segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Resoluções


Que o nascer de um novo ano nos traga um momento de reflexão sobre o que fizemos neste ano que finda, e o que esperamos para os doze meses que seguem.

Se comemos muito, bebemos muito e pouco olhamos para a miséria que nos cerca, moderemos nossos excessos e mitiguemos a fome daqueles que tanto necessitam;

Se vimos muita televisão, compramos tantas coisas desnecessárias e deixamos de ler tantos livros, lembremos de frequentar mais livrarias e menos as lojas dos shoppings;

Se tivemos pouco cuidado com o lixo que descartamos na natureza, queimamos gasolina demais em nossos automóveis, passemos a ser cuidadosos em nossos descartes de sobras e andemos mais a pé;

Se nos estafamos demais, corremos sem sentido na busca de ter mais e negligenciamos o lazer, busquemos um maior contato com as coisas simples e cuidemos de ir ao cinema e ao teatro mais vezes;

Se nos preocupamos muito com trabalho, deixamos de cumprimentar as pessoas, mesmo desconhecidas, nos elevadores e nas ruas, paremos dez segundos para pensar que somos seres sociais e assim nos comportemos.

Se dinheiro, posição e status foram coisas importantes na nossa vida, demos chance para as pequenas coisas do dia-a-dia, para a atenção aos animais, plantas, flores, crianças e idosos, e não nos esqueçamos dos crepúsculos;

Se pouco ligamos para a qualidade de vida, deixamos de ir ao médico e descuidamos dos exames periódicos necessários, retomemos nossas consultas e coloquemos em dia nossas vacinas;

Se nos comportamos com intolerância, fomos ranzinzas e mal humorados, será hora de apresentarmos urbanidade e compreensão para com todos com os quais convivemos, e àqueles que cruzam nosso caminho;

Se negligenciamos em aprender, em adquirir conhecimentos novos, procuremos fontes de informação que nos mantenham atualizados com as conquistas tecnológicas e, principalmente, humanitárias;

Vivamos mais, viver sempre vale a pena se todos os dias pudermos sorrir e distribuir sorrisos para aqueles nos cercam. Lembremos que Gautama sentenciou: "Quando nasceste todos riam, só tu choravas, vivas de tal modo que quando morreres todos chorem, só tu rias". Viver é preciso. Navegar, nem sempre. JAIR, Floripa, 27/12/10.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Destruindo o Planeta


Em outros textos já mencionei a ação deletéria do Homo sapiens em relação ao Planeta que o acolhe com tanta fartura e segurança. Já comparei o homem a um inquilino desmazelado e egoísta que só vê a si mesmo, e que maltrata a senhoria dadivosa a qual, algum dia, poderá perder a paciência e despejar esse morador incômodo.

O certo é que nosso acelerado crescimento demográfico, nosso desmedido uso de energia, a urbanização desorganizada e o emprego de novos materiais para satisfazer nossos ideais de consumo, estão num curso de colisão que deverá alterar, talvez além de um ponto de retorno, os sistemas naturais de recuperação de nosso Planeta, ameaçando a sobrevivência biológica do Homo e de todas as criaturas vivas. Hoje quando apenas metade da humanidade entrou na era tecnológica, as pressões são monumentais por parte daqueles que querem sua fatia do bolo. Explico. É natural que o ser humano almeje algo que ele chama de progresso, ninguém quer viver sem água encanada, luz elétrica, telefone, urbanização e todas as demais comodidades que a ciência pôs a disposição das pessoas. Contudo, os recursos naturais, quaisquer que sejam, não são permanentes, eles se esgotam. Por exemplo, há consenso entre os cientistas que os peixes e demais seres marinhos que nos servem de alimentos, deixarão de ser viáveis para pesca dentro de quarenta anos, ou seja, em quatro décadas não mais poderemos contar com frutos do mar em nossos cardápios, os pescados estarão virtualmente extintos.

Pois bem, hoje com algo em torno de seis bilhões de habitantes no Planeta, já vislumbramos inúmeras fontes de alimentos e de geração de energia sendo exterminadas. Então vejamos, com metade da população exigindo sua cota de progresso; níveis de consumo cada vez mais altos; e uma população de dez bilhões de seres pensantes daqui algumas décadas, a conta não vai fechar mesmo. Os riscos estão sendo equacionados com metade da população que apenas elevou sua demanda um pouco acima do homem neolítico. Mas suponhamos que dez bilhões tratem de viver como europeus ou japoneses, aliás, a China dá mostras que quer elevar o patamar de consumo daqueles bilhões que lá vivem. Suponhamos que o ideal de consumo seja o padrão americano com quase um automóvel para cada pessoa. Iríamos elevar o nível de monóxido de carbono a algo difícil de equacionar, mas, certamente, acima do suportável pelos nossos pulmões e pela natureza. Suponhamos que dois terços dos menos aquinhoados mudem para as cidades, buscando nelas os níveis de uso energético e consumo materiais do mundo desenvolvido. Não há maneira de solucionar tal equação.

Mas, neste caso, o que irá acontecer? Um aumento de Consumo? Sim, mas de onde tirar esse consumo? Demanda de comodidades urbanas? Sim, mas como? Ou será que existe alguma solução mágica pela qual o maltratado Planeta, tirando um coelho da cartola devolverá à natureza sua condição primeira e saudável? A ninguém é dada a capacidade de responder.

Em conclusão, existem dois mundos que interagem: A biosfera que o homem herdou e tecnosfera que ele criou. Esses dois mundos estão em desequilíbrio, ou melhor, estão em conflito aberto e total, e, até agora, a biosfera está apanhando de cano de ferro. E o incauto Homo sapiens, a exemplo do marisco entre o mar e a rocha, está no meio da briga. Esta é conjuntura da História na qual estamos vivendo. Um vislumbre do futuro abrindo-se para uma crise total e irreversível. Uma crise global maior e mais perversa do que qualquer outra já defrontada pela espécie humana. Que tomará forma decisiva dentro do lapso de vida das crianças que já nasceram. Alguém duvida? JAIR, Canoas, 25/12/10.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cavalaria aérea


Normal, cada entidade, cada órgão, cada repartição, cada empresa pública tem sua característica, tem seu jeito de funcionar ou de apresentar-se. Dentro dessa definição de particularidade, inerente não só à função da entidade, mas também das características até geográficas, cada Base Aérea desse Brasil varonil é uma base diferente das suas congêneres. Portanto, há bases mais administrativas como Brasília com seus aviões executivos: outras guerreiras com Santa Cruz que abriga grupos de caça; e outras mistas que abrigam esquadrões guerreiros e repartições administrativas, como a maioria é constituída.

Assim, a Base Aérea de Canoas era uma base mista com um esquadrão de caça, o 1º/14º Grupo de Aviação, o 5º Esquadrão de Transporte Aéreo e o 3ª ECA, Esquadrão de Controle e Alarme. A BACO, com é chamada, sempre foi uma base imponente e agitada com seus Gloster Meteor (F-8) e Dakotas (C-47) pousando e decolando a toda hora. Os céus de Canoas e as vidraças das casas eram sacudidos a todo momento pelo barulhentos motores Rolls-Royce de compressor centrífugo que equipavam as aeronaves F-8; em terra, a BACO era animada e uma unidade bem interessante de servir na década de sessenta, quando por lá trabalhei.

Lembro que as instalações físicas da Base eram bem distribuídas, com seus hangares situados distantes uns dos outros, mas juntos aos amplos pátios de fácil acesso às pistas de táxi; os prédios administrativos rodeavam o epicentro da Base onde havia uma praça com o indefectível avião obsoleto sobre pedestais – no caso um belo P-40 que havia sido substituído pelo F-8 quando a caça entrou na era do jato. Nessa praça existia um laguinho ornamental com água corrente povoado de peixes. Havia lambaris, carás, mandis, bagres e até alguns peixes menos conhecidos. O lago era xodó do vice-comandante, Tenente Coronel Romildo, o qual, segundo contava-se, havia trazido a maioria daqueles espécimes, de rios da região onde costumava pescar. Pois é, estava eu uma tarde depois do expediente, dando restos de lanche para os peixinhos quando fui flagrado pelo TC Romildo, o qual notando meu interesse nos ditos incumbiu-me, a partir daquele dia, de alimentá-los com iscas de carne que eu estava autorizado a pegar com o cozinheiro no rancho dos Oficiais. De certa forma passei a ser o tratador oficial dos peixes dalí em diante, nada mal, pois isso me permitia uma certa intimidade com o cozinheiro e, às vezes, essa relação acabava proporcionando alguma comida um pouco melhor por baixo do pano e fora dos horários normais de refeições.

Então, com todas suas particularidades a BACO seria apenas mais uma Base Aérea sem maiores distinções de outras tantas bases espalhadas pelo país, se não fosse um detalhe: A BACO possuía uma Patrulha Montada, isso mesmo, o leitor não leu errado, a Base de Canoas tinha uma ativa e solene Esquadrilha de Cavalaria. Não uma esquadrilha em que helicópteros substituem cavalos como a Esquadrilha do Coronel Kilgore (Robert Duvall) do filme “Apocalipse Now” de Copolla, mas uma tropa montada que patrulhava a Base. A PM, como era conhecida, constituía-se de cavalariças, potreiros, instalações para silagem de alfafa, alojamentos para os cavaleiros, serviço veterinário e um plantel de uns vinte e tantos cavalos e éguas das melhores raças. A esquadrilha era virtualmente comandada pelo sargento Brinholis que, embora do quadro de infantaria, saía-se muito bem como cavalariano por ter sido peão de fazenda em sua juventude nas coxilhas gaúchas. Ele se orgulhava de suas habilidades hípicas e não fazia segredo disso. Nominalmente era um oficial que comandava a esquadrilha, mas este, em geral, não tinha intimidade com os equídeos, de forma que delegava toda e qualquer decisão ao sargento Brinholis que adorava o que fazia. Por ocasião dos recrutamentos, dentre os soldados perguntava-se quais gostariam de trabalhar com os cavalos, e os voluntários passavam então a fazer parte da Cavalaria Aérea, se esse nome cabia. Diga-se que não nada difícil encontrar efetivo para a atividade equestre, porquanto muitos soldados eram oriundos dos pampas e afeitos às lides cavalarianas desde o berço, por assim dizer.

Aos visitantes que lá chegavam durante o inverno, poderia parecer bem estranho aqueles centauros, seres metade cavalo metade humanos, cobertos com uma grande capa que deixava apenas a cabeça do ginete e os pés e cabeça do animal de fora, fazendo ronda no perímetro imerso em neblina da Base. Essa imagem era comum para nós, os militares que lá servíamos, mas inusitada para os viajantes não afeitos às idiossincrasias da BACO que, sob o aspecto do inusual, ganhava de qualquer estranheza que outra base pudesse apresentar.

Entretanto, por volta da época em que os F-8 foram desativados, substituídos por F-33 em 1971, embora a cavalaria aérea se justificasse como instrumento ágil para rondas eficientes na periferia da base, grande parte dos aviadores de caça, afeitos à tecnologia de ponta, não conseguia entender porque usar cavalos, quando jipes fariam a mesma coisa com mais agilidade e menos despesas. Além disso, na opinião deles, a cavalaria era démodé, algo arcaico e pertencente a um passado perfeitamente descartável em nome da modernidade. Parece que as autoridades de Nova Iorque não concordam com essa opinião, pois até agora no século vinte e um, as ruas centrais daquela cidade são patrulhadas por duplas de cavalarianos. Além disso, no Canadá existe a lendária Polícia Montada que desmente qualquer ranço de atavismo que por ventura possa existir a respeito de cavalos. Em consequência, a cavalaria foi desativada nos anos setenta e nem sequer teve a despedida solene que merecia, os cavalos foram doados a quartéis do Exército e as instalações passaram a ser usadas como depósito de suprimentos.

Finalmente parece que, num viés ecológico, a racionalidade voltou à mente dos mandantes atuais da BACO, a Patrulha Montada voltou a funcionar. A partir do início de 2010 está em plena atividade rondando as cercanias da Base. Sem bairrismo, acredito que a cavalaria confere romantismo e um charme especial à Base de Canoas, e creio essa distinção é o que a torna única inter pares. JAIR, Canoas, 23/12/10.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A bomba do fim do mundo


Para entendermos como funciona o mais poderoso artefato que o homem já construiu, temos que adentrar ao núcleo do átomo e ver como funciona a conversão de matéria em energia. Primeiro vamos àquele modelo simplista de átomo que Niels Bohr concebeu: Com elétrons com carga negativa orbitando um núcleo composto de prótons com carga positiva e nêutrons naturalmente neutros, tudo em equilíbrio relativo. Porém, como se mantém unido o núcleo, somente com prótons negativos e nêutrons? Os prótons, sem força oponente, deveriam estar se repelindo mutuamente de forma a separar-se. Mas não o fazem, de forma que os físicos chegaram à conclusão que existe uma ligação poderosa que os une, ligação que eles chamam de “força nuclear forte”. Quando certos núcleos são divididos, a energia que liberam representa a mais poderosa produção de energia que se conhece.

Podemos fazer uma analogia: O núcleo seria como uma porta provida de uma mola muito forte. Teríamos que fazer um grande esforço para abrir a porta. Contudo, no momento que a soltássemos ela se fecharia com grande ímpeto, provavelmente com uma violenta pancada. Essa porrada é a energia correspondente aos prótons e nêutrons que foram separados e reúnem-se em outro núcleo. Essa energia é a base da fissão (Bomba atômica) e da fusão (Estrelas e Bomba de hidrogênio).

Como já escrevi antes, o processo de fissão foi usado para se construir as bombas que destruíram duas cidades japonesas durante a guerra, e a maioria das bombas que compõe os arsenais nucleares de vários países deste Planeta. No processo, um número suficiente de nêutrons bombardeia certa quantidade de plutônio ou urânio explodindo os núcleos dos átomos, liberando pressão e calor em quantidades inimagináveis. Isso é assim nas chamadas bombas atômicas. Agora vejamos a partir daí. Cerca de dez anos depois da primeira bomba de fissão, consoante com a teoria desenvolvida por Leo Szilard, o qual havia proposto a reação em cadeia, a pressão e o calor gerado por uma bomba atômica foram usados para detonar o que seria a bomba do fim do mundo. O processo de fusão ocorre no interior das estrelas, onde, devido à imensa força gravitacional, os núcleos de dois átomos de hidrogênio se fundem formando um átomo de hélio.

No nosso dia-a-dia estamos habituados a pensar e admitir três estados da matéria: sólido, líquido e gasoso. Contudo existe um quarto estado ao qual os físicos deram o nome de “plasma”. Com ele se designa um estado da matéria quando submetida a temperaturas muito superiores a 2500° C, e é possível que hidrogênio em estado de plasma seja a matéria mais abundante do Universo. Sabemos através de rádios telescópios e pelo incrível Hubble que nosso Universo se compõe de bilhões de galáxias e que cada uma contém bilhões de estrelas que, neste momento, estão convertendo zilhões de toneladas hidrogênio em hélio e liberando a energia resultante dessa fissão. Recebemos aqui na Terra algo em torno 1/2.000.000.000 da energia que o sol produz e, desse montante, aproveitamos menos de um por cento. Contudo, essa ínfima quantidade de luz e calor dá condições para que haja vida no Planeta com toda essa abundância que conhecemos.

A nossa humilde estrela, o Sol, transforma a cada segundo, mediante o processo de fusão, 657 milhões de toneladas de hidrogênio em 653 milhões de toneladas de hélio. As quatro milhões de toneladas restante não se perdem, são lançadas como energia radiante no espaço. É assim que a famosa equação de Einstein: E=mc², cuja explicação é que a energia de um objeto é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz, funciona diariamente para nossa sobrevivência.

Apesar desses números literalmente astronômicos, aqui na terra já se consegue reproduzir esse processo estelar. A bomba termonuclear de fusão – a chamada bomba de hidrogênio – explodiu pela primeira vez em 1952, utilizando como detonador uma bomba nuclear de urânio 235 para produzir um lampejo de calor tão intenso a ponto de fundir o hidrogênio, transformando-o em hélio e, portanto, capaz de liberar exatamente o tipo de energia gerada no interior do Sol e de todos os bilhões de estrelas do Universo. E, claro, produzindo também todo o tipo de outros riscos à vida do Planeta que algo tão terrível assim traz em seu bojo. A verdade é que a bomba do fim do mundo não foi assim chamada por Leo Szilard por mero acaso, pois ao contrário do Sol, cujos raios são diretamente responsáveis pela vida na Terra, a bomba “H” não tem outra função a não ser aniquilar a vida e tudo que dá suporte a ela. Podemos deduzir, a partir da fusão nuclear, uma dialética da física, se é que tal expressão possa existir: A energia que tornou possível nossa existência é a mesma que poderá nos destruir algum dia. JAIR, Floripa, 19/12/10.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Utopia tropical


Vila dos empregados da Fordlândia.

Em 1928, Henry Ford, como parte de um sonho utópico de formar um novo homem livre que adotasse a tecnologia, mas amasse as coisas simples e gostasse de agricultura, intentou criar na margem direita do Tapajós, no Pará, a cidade de Fordlândia, adjacente a uma plantação de seringueiras que dariam a Ford a tão sonhada autonomia na fabricação de pneus e outros artefatos de borracha, então dependentes de látex produzido na Malásia sob o domínio inglês.

Desde que Henry Wickham, em 1876, contrabandeou 70 mil sementes de Hevea brasiliensis (seringueira) da Amazônia para os Reais Jardins Botânicos de Londres, onde foram transformadas em mudas e usadas em plantações na Ásia, o chamado “ciclo da borracha” havia definhado e entrado em franca extinção de modo que noventa por cento da borracha do mundo, agora vinha de plantações organizadas na Malásia e Indonésia. O ciclo da borracha havia proporcionado à região amazônica o mais espetacular surto de desenvolvimento já observado; ruas de Manaus e Belém foram pavimentadas com pedras vindas da Europa; O monumental Teatro Amazonas, além de ter sido construído segundo desenho arquitetônico do velho mundo, apresentava espetáculos com troupes vindas de Paris, Roma e Viena. A vida chique nas capitais da borracha rivalizava com as mais chiques da Europa. A Amazônia começou sua longa queda para a estagnação econômica quando as primeiras árvores de Hevea começaram produzir látex de boa qualidade no Oriente. Registre-se que para nós, vilão, Wickham foi nomeado cavalheiro pela Rainha Vitória, garantindo seu lugar na história como herói imperial britânico.

O bilionário Ford havia enriquecido com a fabricação de carros, no caso o ford modelo “T”, e diversificado seu império industrial. Por volta dos anos vinte detinha o monopólio de quase todas as matérias primas utilizadas nas suas indústrias que incluíam além da fabricação de carros, tratores, barcos, grupos geradores, locomotivas, aviões e implementos agrícolas; havia adquirido também a Lincoln Continental, produtora de carros de luxo. Suas fontes de matérias primas e insumos provinham de minas de ferro, de níquel e estanho, florestas e madeireiras, fazendas, fundições, represas e usinas, tudo propriedade do grupo Ford, empresa de capital fechado que não negociava suas ações na bolsa. HF, como era tratado pela imprensa, não acreditava em intervenção de governos ou protecionismos fiscais, achava que as leis de mercado eram soberanas e regulariam as relações da indústria com o consumidor por si só.

A depressão que teve início em 1929, a qual desorganizou a economia do mundo, pouco afetou suas indústrias, partidário de colocar o dinheiro “debaixo do colchão”, ou seja, não costumava especular, suas fábricas apenas passaram a fabricar menos e diminuíram um pouco os salários, no mais, continuaram sólidas. Ford era anti-semita e acusava os banqueiros (judeus, segundo ele) de construírem riqueza ilusória, de que seus lucros não provinham de atividade producente, eram apenas montes de papel escrito sem qualquer conteúdo. Costumava dizer que a depressão foi a melhor coisa que aconteceu à economia americana. Self made man típico e assumido, Ford, tinha que comer na mão dos ingleses e holandeses que detinham o monopólio na produção de borracha, e esse quadro ele estava determinado a mudar. Thomas Edson, amigo íntimo de Ford e grande inventor, estava incumbido de descobrir uma fórmula de fabricar borracha através da transformação química de qualquer coisa, até de legumes se fosse preciso. Aliás, numa ocasião Ford comprou um caminhão de cenouras e o descarregou no laboratório de Edson para que ele tentasse alguma coisa com esses tubérculos. O inventor nada conseguiu. Havia boatos que os russos tinham conseguido borracha sintética a partir de derivados de petróleo, mas Edson disse que isso não era possível e Ford acatou. Então, as indústrias Ford só estariam a salvo dos ingleses e holandeses se plantassem seus próprios seringais. Inicialmente cogitou-se de plantar as Hevea na Libéria, mas segundo assessores, lá os cidadãos não eram da cor certa, eram ex-escravos e não eram confiáveis. Falou-se em América Central, mas não era garantido que as seringueiras conseguissem ser produtivas naquele pedaço do mundo. Por último e com certa obviedade, optou-se pelo Brasil, a Amazônia era o berço das seringueiras e existia muita terra para plantá-las.

O magnata era adepto de Emerson e acreditava que a prosperidade era o caminho da felicidade, seu mundo ideal incluía trabalhadores ganhando bem e comprando os produtos que eles próprios ajudavam a produzir. Além disso, a agricultura era a raiz da civilização e todos deveriam dedicar-se ao cultivo doméstico como forma de bem alimentar-se e terem uma vida saudável. É ocioso lembrar que Ford era contra bebidas e admitia carne como alimento só se não houvesse opção vegetariana, não gostava de vacas e de leite, só admitia leite de soja. Também acreditava em pequenas cidades auto-suficientes nas quais seus habitantes trabalhariam para ele e, nas horas de folga, cultivariam a terra para si. Ford havia fundado muitas vilas de empregados às margens do rio Tennessee, mesmo a revelia do poder central, vilas que eram seus laboratórios práticos para experimentação de suas ideias libertadoras.

Então, quando surgiu a ideia da plantação de seringais no Brasil, por que não usar a oportunidade para implantar sua utopia empresarial humanitária? Depois de marchas e contra marchas, prepostos de Ford acertaram com o governo paraense a aquisição de 400 mil hectares de terras na margem direita do Tapajós, berço dos maiores seringais naturais do Planeta. Assim estava aberta a porta para a utopia do fordismo.

Bem, adquiridas as terras, surgiram os verdadeiros problemas: logística extremamente dificultada pelas condições da selva; administração de pessoal para o trabalho de desmatamento; adaptação da visão fordiana ao meio; choque cultural entre administradores americanos e ribeirinhos brasileiros pouco afeitos a trabalhos com relógio de ponto; adaptação dos trabalhadores brasileiros à comida fordiana que ele insistia que consistisse de mingau de aveia, vegetais e leite de soja; adaptação dos agentes americanos ao clima e meios disponíveis para o trabalho. Nada dava certo, contudo, o que mais errado deu foi a plantação de seringueiras. Existe uma razão pela qual as seringueiras na Amazônia não crescem umas pertos das outras, crescem espalhadas entre árvores de outras espécies, os predadores têm mais dificuldade em se proliferar. A plantação monocultural facilitou a vida dos predadores que atacaram as árvores e não deixaram folha sobre folha. No oriente onde não existiam predadores naturais, as seringueiras podiam ser plantadas de maneira adensada e se tornaram muito produtivas, na Amazônia isso era impossível. Como Ford não acreditava em peritos, achava que só se conseguia alguma coisa fazendo e depois vendo o resultado, deixou de contratar botânicos que teriam selecionado mudas de árvores resistentes às pragas e, com isso, o biliardário deixou alguns milhões de dólares enterrados para sempre nas selvas brasileiras. Mas isso merece outro texto, até lá. JAIR, Floripa, 19/12/10.