domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Negócio


No fim da década de quarenta o mundo ainda sofria as sequelas da guerra, mas a economia dava mostras de recuperação em todos os setores e em todos os continentes. No Brasil não era diferente, tendo contribuído com sua parte contra as forças do mal que pretendiam dominar o Planeta, o país apresentava agora um novo vigor que atingia comércio e indústria. Dos prestadores de serviços aos industriais, todos expandiam suas empresas visando um público consumidor maior, mais esperançoso e otimista. Em Palmeira, cidade cercada por pinheirais milenares, várias madeireiras novas iniciaram suas atividades e outras passaram a investir mais. As Indústrias Malucelli, até então apenas uma forte serraria que explorava as araucárias na localidade de Pinheiral de Baixo, aproveitando a boa maré, também resolveu montar em Palmeira um fábrica de compensados e móveis.

Construídos os barracões, todos de madeira, compradas e instaladas as máquinas novas como, serras circulares, serras de fita, prensas, lixadeiras, imensos tornos com capacidade de tornear toras, caldeiras para produzir vapor que moveria geradores de eletricidade e toda a parafernália própria de uma indústria madeireira moderna, iniciaram a construção de “vilas” para seus empregados. Assim, surgiram as modestas casinhas de tábuas brutas, três quartos, sala e cozinha, numa das quais passei minha infância. Nossa “vila” se situava em frente à parte da indústria que cuidava da transformação das toras em lâminas das quais se fariam os compensados, matéria prima de grande parte dos móveis que seriam fabricados em outra parte da empresa. Por coincidência, a casa que morávamos era em frente ao portão principal da fábrica, como a chamávamos. Dada essa localização privilegiada, meu pai só atravessava a rua para adentrar aquela empresa que era seu trabalho desde sempre e que ocuparia seu corpo e mente até a morte. Nós éramos testemunhas oculares das entradas e saídas dos operários que ali ganhavam os níqueis que os impediam de morrer de fome, mas os compulsavam a viver uma vida beirando a miséria no dia-a-dia.

Meu pai, vendo a possibilidade de atender a demanda daqueles pobres assalariados por mercadorias de primeira necessidade, resolveu junto com seu irmão mais novo, Arino, montar um comércio com preços acessíveis naquela mesma casa em que morávamos. O ponto era ideal, todos os empregados por ali passavam quando chegavam e quando saíam do trabalho. Meu tio Arino tinha algum dinheiro oriundo de um caminhão que havia vendido, meu pai entraria com o trabalho e a construção do imóvel, e eles seriam sócios no que passou a se chamar, Armazém de secos e molhados Arino Silva. Obviamente fazendo jus ao dinheiro que tio Arino havia empregado no negócio. Para isso, construiu-se um imóvel na frente da casa onde passou a funcionar o comércio. Cabe esclarecer que “Armazém de Secos e Molhados” é expressão legal e contábil de um estabelecimento que se dedique à venda tanto de produtos como feijão, trigo, arroz e batatas, (secos) como líquidos desde azeite e vinagre até bebidas alcoólicas como cerveja e cachaça (molhados), passando por sabão em barras, panelas, frutas, tamancos, alpargatas Roda e até bacalhau. Neste particular, o negócio como era chamado o comércio de meu pai, era uma espécie de boteco, onde a freguesia tomava umas e outras enquanto era atendida nos seus pedidos de “compras do mês”, modalidade muito em voga na época. Fregueses assalariados que só recebiam salário no fim do mês, eram atendidos e, para facilitar o pagamento, costumava-se anotar no “caderno”. Era o ano de 1958, e o negócio passou a prosperar com freguesia cativa mais os fregueses eventuais. Porque os fregueses trabalhavam até ao meio dia apenas, os sábados eram particularmente estafantes, os usuais bebedores de cerveja e bebidas fortes costumavam encostar os cotovelos no balcão e prolongar suas conversas até o estabelecimento fechar, às 19 horas.

Trabalhávamos lá de segunda a sábado, meu irmão de 14 anos e eu que na ocasião tinha 12, nos sábados a tarde nosso pai nos ajudava. O salário que ganhávamos era quase simbólico, o que valia no trabalho eram os freqüentadores com suas manias e idiossincrasias e as situações engraçadas ou típicas que ocorriam por ali. Já tive ocasião de citar no subtítulo da crônica “A fonte e as galinhas”, que existia um apontador de bicho chamado Riograndino o qual “fazia ponto” no negócio e costumava tomar capilé e comer um sanduíche de mortadela como lanche todos os dias. Capilé, para quem não sabe, é uma espécie de calda ou xarope vermelho como cereja, feito com suco de avenca, bebida refrescante que se faz ao misturar essa calda com água. Outra coisa interessante que ocorria lá, usualmente aos sábados, era uma aposta que consistia em oponentes disputarem quem conseguia primeiro: tomar uma cerveja em um prato com colher como se fosse sopa, versus comer cem gramas de queijo minas “a seco”, ou seja, sem qualquer acompanhamento líquido para “lubrificar” a boca. Geralmente o tomador de cerveja com colher vencia. Uma vez, como sempre num sábado, lá estavam alguns fregueses conhecidos que gostavam de uns gorós, um deles era bem jovem, uns vinte e poucos anos, e forasteiro na cidade. Pois bem, esse jovem que se chamava Hildebrando desafiou os demais afirmando que comeria um copo de vidro. Parênteses, três copos eram usuais nos botecos daquela época: Americano, também chamado “liso” (200 ml), martelo (100 ml) e dedal (50 ml). O Hildebrando afirmou que comeria um martelo e deixaria apenas o fundo muito espesso, sua aposta era para que os outros pagassem suas despesas, as quais eram apenas uns copos de pinga. Não é que o sujeito, com jeitinho, comeu o copo! Sobrou só o fundo! Eu pensei lá com meus botões: esse carinha vai parar no hospital com alguma lesão grave no estômago, acho que não mais o verei por aqui. Santa ingenuidade! O sujeito apareceu na segunda feira como se nada tivesse acontecido. Sou testemunha ocular, auditiva, tátil e olfativa que o caboclo comeu o copo e continuou vivendo normalmente.

Tudo corria bem nesse ano de 58 e no seguinte até lá pelo segundo semestre de 60, foi quando os Malucelli, donos da fábrica que já explorava seus empregados ao máximo, viram a possibilidade de ganhar mais ainda. Observando que o negócio de meu pai e tio ia muito bem, resolveram fazer concorrência desleal. Nas dependências da fábrica abriram um “armazém”, sem nome, sem registro na associação do comércio, mas que vendia os mesmos produtos, embora de qualidade inferior, de nosso comércio e que descontava as despesas dos empregados na folha de pagamento. Os empregados jamais conseguiam se livrar de suas dívidas e, como a maior parte já estava devendo no “caderno” do armazém de meu pai, também deixaram de pagá-lo. Foi a bancarrota do negócio que ia tão bem, meu pai se viu obrigado a fechá-lo, e lá se foram o Jair e seu irmão trabalhar para os mesmos crápulas que haviam quebrado meu pai. Jogo sujo era (dizem que ainda é) com eles mesmos!

De alegre balconista que fui, passei a operário mal remunerado dos oligarcas Malucelli, minha audição atesta até hoje o trauma acústico que sofreu quando fui ajudante de serra, sem carteira de trabalho, sem direito a férias e ganhando meio salário mínimo. A máquina era operada pelo senhor Dinarte e também feriu os ouvidos dele com centenas de decibéis que produzia. Trabalhar na fábrica era uma tortura só conhecida através de livros que retratam o início da revolução industrial na Inglaterra do século dezenove. Trabalhei quase quatro anos naquela casa de malucos, cujo labor enchia as burras dos Malucelli, só me livrei quando, finalmente, surgiu uma luz em minha vida que me guiou até a FAB, onde servi por trinta anos. O negócio de meu pai e tio tornou-se apenas uma lembrança tênue duma infância e adolescência felizes no velho burgo de Palmeira. JAIR, Floripa, 12/01/11.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ovelhas




(E os guarás que distinguiam cores)

Gosto de comer carne de ovelha e acho que esse hábito devo debitá-lo na conta de meu pai que era um apreciador dessa fonte de proteínas. Sempre que orçamento doméstico permitia, quando das datas festivas como natal, páscoa e passagem de ano, meu pai comprava um pernil ou uma banda dessa carne, algumas vezes chamada de ovelha, outras de carneiro. Não importa o nome, o animal era sempre o mesmo: Ovelha (Ovis aries) que pode ser chamado no masculino por carneiro e quando pequeno como cordeiro, anho ou borrego, é um mamífero ruminante bovídeo da sub-família Caprinae, primo da cabra e de seu marido bode.

Pois é, nas cercanias de Palmeira existia uma série de criadores desse bicho, criadores familiares com plantéis pequenos ou médios cuja finalidade era prover as famílias tanto de lã para cobertores tão necessários nos invernos rigorosos do planalto, quanto da saborosa carne que era vendida aos açougues da região de tempos em tempos. Numa vila rural um tanto afastada do núcleo urbano onde morávamos, um desses criadores, seu Pedro, era amigo de meu pai e tinha um rebanho de umas vinte ou trinta ovelhas e carneiros todos da raça sufolk, bons de carne e apenas razoáveis como fornecedores de lã. Aliás, meu pai fazia questão de comprar a deliciosa carne apenas do seu Pedro, numa deferência especial. Eram tão chegados que quando meu pai o visitava sempre levava alguns gêneros não encontráveis no campo, tipo enlatados, café, açúcar e cerveja e, em troca, ganhava bonitas e suculentas peras, maçãs e laranjas.

Morávamos então numa casinha de madeira construída para seus empregados pela Indústria Malucelli, onde meu pai trabalhava. O pátio da casa era enorme onde minha mãe mantinha uma criação de galinhas e eu havia construído um pombal, além disso, havia um pé de pêssegos, um caquizeiro, dois limoeiros e um pé de ameixas, todos bem produtivos. Foi para essa casa que, um belo dia, meu pai trouxe uma ovelha que havia ganho numa rifa. Pode parecer estranho, mas naquele tempo rifas eram comuns e até sapatos, guarda-chuvas e sanfonas eu presenciei sendo rifados. Pois então, chegou seu Ananias com uma jovem ovelha meio assustada, muito branca, que logo batizamos de Neve, e a recolhemos a um ovil feito as pressas, mas bem funcional. As galinhas perderam um pouco de espaço, mas a Neve ficou bem confortável.

A ovelha cresceu, tornou-se adulta e continuou sendo considerada apenas um animal de estimação, não nos passava pela cabeça vê-la assada com uma maçã na boca sobre a mesa arrumada para a ceia do natal. Então, meu pai com vistas a dar uma finalidade para aquele animal, que não fosse apenas ornamental, levou-a a um criador bem próximo de casa e cruzou-a com um carneiro de boa linhagem. Feito o cruzamento, a ovelha ficou prenhe e deu à luz um belo anho que se tornou outro animal de estimação, mas ocupou mais espaço antes destinado às galinhas. Logo no ano seguinte ouve novo cruzamento da ovelha com o mesmo macho, mas antes que o “rebanho” se tornasse impraticável por falta de espaço, meu pai fez um acerto para deixar seus animais na chácara junto aos ovinos de seu Pedro. Diga-se, ele marcava suas ovelhas com tinta vermelha e marcou as três de meu pai com tinta azul. Como os animais viviam soltos e não recebiam qualquer tratamento ou alimentação especial, só comiam a relva natural do lugar, não haveria despesas extras para o criador, e o acerto incluía a divisão pela metade de toda carne e lã que as ovelhas de meu pai viessem a produzir.

Feito isso as galinhas voltaram a ganhar seu antigo espaço e as ovelhas tiveram um campo imenso para comer e procriar. E procriaram, em dois anos já tínhamos cinco animais porque uma das filhas de Neve também teve filho. Como de hábito, meu pai, nas datas festivas, ia à chácara matar uma ovelha para nossa mesa, metade da lã e da carne ficava com o chacareiro conforme o combinado. Na segunda ou terceira vez que meu pai foi à propriedade matar mais um animal, a coisa começou a ficar engraçada, seu Pedro comunicou a ele que algum lobo (entenda-se guará, bastante comum naquela época e local) havia devorado uma ovelha, e não deixara restos, sequer partes do velo. Na vez seguinte outra ovelha tinha sido atacada e saboreada pelo guará, e mais uma ou duas vezes que meu pai lá foi, o lobo havia acabado com as demais. O “rebanho” de meu pai se extinguiu, os lobos haviam comido todas. Na época achei engraçado e estranho o ataque seletivo dos guarás apenas aos animais nossos, os que se distinguiam dos outros por manchas azuis pintadas em suas ancas. Hoje vejo a coisa sob o seguinte ângulo: os guarás que lá viviam conheciam cores, sabiam distinguir o azul do vermelho, e não só isso, eram gourmets exigentes que preferiam o azul, pois só comiam ovelhas marcadas com essa cor. Nunca tivemos notícia que eles tenham atacado os ovinos do seu Pedro, marcados de vermelho. JAIR, Floripa, 25/01/11.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Javalis


O Homo sapiens, durante a maior parte de sua história de caçador-coletor, cujo comportamento o levou a colonizar quase todos os continentes do Planeta, não se deu conta que a variada flora e fauna das diversas regiões faziam parte da natureza marcada pela distinção necessária à adaptação aos ambientes diferentes uns dos outros. O homem percebia que havia diferentes faunas e floras, mas não se preocupava e perguntar-se porque assim era. Em vista dessa atitude não foram poucas as “transferências” de espécies de uma região a outra, medidas que atendiam interesses das tribos e aldeias. Por exemplo, os primeiros a domesticar cavalos foram povos asiáticos, mas europeus adotaram os equinos e os levaram para as estepes do norte de forma que esses acabaram se “aclimatando” por lá e tornaram-se “nativos”. Existem muitos exemplos de plantas e animais transplantados para ambientes estranhos que, em alguns casos, ajudaram na conquista de regiões e construção da civilização, mas nem sempre as transferências foram benéficas.

A partir do século quinze quando as grandes navegações permitiram que exploradores, principalmente europeus, “descobrissem” novas terras e continentes, foi que o quadro de transferência de espécies se tornou mais intenso e, de certa forma, mais nocivo. A Austrália é um exemplo clássico dessa interferência perniciosa dos homens. Durante milhões de anos a “ilha” australiana ficou bastante isolada do resto dos continentes de forma a permitir a evolução de seus próprios animais e plantas. Naquele país, grande parte da flora é única, eucaliptos, por exemplo, são uma espécie de cartão postal da terra, eles estão divididos em centenas de espécies e não são encontrados em outra parte do mundo em estado natural. Todos os mamíferos australianos são marsupiais, bichos que carregam os filhos numa bolsa chamada marsúpio, qualquer mamífero que por lá viva e não tenha marsúpio é excêntrico, veio de outra parte do Planeta. Pois então, durante milhões de anos a flora e fauna únicas se desenvolveram sem interferência humana e a coisa ia muito bem, até que o tal de Homo sapiens (me questiono, por que sapiens?) por lá aportou há duzentos anos e começou introduzir bichos e plantas estranhos. Hoje, sapos-cururus, raposas, porcos, gatos, ratos, camelos, coelhos e algumas plantas alienígenas estão causando o maior estrago ecológico que se tem notícia. Os gados vacum, ovino e equino, não causam maiores problemas porque não saíram do controle humano, não se tornaram selvagens. Os dingos foram introduzidos pelos povos da melanésia há trinta mil anos e também são danosos à fauna nativa até hoje.

No mundo todo há inúmeros exemplos da introdução, principalmente de fauna estranha, que causou desequilíbrio da natureza tal como havia evoluído até então. No Brasil não foi diferente. O javali foi introduzido em criações na Argentina e Uruguai, de onde ingressou no Rio Grande do Sul e progressivamente avança rumo ao norte. A espécie não encontra predadores naturais, uma vez que é exótica, além de cruzar com o porco doméstico, dando origem ao chamado javaporco - neologismo criado para definir esse híbrido, tão ou mais nocivo que o javali. Sua caça e abate são permitidos e até incentivados por órgãos de controle ambiental, como o IBAMA, que em contrapartida procura incentivar a criação da espécie nativa, chamada de queixada, contudo, essa espécie ainda não se encontra em fase de criação comercial. A criação controlada do javali, e de seus híbridos, entretanto, ocorre em diversas fazendas, sobretudo destinada à exportação da carne, que possui alta cotação mercadológica. A carne do javali tem baixo teor de gordura, além de cada animal produzir mais que o porco comum. Segundo um dos últimos estudos a respeito efetuado em 2008, a população de javalis no Brasil estaria em torno de 50.000, distribuídos em menos de 400 criatórios. Em estado selvagem a coisa parece ser muito pior. Estimativas feitas a partir de relatos de caçadores dão conta que em todo o Sul do Brasil, parte do centro-oeste, São Paulo e sul de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia existem grandes concentrações em vários grupos de Javalis de 30 a 40 indivíduos.

O ônus da disseminação descontrolada desse animal vem por conta de seus hábitos alimentares que incluem legumes, tubérculos, cereais, gramíneas e verduras, lembrando que cana de açúcar é uma gramínea e altamente apreciada pelo suíno. As propriedades que cultivam batatas, trigo, feijão, milho e mandioca se veem ameaçadas quando esses animais resolvem atacar a plantações. Como esses bichos terríveis são nômades e de hábitos alimentares noturnos, é difícil prever onde eles estarão em certa época e onde atacarão os cultivares. Mesmo com caça liberada em certas regiões, tem que se levar em conta que os animais são extremamente agressivos, grandes, fortes, rápidos e tem presas poderosas, não se furtando de atacar cães de caça e os próprios caçadores, principalmente quando as fêmeas estão com filhotes. Nem as onças pintadas de nossa fauna são tão perigosas como esses porcos selvagens.

Lembro que na minha cidade natal havia vastas áreas rurais invadidas por esses animais ferozes que faziam festas nas plantações. A medida paliativa para tal nocividade era liberar a caça controlada. Os caçadores faziam-se acompanhar por guardas florestais como ficais e, na companhia de cães adentravam as matas onde quase sempre matavam enormes machos que chegavam a pesar até quinhentos quilos de pura carne. Não que a caça tenha resolvido o problema, mesmo porque, depois de algum tempo os bichos mal humorados eram encontrados em regiões distantes onde antes não os havia. Os javalis continuam a infestar a região sul do país, continuam causando prejuízos aos agricultores e, pelo jeito, enquanto houver áreas onde eles possam procriar, continuarão se reproduzindo e ameaçando conquistar terreno cada vez mais ao norte, até onde, não se pode cogitar. Graças à incúria e falta de sintonia do Homo sapiens com a natureza, grande parte das áreas ocupadas por ele estão “contaminadas” com bichos alienígenas causando transtornos a ecologia. O homem é um rei Midas ao contrário, tudo que toca vira eca. JAIR, Floripa, 05/02/11.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O Cinema


Cine Teatro Municipal de Palmeira

Para se entender a importância do evento e da expectativa pelo que viria em seguida, deve-se registrar que se tratava da década de cinquenta, e numa pequena cidade do interior como Palmeira, praticamente sem opções de lazer, qualquer novidade que surgisse já seria interessante, imaginem um Cinema! Pois é, na data festiva de aniversário de 132 anos de fundação do município, com direito a desfile cívico, banda de música tocando no coreto da Praça Conceição e discurso do prefeito, foi inaugurado o Cine Teatro Municipal. Cine, porque se tratava de um cinema, primeiro e único da cidade; Teatro, porque, além da tela panorâmica havia um palco com bastidores e dois camarins para os atores e atrizes; Municipal, porque, na falta de empresário que se dispusesse a investir em lazer, a prefeitura assumiu o empreendimento. Inclusive a prefeitura funcionava no mesmo prédio.

Mais de que lazer, mais do que lugar para se assistir um bom filme, mais do que um teatro com apresentações musicais e espetáculos de entretenimento, o Cinema, como nós o chamávamos, representou mudança de hábitos dos cidadãos, representou um profundo marco cultural que os habitantes da cidade adequaram às suas rotinas. Daí em diante, ir ao cinema era um programa familiar ou individual obrigatório, de acordo com interesses ou escolhas que passaram a existir. Por exemplo, marcava-se encontro com a pretensa namorada no Cinema, esta “guardava lugar” ao lado dela para o varão. Era ponto passivo, primeiro encontro sempre no Cinema, os pares que assim procediam “oficializavam” o namoro, até porque, “todos” os viam juntos e, dessa forma, não havia como fugir ao “compromisso”. Nos dias de hoje, se diria que ambos “queimavam o filme” para as possíveis futuras paqueras, estavam namorando e indisponíveis aos demais. Simples e definitivo, o Cinema havia criado um costume que definia claramente uma situação social. Um estranho ficaria em pé, mas jamais ocuparia um “lugar guardado” que a moçoila houvesse reservado ao eleito.

O Cinema também criou outros hábitos que não consigo explicar. Na Praça em frente existia uma banquinha de guloseimas que vendia girassol, sim, as sementinhas da planta com casca e tudo, só que torradinhas. Então, ir ao Cinema significava passar na banca e comprar um pacotinho de girassol para comer durante a sessão. Veja bem, praticamente todos os espectadores comiam a semente da Helianthus. Comia-se colocando a semente na boca e estalando a casca com os dentes de forma a liberar a polpa macia. Imaginem a cena, filme de suspense, momento de anticlímax, silêncio mortal na tela e trezentos expectadores estalando sementes de girassol nos dentes. Acredito que Hitchcock jamais cogitou uma cena dessas.

Minha experiência cinemal começou de maneira bem interessante. Na minha casa só podiam ir ao cinema nas tardes de domingos as crianças que soubessem ler, medida bem racional, visto que a maioria dos filmes era legendado e não havia porque uma criança analfabeta gastar o sofrido dinheiro do pai num espetáculo que não ia entender. Pois bem, estávamos no ano de 1953 e eu havia recém entrado no curso primário. Não sei como as demais crianças aprenderam a ler, mas, no meu caso, foi num átimo. Nos primeiros dias de março, logo nas primeiras aulas de alfabetização, a professora Lair Scheröder explicou as letras, a formação das sílabas e como estas formavam as palavras. Para mim foi “EUREKA!”, percebi que bastava conhecer as letras, juntá-las em forma de sons conhecidos e tínhamos qualquer palavra. Havia entendido o mecanismo daquela elementar gramática e passei a ler TUDO a partir dali. No domingo seguinte abordei meu pai para que ele me desse os dois cruzeiros necessários à compra do ingresso da matinê. Meu pai me olhou e disse: Como você quer assistir filme se não sabe ler? Está a apenas um mês na escola! Eu sei ler, respondi. Ele pegou um jornal que estava sobre a mesa e desafiou-me: Então leia isto. O jornal O Estado do Paraná trazia a manchete: “Preço internacional do café cai” em letras grandes. Passei a ganhar o dinheiro do ingresso a partir de então.

As crianças de minha rua eram todas filhas de operários das madeireiras, então, dinheiro para a obrigatória sessão dos domingos nem sempre existia. Nossa inventividade criava mecanismos para descolar a grana necessária, só que às vezes era impossível alavancá-la a tempo, então valia alguns expedientes pouco ortodoxos. Havia dois porteiros, um em baixo que cuidava da entrada da platéia (mais cara), e outro na parte de cima que fiscalizava a entrada do Balcão (mais barato). Seu César, o porteiro de baixo, costumava acompanhar o filme dando umas espiadas bem longas na tela, depois que a sessão começava. Era aí que alguns piás espertíssimos conseguiam se esgueirar rapidamente para dentro da sala de projeção, o mais das vezes percebidos pelo seu César, mas já se escafedendo pelo meio das poltronas sem chance de serem capturados. Essa modalidade de assistir filme de graça chamava-se entrar “de ratão”. Alguns guris eram tão confiantes nessa técnica que, mesmo tendo o dinheiro do ingresso, gastavam-no antes em refrigerantes e gibis e entravam “de ratão”. Existia uma variante dessa prática que permitia a entrada de vários garotos juntos. Consistia em sacrificar um deles que, ostensivamente, “tentava” entrar quando o porteiro estava atento. Seu César diga-se, sentia certo prazer sádico em impedir os moleques de burlar o Cinema, então corria atrás do contraventor, no qual aplicava uns cascudos, e os demais aproveitavam para adentrar o recinto correndo. A artimanha, que podia ser chamada de “boi de piranha”, era muito hilária para os expectadores. Esclarecendo, o guri “escalado” para levar os cascudos sempre tinha dinheiro para o ingresso, ele apenas participava da trama para facilitar a vida dos colegas “ratões”.

Como vetor cultural o Cinema era veículo inestimável. Os habitantes da cidade que já tinham visto filmes eram poucos, então não havia “massa crítica” suficiente para contrapor opiniões, declarar preferências, discutir o trabalho deste ou daquele ator, apaixonar-se por esta ou aquela atriz. O cinema, formador de opinião como se diria hoje, assegurou para os cidadãos de Palmeira a inserção no mundo oliudiano. Gary Cooper, James Stewart, Rock Hudson, Clark Gable e outros bonitões faziam os corações das moçoilas do velho burgo baterem em compasso acelerado. Já as preferências da piazada recaíam nas bem fornidas, Libertad Lamarque, Vivian Leigth, Zaza Gabor e Elisabeth Taylor. Eu, particularmente, gostava mesmo era da Ingrid Bergman, o nariz dela era espetacular.

Quando funcionava como Teatro, a casa trazia atrações como Mario Zam, sanfoneiro internacionalmente conhecido, hoje falecido. Mas a apresentação que mais marcou época foi a do hipnotizador Karl Maia, ele hipnotizou pessoas conhecidas da gente, e as vimos fazendo besteiróis no palco, tornou-se um espetáculo inesquecível até hoje.

Como veículo social, o Cinema apresentava uma sessão de filme grátis toda primeira segunda-feira do mês. Todos os assentos eram tomados, muita gente ficava em pé e outros sentavam nos corredores entre as cadeiras. Nossos conterrâneos que moravam nas vilas rurais vinham em carroças, cavalos ou a pé para ver os filmes, em geral filmes nacionais os quais facilitavam a compreensão pelos analfabetos que, creio, eram maioria naquelas populações. Viva o Cinema! JAIR, Floripa, 20/01/11.