem dúvida, ter horizontes alargados por um veículo como a bike é tão bom hoje como o foi à cinquenta anos. “Minha” bike ocupa um lugar cativo nas minhas melhores lembranças, ela sempre fará parte da minha vida, nada que veio antes compete com o legado que ela deixou, e nada que veio depois apagou sua presença marcante na minha formação de jovem. JAIR, Floripa, 11/01/11.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Foguete


Rolava o ano de 1957, no Cine Teatro Municipal de Palmeira havia passado o sensacional filme de ficção científica, “O Planeta proibido” e, para gáudio dos russos, eles, na desenfreada corrida espacial com os americanos, haviam faturado um ponto importantíssimo: lançaram com êxito o primeiro satélite artificial da história da humanidade, o Sputnik. O artefato era uma bolota de alumínio polido de 58 cm de diâmetro e 83 kg, com 2 pares de antenas flexíveis de 2,4 m e 2,9 m que, parece, só fazia: bip, bip, bip. Mas, mais importante que tudo, seu lançamento abria a possibilidade de exploração do espaço, até então restrita às revistas de HQ com estórias do herói intergaláctico Flash Gordon e filmes como “O Planeta proibido”, com Leslie Nielsen, cujo falecimento se deu agora em 2010.

Pois bem, era indiscutível que o mundo todo estava atento aos passos que as duas potências rivais dessem. Qualquer piscar de olhos ou suspiro mais prolongado de um dos oponentes era acompanhado com suspense pelo resto da humanidade. Mas, em Palmeira como as pessoas reagiam a essa nova fronteira sendo desafiada? Não sei os outros, mas o Joel e eu ficamos excitadíssimos com as possibilidades que se apresentavam. Os fatos ouvidos no rádio (não havia televisão ainda, mas, se houvesse, com certeza não seria em nossas casas, pois éramos muito pobres) e lidos nos jornais davam origem a acalentados debates dentro de nosso limitado mundo de conhecimento. Entretanto, sabíamos até antes de tocar no assunto, que tínhamos que fazer alguma coisa, ficar vendo o trem da história passar não era opção. Sim, devíamos participar de alguma forma naqueles eventos tão importantes. Mas como? O que dois piás cheios de imaginação e dispostos a empregar toda a criatividade possível, mas sem recursos, poderiam fazer?

Depois de muito pensar e debater, chegamos à conclusão que tínhamos condições técnicas de construir um foguete. Não, evidentemente, um foguete tripulado ou mesmo de porte médio sem tripulação, mas um foguete vistoso que se decolasse rumo às nuvens já estava de bom tamanho. Concebida a idéia, passamos ao projeto físico e o suporte econômico. Como um artefato daquele nunca receberia o aval dos adultos e era impensável conseguir algum patrocínio, tivemos, mais uma vez, que recorrer à nossa fonte principal de recursos financeiros: venda de sucata. Incrementamos nossos esforços na busca de sucatas de bronze, latão, cobre e alumino, de forma que em três semanas de trabalho árduo e alguns cortes nos gastos “supérfluos” já dispúnhamos de numerário suficiente para dar seguimento ao empreendimento espacial. Como propulsores, havíamos estabelecido que aqueles fogos de artifícios chamados “buscapés”, tubos cheios de pólvora que, quando inflamada, impulsiona o objeto com grande ímpeto à frente, seriam usados; tantos quantos necessários para fazer nossa trapizonga decolar. O engenho em si era um cilindro reforçado mas bem leve de papelão encimado por um cone do mesmo material, os propulsores seriam colocados internamente no tubo em sequência, de forma que os primeiros a serem ignizados fossem os da base, em seguida os outros até o topo. Não era um projeto complicado que envolvesse grandes desafios técnicos. Os óbices estavam em conseguir a grana, o que já havíamos conseguido, e fazer com que os propulsores queimassem de acordo com o planejado. A fábrica de fogos da rua sete nos forneceu os “motores” na forma de busca-pés maiores e mais potentes. O problema relativo aos propulsores foi resolvido com um ensaio secreto feito depois que compramos pavios que queimariam durante a ignição de um estágio, ateando fogo no próximo estágio quando o anterior houvesse apagado. Não foi muito difícil estabelecer o tamanho dos pavios para que a sequência se fizesse sem solução de continuidade. Não afirmo com certeza, mas, parece que eram 72 propulsores dispostos em três camadas, cada uma representando um estágio, ou seja, depois que o primeiro estágio de 28 propulsores queimava, a parte de baixo do foguete se desprendia com os propulsores queimados de modo a deixar o foguete mais leve. A camada seguinte se comportava da mesma forma até que a terceira camada ou terceiro estágio queimava em altíssima velocidade impulsionando o foguete até não sei onde. Isso, se tudo estivesse de acordo com o planejado. Os dois estágios que se soltavam não requeriam qualquer concepção complicada de engenharia, cada um era simplesmente encaixado no superior e se mantinha assim pelo empuxo dos propulsores, quando estes se extinguiam, a força que mantinha o estágio conectado ao seguinte parava e o estágio queimado caía por gravidade, auxiliado pela queima dos propulsores de cima. Complexidade não era opção.

Então, com o engenho espacial secretamente pronto e devidamente guardado em baixo da casa do Joel, marcamos o lançamento para uma noite escura sem luar, sermos vistos por curiosos não era opção, podíamos fracassar e virar objeto de gozação dos invejosos. Nossa plataforma de lançamento seria um campinho de peladas atrás do conjunto de casas onde morávamos, o momento marcado para o evento era 21horas, quando não haveria ninguém mais nas ruas, os habitantes daquele pedaço costumavam se recolher cedo, visto terem que trabalhar às sete da manhã. Na hora aprazada, cheios de expectativa, com a poderosa máquina nos ombros fomos ao nosso Cabo Canaveral. Sentíamos como se fôssemos o próprio Werner Von Braun conduzindo sua primeira experiência com o foguete V-2. Colocamos o produto de nossos esforços criativos e econômicos no centro do gramado e nos afastamos uns cinco metros, onde poderíamos acender o pavio em segurança. A ignição da trapizonga coube ao Joel por sorteio. Acendido o pavio, este induziu a queima do primeiro estágio em dois segundos, quando os propulsores começaram a queimar houve um átimo de respiração suspensa, parecia que o projeto ia falhar. Nesta altura, falha não era opção. Não! Não houve falha! Lindamente os buscapés impulsionaram o foguetão para o alto com uma segurança e velocidade só possíveis num projeto tão perfeito como aquele. Havia uma camada de nuvens a uns duzentos metros talvez, essa camada foi rapidamente ultrapassada e pudemos ver quando o primeiro estágio se desprendeu e o segundo iniciou a queima. Daí, o ruído infernal do início foi diminuindo na medida em que o foguete subia, nada poderia detê-lo. Não chegamos a perceber quando terminou o segundo estágio e começou o terceiro, o artefato se perdeu em espaço nunca dantes navegado. Foi o ápice de um trabalho árduo de dois garotos obstinados e antenados nos últimos acontecimentos da corrida espacial. Nos sentimos os próprios pioneiros da astronáutica, dali em diante, secretamente, sabíamos que, se quiséssemos, conseguiríamos. Éramos vencedores.

No dia seguinte ouvia-se pelas ruas do bairro comentários a cerca de algum OVNI extremamente barulhento que subiu aos ares nas proximidades. Não se cogitava que fosse um aparelho construído debaixo das barbas daqueles adultos incréus. Em seguida a esse sucesso surpreendente, pensamos em construir um foguete mais potente que levasse um cachorro ou um gato na ogiva e que, por um mecanismo próprio, liberasse o animal lá em cima deixando-o cair de pára-quedas. Nunca chegamos a tentar essa façanha, o projeto era um desafio um pouquinho além de nossa capacidade técnica. Entretanto, a partir daí e para sempre, gostamos de pensar que nosso foguete encontra-se orbitando a Terra junto aos engenhos que as grandes potências enviaram a custo de milhões de dólares e rublos. Sonhar é opção. JAIR, Floripa, 15/01/11.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sobre escolas


Assim que a humanidade chegou ao estágio de aglomerações sociais, sejam cidades ou aldeias expandidas, as necessidades de serviços impuseram a aparição de artesãos, escribas e prestadores de serviços, sem os quais as demandas das pessoas deixariam de ser atendidas. É racional supor que os primeiros sapateiros, roupeiros, chapeleiros, barbeiros, peleteiros e inúmeros outros artífices tenham desenvolvido suas habilidades a partir de experimentos e observações próprias. Contudo, na medida em que as necessidades materiais e intelectuais das pessoas se tornavam maiores, mais refinadas e complexas, os mais habilidosos artesãos se viam na contingência de não conseguir atender a todos, tornava-se necessário formar novos trabalhadores para satisfazer tantos consumidores. Há registro que até Leonardo da Vinci instituiu uma “escola” na qual ensinava seus discípulos nas artes e ciências que era mestre inconteste e auto didata. Mestre, esta é palavra chave. Quando um artesão, por sua habilidade e experiência, adquiria excelência no que fazia, costumava ser classificado como mestre. Era privilégio que poucos pretendentes conseguiam: Serem admitidos na oficina ou atelier de um mestre.

Escolas não surgiram ad hoc, por capricho de alguns governantes generosos ou por diletantismo de mestres entediados, escolas foram respostas às necessidades imperiosas das sociedades. A própria escrita, que fora privilégio de castas sacerdotais ou de escribas das cortes durantes séculos, passou a ser ensinada em escolas. Não se pode afirmar que escolas tenham se tornado populares tão logo passaram a existir, admite-se que foram privilégios de poucos, geralmente nobres, os quais se viam sob a tutela de mestres que os introduziam nas artes e ciências milenares. Contudo, há evidências que no Egito antigo, na Suméria, na Mesopotâmia e até entre Astecas e Incas, tenha havido locais destinados a ministrar aos jovens matérias de interesse que os tornassem conhecedores capazes, úteis à sociedade.

Não é estultice afirmar que civilização e escolas têm relações tão estreitas que é inconcebível existir uma sem a contrapartida da outra. Aliás, no mundo moderno, a qualidade do ensino e a quantidade de escolas estão relacionadas diretamente ao nível de desenvolvimento das sociedades e à qualidade de vida das populações. A humanidade só pode se afirmar civilizada com o advento de escolas. Impensável admitir algo diferente dessa ligação poderosa e formadora do que veio a ser o diferencial do homem com relação a seus parentes primatas: Um cérebro inteligente organizado. A inteligência por si só, não organizada, é apenas um potencial a ser explorado. A inteligência necessita orientar-se com método e organizar-se segundo conhecimentos já consagrados para conduzir seu dono a descobertas e lucubrações utilizáveis. As escolas, numa concepção ideal, não devem apenas ensinar, apenas colocar na cabeça dos jovens conhecimentos estáticos, deve propor aos aprendizes modos de pensar sobre as coisas, deve estimular o pensamento criativo e abstrato.

No mundo atual escolas estão disseminadas em todas as culturas e todas as nações, mesmo nos países mais pobres escolas são entendidas como fatores essenciais para manter o tecido social sadio, não há substituto que mantenha a coesão social de um povo. As trevas do desconhecimento são o que há de mais pernicioso numa sociedade, escolas são como faróis que iluminam o caminho a seguir rumo à segurança de um futuro onde as pessoas possam explorar o potencial de suas habilidades e de seus cérebros organizados. Déspotas, ditadores e mandatários autocráticos, se não forem muito obtusos, percebem que escolas tendem a permitir que seus súditos pensem, e, pensando, pode ser que eles não concordem com a opressão. Por isso, o mais das vezes, esses mandantes ilegítimos e prepotentes limitam o acesso do povo às escolas. Povo ignorante é povo controlável.

Um exemplo clássico do poder extraordinário do ensino numa sociedade se deu depois da segunda guerra, quando Alemanha e Japão emergiram quase que reduzidos à idade medieval, seus parques industriais e infra estruturas estavam totalmente destruídos. Na Alemanha o pouco que havia restado de suas indústrias fora desmontado e levado pelos russos, a título de “reparações” de guerra; no Japão os bombardeios convencionais americanos e as bombas atômicas haviam reduzido a zero suas instalações, de modo que não havia por onde começar a produção tão necessária à recuperação econômica. Contudo, tanto no Oriente como na Europa central, existiam em abundância escolas e professores, e na população que sobrevivera à guerra havia milhares de técnicos e formados em universidades capazes de alavancar o progresso, como se viu no surto de desenvolvimento que se seguiu à derrota. As escolas haviam feito a diferença. O Plano Marshall e o Plano de Recuperação Econômica instituídos pelos americanos, apenas ofereceram capital onde existiam cérebros prontos a trabalhar, o resultado foi o maior boom econômico da história e duas potências industriais que se impõe até hoje.

Ouso dizer que no Brasil nunca houve preocupação séria com o futuro, nunca se investiu pesado na construção de escolas, formação de professores e numa política educacional que valorizasse a carreira de mestres desde o ensino básico até o universitário. Construir estradas (ruins) e apostar na indústria automobilística constituiu objetivo prioritário de nossos governantes desde que o país entrou na era industrial tardia, escolas e professores não entraram seriamente na lista de temas políticos das campanhas desde o advento da República.

Com surgimento da internet e a disseminação da informática por todos os setores da sociedade, muitos administradores, políticos e educadores estão certos que a escola passou a ter uma importância secundária na educação de nossos jovens. É quase implícito admitir que os meios eletrônicos que adentram os lares substituem com vantagem as escolas. A estupidez desse raciocínio é tão piramidal que não merece nem ser comentada. JAIR, Matinhos, 31/12/11.

sábado, 22 de janeiro de 2011

O Piano


O filme “O piano” foca a presença desse instrumento numa província neozelandesa extremamente afastada da civilização, e selvagem o suficiente para que o instrumento se mostre uma excentricidade incompreensível para os habitantes da região. Na época vitoriana, quando a Nova Zelândia estava há pouco tempo sendo colonizada, para lá se muda Ada McGrath, um mulher que quando tinha seis anos de idade resolveu parar de falar. O motivo de ter ido para lá é que Ada se casou com um neozelandês, Stewart, em um casamento arranjado, já que ela nem conhecia seu noivo. Ada imediatamente antipatiza com Stewart quando ele se recusa a transportar seu amado piano, contudo, este acaba cedendo e o piano vai parar naquela aldeia no meio da mata.
Em Palmeira, guardadas as diferenças culturais, de tempo e de espaço, um piano por lá fez morada no nobre casarão da Baronesa de Tibagi no tempo do império e também foi objeto de espanto e admiração. Tratava-se de um instrumento alemão de marca, A. H. Francke construído na cidade de Dusseldorf em 1857, importado diretamente por JOSÉ CAETANO DE OLIVEIRA para presentear sua querida mulher quando foi a ele conferido o título de Barão em 1858. O ilustre palmeirense, nascido em 1794, em 1858 teve notícia que lhe fora concedido o título de 1º Barão de Tibagi que, dessa forma, passou a ser o primeiro paranaense a receber título nobiliário, na novel província do Paraná. Diga-se, sua digníssima esposa, senhora Querubina Rosa Marcondes de Sá, nascida na capital do império, filha de rico proprietário de terras, teve uma educação esmerada a qual incluía cinco anos na França onde aprendeu a tocar os clássicos no piano.
Mas o que realmente impressionava era a odisséia que seu belo instrumento passou para vir de Dusseldorf até aquela província esquecida no interior do Paraná. Depois de comprado pelo Barão, foi embarcado num navio da Hamburg Süd que vinha para Buenos Aires e fez escala em Paranaguá especialmente para desembarcar a bela peça. Como não havia estrada entre litoral e interior do estado, depois de um acerto com tropeiros que faziam a subida da serra do mar trazendo produtos como farinha de mandioca, cachaça, frutas e melaço, o Barão conseguiu que o instrumento fosse embarcado “em lombo de burro” e transportado, primeiro até Curitiba onde permaneceu por duas ou três semanas, depois embarcado em carroça, venceu a distância até Palmeira em seis dias de duras etapas. Era o ano de 1865 e, finalmente, o sofisticado instrumento encontrava-se no salão de festas da mansão da Baronesa de Tibagi e agora ela poderia dar vazão ao seu talento musical como tanto desejava.
Pois então, moravam os nobres cidadãos num grande casarão situado na esquina da Praça Conceição com Rua quinze, onde sua criadagem, além de oito ou nove escravos, incluía lavadeiras, cozinheiras, jardineiros, arrumadeiras e pajens. Pode-se deduzir que uma pessoa instruída e que viveu perto da corte no Rio de Janeiro tenha sentido certo tédio naquela freguesia onde nada acontecia e onde a maioria dos habitantes era de gente rústica, de pouca instrução. Seu piano representava a ligação dela com a cultura européia da qual sentia saudade, então programava serões onde os convidados, pessoas gradas da paróquia, o padre, alguns latifundiários, o prefeito e um ou outro viajante endinheirado que vinha de outro rincão para comprar gado do Barão, sempre compareciam. Seu repertório incluía tanto os românticos Paganini, Schubert e Berlioz, como os barrocos Vivaldi, Bach e Handel e até os renascentistas Grabrieli e Lassus, ela era uma virtuose no seu Francke, afinado por um técnico que vinha de Curitiba especialmente pra esse fim.
O mais interessante é que os saraus de piano acabaram influenciando os rudes habitantes do lugar que, primeiramente estranharam aquela música tão envolvente que saía daquela casa, contudo, com o tempo acabaram incorporando ao seu dia-a-dia parar na frente do sobrado e permanecer em silêncio absoluto escutando os Berlioz, Schubert e outros mestres que invadiam a rua. A Baronesa, percebendo o interesse das pessoas comuns, as quais estavam acostumadas apenas com violões, sanfonas e pandeiros nos seus bailes populares, toda vez que tocava, abria as janelas do salão de música para que sua “platéia” espontânea a ouvisse. Não só isso, também mandava criados distribuírem limonada, sonhos e empadinhas aos ouvintes caipiras, nessa altura ouvintes especiais. Estabeleceu-se uma cumplicidade tácita entre a artista e o público nativo, ela fazia questão de tocar as sonatas e minuetos bem altos para que todos ouvissem, e eles faziam silêncio total para ouvi-la. Às vezes ela perguntava, através dos criados, o que o público local desejava ouvir e atendia suas preferências. Acho que nunca na história da música clássica existiram ouvintes tão destituídos de nascimento nobre, e uma nobre tão interessada em agradá-los.
O resultado dessa estranha parceria é que, mais de oitenta anos depois, na década de 1950, ainda se ouvia os mais velhos falar no grande Paganini, no sublime Lassus, no inesquecível Vivaldi, que seus pais e avós contavam ter ouvido na Praça Conceição. Meus antepassados todos, parece, adquiriram o gosto pelas músicas eruditas a partir desse período musical pianístico patrocinado pela Baronesa.
Além dessa herança musical que marcou os cidadãos da “cidade clima”, os Tibagi nobres se foram, mas deixaram uma fazenda na área rural que hoje é um quartel do exército; uns familiares Tibagi comuns que se mesclaram à população mais pobre; e o casarão da esquina que se transformou em “assombrado” na minha época de grupo escolar, e no qual costumávamos brincar de procurar tesouro. Assim termina a história do Piano que de “estranho no ninho” na minha Palmeira natal, se transformou no instrumento de integração entre nobreza e plebe e, parece, ambos saíram ganhando. JAIR, Floripa, 20/01/11.