Palmeira, não mais, e também não menos, que outras cidades também pequenas e também provincianas, sempre teve uma sociedade estratificada: ricos, remediados, pobres e os outros, estes, inqualificáveis, algo assim como os párias da sociedade indiana. A pirâmide social da cidade era um sólido geométrico degenerado, vértice fino como agulha, terço superior alongado, corpo robusto e base achatada. Ou seja, pouquíssimos muito ricos, alguns remediados, muitos pobres e outros vergando sob o peso monumental daquela Quéops nas costas raquíticas.
Mas não é de demografia que quero falar, é sobre aqueles elementos menos citados quando se fala da história da cidade. Aqueles indivíduos, geralmente oriundos da base da pirâmide, que pela sua opção de vida, geralmente opção pela liberdade, pela livre iniciativa de viver sem muitas regras, são considerados marginais.
Já tive oportunidade de falar sobre alguns desses párias sociais como, Pé-de-bicho, Juvenal Sapo e Bacilo, este mereceu uma referência especial porque se deixou imolar em nome de um amor não correspondido. Hoje quero lembrar de outros dois exemplares marginais que não deixaram rastros.
É quase regra nessas cidades pequenas, talvez nas grandes também, que existam beatos e beatas exacerbados, inofensivos e ativos que sobressaem por sua dedicação aos ritos religiosos, não importa quais. No velho burgo palmeirense, Bom Luiz e Ximbica, dois marginais religiosos, disputavam a liderança na dedicação que mostravam às suas causas.
Bom Luiz, ou Bão Luiz como o vulgo o chamava, cujo nome de batismo era Luiz, mas cujo sobrenome ninguém sabia, talvez nem ele mesmo, era conhecido pela sua obsessão pelo puro e simples peripatetismo militante. Costuma andar sem parar sequer para um descanso ou gole d’água, durante muitas horas, algo assim como das oito da manhã até as cinco da tarde. Caminhava de Palmeira a uma das localidades próximas, São João do Triunfo, Porto Amazonas, Mandaçaia ou outra qualquer, não importava, a passos largos rezando em voz alta, eram vinte ou trinta quilômetros nos quais Bom Luiz colocava toda a concentração do mundo e parecia que limpava-se de pecados. Era um auto penitente.
Já, o outro, o Ximbica, tornara-se voluntário dos afazeres da igreja católica e a eles se dedicava em tempo integral, se alguém quisesse encontrá-lo bastava se dirigir à igreja e lá ele estava. Ximbica era o que se costuma chamar de baixinho, talvez um metro cinquenta ou menos, quase anão, mas tinha energia de gente grande estava sempre ativo e pronto para ajudar os padres,
O que tornava essas duas insólitas figuras dignas afamadas nos círculos palmeirenses, era a disputa ferrenha para carregar a cruz nos enterros que eram feitos a pé naquele tempo. Quando morria um morador da cidade, sem que ninguém os avisasse ou convidasse, os dois apareciam no velório, que lá era chamado de guardamento, e o que chegava primeiro se apossava da cruz e não largava mais. No ato de traslado do corpo até o cemitério, era costume que um condutor fosse à frente do cortejo conduzindo uma cruz, e assim aquele que havia se apossado dela primeiro seria esse condutor. O cômico da situação é que, algumas vezes, ambos, Ximbica e Bão Luiz, chegavam ao mesmo tempo ao guardamento e daí o pau comia. Não foram pouca as vezes que eles chegaram às vias de fato como se dizia. Chegava-se a dizer que alguns gozadores comunicavam a morte de alguém a ambos ao mesmo tempo para que sua chegada ao local do defunto se fizesse simultaneamente de modo que houvesse conflito.
Pois é, corria a vidinha dos dois beatos assim, até que um dia ambos foram encontrados mortos no cemitério. Mistério. Nem tanto, no dia anterior houvera um enterro em que ambos disputaram a cruz como sempre. Parece que Ximbica ganhou, mas Luiz não se conformou. Depois que o falecido desceu à cova, foi devidamente coberto de terra e os acompanhantes se retiraram do cemitério, Ximbica, como era seu costume, ficou mais um pouco para ter certeza que tudo estava nos conformes. Foi nessa hora, deduziram as autoridades, que Bão Luiz chegou para tirar satisfação e eles entraram em luta corporal. Cada um muniu-se de uma cruz de madeira, das que abundavam naquele cemitério, e a agressão tomou vulto. Ambos conseguiram ferir um ao outro com gravidade na cabeça e os dois caíram inertes no chão onde morreram dos ferimentos. Acabava assim a vida de dois “libertos”, dois seres que não se enquadravam e que viveram suas vidas sem peias. Tragicamente um rebentara a cabeça do outro com uma cruz, símbolo de suas discórdias durante suas vidas. Agora, os dois que haviam sido “libertos” durante a vida, haviam escolhido de livre vontade a forma de morrer, continuaram usufruindo sua liberdade na eternidade. Os enterros em Palmeira nunca mais foram os mesmos desde então, inclusive o enterro duplo dos dois rivais que não teve quem levasse a cruz. JAIR, Floripa, 01/12/11.
Mas não é de demografia que quero falar, é sobre aqueles elementos menos citados quando se fala da história da cidade. Aqueles indivíduos, geralmente oriundos da base da pirâmide, que pela sua opção de vida, geralmente opção pela liberdade, pela livre iniciativa de viver sem muitas regras, são considerados marginais.
Já tive oportunidade de falar sobre alguns desses párias sociais como, Pé-de-bicho, Juvenal Sapo e Bacilo, este mereceu uma referência especial porque se deixou imolar em nome de um amor não correspondido. Hoje quero lembrar de outros dois exemplares marginais que não deixaram rastros.
É quase regra nessas cidades pequenas, talvez nas grandes também, que existam beatos e beatas exacerbados, inofensivos e ativos que sobressaem por sua dedicação aos ritos religiosos, não importa quais. No velho burgo palmeirense, Bom Luiz e Ximbica, dois marginais religiosos, disputavam a liderança na dedicação que mostravam às suas causas.
Bom Luiz, ou Bão Luiz como o vulgo o chamava, cujo nome de batismo era Luiz, mas cujo sobrenome ninguém sabia, talvez nem ele mesmo, era conhecido pela sua obsessão pelo puro e simples peripatetismo militante. Costuma andar sem parar sequer para um descanso ou gole d’água, durante muitas horas, algo assim como das oito da manhã até as cinco da tarde. Caminhava de Palmeira a uma das localidades próximas, São João do Triunfo, Porto Amazonas, Mandaçaia ou outra qualquer, não importava, a passos largos rezando em voz alta, eram vinte ou trinta quilômetros nos quais Bom Luiz colocava toda a concentração do mundo e parecia que limpava-se de pecados. Era um auto penitente.
Já, o outro, o Ximbica, tornara-se voluntário dos afazeres da igreja católica e a eles se dedicava em tempo integral, se alguém quisesse encontrá-lo bastava se dirigir à igreja e lá ele estava. Ximbica era o que se costuma chamar de baixinho, talvez um metro cinquenta ou menos, quase anão, mas tinha energia de gente grande estava sempre ativo e pronto para ajudar os padres,
O que tornava essas duas insólitas figuras dignas afamadas nos círculos palmeirenses, era a disputa ferrenha para carregar a cruz nos enterros que eram feitos a pé naquele tempo. Quando morria um morador da cidade, sem que ninguém os avisasse ou convidasse, os dois apareciam no velório, que lá era chamado de guardamento, e o que chegava primeiro se apossava da cruz e não largava mais. No ato de traslado do corpo até o cemitério, era costume que um condutor fosse à frente do cortejo conduzindo uma cruz, e assim aquele que havia se apossado dela primeiro seria esse condutor. O cômico da situação é que, algumas vezes, ambos, Ximbica e Bão Luiz, chegavam ao mesmo tempo ao guardamento e daí o pau comia. Não foram pouca as vezes que eles chegaram às vias de fato como se dizia. Chegava-se a dizer que alguns gozadores comunicavam a morte de alguém a ambos ao mesmo tempo para que sua chegada ao local do defunto se fizesse simultaneamente de modo que houvesse conflito.
Pois é, corria a vidinha dos dois beatos assim, até que um dia ambos foram encontrados mortos no cemitério. Mistério. Nem tanto, no dia anterior houvera um enterro em que ambos disputaram a cruz como sempre. Parece que Ximbica ganhou, mas Luiz não se conformou. Depois que o falecido desceu à cova, foi devidamente coberto de terra e os acompanhantes se retiraram do cemitério, Ximbica, como era seu costume, ficou mais um pouco para ter certeza que tudo estava nos conformes. Foi nessa hora, deduziram as autoridades, que Bão Luiz chegou para tirar satisfação e eles entraram em luta corporal. Cada um muniu-se de uma cruz de madeira, das que abundavam naquele cemitério, e a agressão tomou vulto. Ambos conseguiram ferir um ao outro com gravidade na cabeça e os dois caíram inertes no chão onde morreram dos ferimentos. Acabava assim a vida de dois “libertos”, dois seres que não se enquadravam e que viveram suas vidas sem peias. Tragicamente um rebentara a cabeça do outro com uma cruz, símbolo de suas discórdias durante suas vidas. Agora, os dois que haviam sido “libertos” durante a vida, haviam escolhido de livre vontade a forma de morrer, continuaram usufruindo sua liberdade na eternidade. Os enterros em Palmeira nunca mais foram os mesmos desde então, inclusive o enterro duplo dos dois rivais que não teve quem levasse a cruz. JAIR, Floripa, 01/12/11.
5 comentários:
E quem sabe não sejam esses os lúcidos e nós os pobres de espírito...
Abraços, Jair. E mais uma vez, boas festas!
Ao ler sua postagem, lembrei-me do conto de Machado de Assis: 'O Alienista'...
Parabéns, ótimo texto!!!
Abraços...
MM data mais tarde ....... Rapaz ! Isso é que é um " conto de Natal " !!
Olho vivo por que a família do saudoso Guimarães Rosa está de olho em concorrentes, mesmo que o "cerrado", ou as "estepes sulinas" (no caso versado hoje) não sejam análogas !!
Trágica história, que bem poderia ser mais um capítulo de "Cidades Mortas" de Monteiro Lobato!
Palmeira parece ter muitas histórias e graças às tuas lembranças, podemos usufruir dessas que divides conosco!
Abraços, Jair!
Jair,
mais um episódio cruento da Palmeiras que acolheu teus primeiros vagidos. Nós teus leitores já conhecemos desta terra paranaenses histórias macabras, como aquela em que se comercializou as famosas (e ditas apetitosas) conservas de carne humana.
Mais uma vez sonegas detalhes que devem ser preciosos: ¿como foi o duelo onde espadas foram substituídas por cruzes? Ou ¿como foram as pompas fúnebres, o guardamento e as missas de 70 dia dos dois libertos?
No aguardo
attico chassot
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