segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Peixe boi

O pacífico e vegetariano peixe-boi amazônico é quase um ícone daquela região, não só porque foi caçado quase até a extinção, mas por se tratar de um mamífero aquático de características únicas. Segundo revela pesquisa de seus DNAs mitocondriais, todos os animais da família dos Sirenios como o peixe-boi amazônico, o manati, a vaca marinha africana e o dugongo são descendentes de animais terrestres que retornaram à água. Contrariando a história da evolução que registra a vida inicialmente surgindo nos mares e, posteriormente, adaptando-se a terra, alguns animais, inexplicavelmente saudosos da vida aquática, fizeram a viagem de volta e tornaram-se mamíferos marinhos como as baleias e os golfinhos. Mas quem eram esses retornantes? Ainda não se sabe, não há registros fósseis confiáveis que indiquem com precisão qual a morfologia das espécies que se adaptaram, contudo, abundam indícios que se tratava de paquidermes possivelmente anfíbios parecidos com hipopótamos e, quase certamente, parentes distantes destes.
A informação mais interessante acerca desses mamíferos aquáticos diz respeito justamente a seus ancestrais. Os testes revelam que animais, cujo habitat é tão distante como os dugongos que vivem no sul da Austrália e os peixes-bois amazônicos, são descendentes de uma mesma linhagem, isto é, seus ancestrais são comuns. Isso tanto pode revelar que suas origens remontam a Gondwana, o supercontinente que teria antecedido a atual distribuição de terras secas no Planeta, como pode indicar que houve uma migração de longuíssima distância por parte desses animais, o que parece bem pouco provável.
De qualquer forma, a docilidade e a lentidão de movimentos dos peixes-bois quase os levaram a extinção. Os ribeirinhos da Amazônia viam (alguns ainda veem) no animal uma formidável fonte de proteínas de fácil acesso, de modo que a caça era generalizada, não respeitando quaisquer regras. Aproveitavam-se quando os animais vinham à tona respirar, colocavam em suas narinas tampões que os sufocavam, de modo que os bichos permaneciam na superfície o tempo necessário para serem mortos a pauladas. A crueldade da caça e o grande número de mamíferos abatidos levou as autoridades a proibir sua caça. Ainda que a proibição continue em vigor, é bastante normal no Mercado Público de Manaus, encontrarmos bancas de peixe vendendo carne de peixe-boi. A desculpa dos comerciantes é que o mamífero enroscou-se em uma rede destinada à captura de peixes e acabou se afogando, daí os peixeiros estarem aproveitando sua carne para comercialização.
O nosso peixe-boi é o único Sirenio que vive exclusivamente em água doce, os demais vivem em estuários onde as águas dos mares se misturam com as dos rios, ou vivem somente em água salgada. Por isso, como o manati é encontrável desde o litoral da Bahia até a Flórida, há uma zona de interseção de habitats nos deltas do Orinoco e do Amazonas onde o peixe-boi acaba convivendo com o manati. Pesquisadores do museu Emílio Goeldi de Belém encontraram, próximo a ilha de Marajó, um espécime que traz características de ambas as espécies, denotando que, mais do que convivência, houve cruzamento entre o manati e o peixe-boi. Embora o primeiro possa pesar até oitocentos quilos e o segundo não passe de trezentos. Como a natureza é sábia e não permite que a evolução dê saltos, o híbrido de duas espécies distintas como cavalo e asno, por exemplo, não é fértil, sua probabilidade de gerar descendentes é nula, assim, é estultice esperar que venhamos a ter uma nova espécie oriunda do cruzamento dos dois mamíferos marinhos. Portanto, o cruzamento de dois bichos tão diferentes é um mero acidente de percurso sem maiores consequências para a evolução das espécies, o equilíbrio da natureza não está ameaçado.
Por último, para infelicidade dele, um bicho que nem de longe parece peixe, muito menos boi, e é considerado por muita gente preconceituosa um monstrinho disforme e sem graça (feio) - ao contrário do panda, por exemplo - possivelmente não terá chance de sobreviver no nosso desumano mundo que, o mais das vezes, julga o valor dos outros pela aparência. Infelizmente o destino do simpático animal, que não é campeão de beleza por qualquer critério e que tem poucos predadores naturais, está à mercê dos piores e mais arrogantes seres que já pisaram o solo deste Planetinha azul. JAIR, Floripa, 22/10/11.

sábado, 29 de outubro de 2011

Canal Casiquiare




Como todos sabemos, rios são drenos naturais das terras do Planeta, eles escoam a água excedente de uma região em direção a outro rio, lago ou em direção ao mar. Um sistema de rios, com uma corrente principal e seus afluentes chama-se bacia hidrográfica. Por que bacia? Porque o formato geral do relevo aprofundado no meio e mais elevado nas “beiradas” lembra uma bacia. Nada muito estranho, portanto. Grandes rios como o Amazonas formam grandes bacias, aliás, a bacia Amazônica é a maior do Planeta, escoando para o oceano Atlântico algo em torno de até 300 mil metros cúbicos por segundo na estação chuvosa, com uma média de 209 mil metros cúbicos por segundo durante o ano. Pois é, além da bacia do rio Amazonas, aqui na América do Sul temos, mais ao norte, a bacia do Orinoco, segunda maior do continente e terceira do mundo. Então, além desses sistemas se situarem no mesmo continente, o que mais têm em comum? A resposta é: o mais surpreendente e estranho canal do Planeta, o canal Casiquiare.
Desde a descoberta do chamado Novo Mundo esses sistemas hidrográficos extraordinários exerciam um enorme fascínio sobre a mente de curiosos, botânicos, exploradores, aventureiros, catequistas e colonizadores europeus e eram objeto de suas incursões “científicas” ou meramente especulativas, de modo que já em 1639, o padre jesuíta Acuna relatou rumores acerca de um misterioso canal que ligaria o Orinoco ao Amazonas; e em 1744, outro jesuíta, o padre Roman, acompanhou alguns comerciantes de escravos portugueses que vieram da Venezuela para o Brasil por via fluvial através de um canal. Mas, somente em fevereiro 1800, o explorador Alexander Von Humboldt partiu da nascente do Orinoco navegou até o rio Negro, adentrou o Amazonas e chegou até sua foz. Estava formalmente descoberto o canal Casiquiare.
O canal Casiquiare de 320 quilômetros é o maior canal natural da Terra que liga dois grandes sistemas fluviais, e é possivelmente o melhor exemplo de bifurcação de um rio que pode ser visto em qualquer lugar. O rio Orinoco divide suas águas de forma que um terço do fluxo diverge de sua margem esquerda e dirige-se para a margem esquerda do rio Negro, tributário do Amazonas. Mas, o que é tão surpreendente sobre isso? Bem, sendo o rio Negro um afluente do rio Amazonas, o canal Casiquiare de fato forma uma ligação natural inusitada entre dois sistemas hidrográficos que, por natureza, formam e pertencem a geografias separadas e próprias. Bacias hidrográficas dessas magnitudes têm até climas próprios e regimes pluviais independentes, funcionam como se fossem dois mundos distintos e separados e em nenhum lugar do Planeta se unem de qualquer forma. E um elo entre esses sistemas é comparável à ligação de duas árvores em terrenos separados por muro alto que, unidas por um galho comum, fusão de galhos de ambas, trocando fluindo de seiva de uma para outra. Evento extremamente improvável, para não dizer totalmente em desacordo com a natureza.
Surpreendente? Sim, muito, mas nem tanto se atentarmos para mais uma excentricidade: o fluxo das águas do Casiquiare muda de direção de acordo com o regime de chuvas das bacias. Funciona assim: quando chove mais na bacia do Orinoco, suas águas sobem e o fluxo do Casiquiare dirige-se ao Negro. Mas quando as chuvas são maiores na bacia Amazônica e o rio Negro sobe, o Casiquiare reflui para o Orinoco, torna-se um afluente dele quando antes fora uma bifurcação. É o único rio (um canal de 320 quilômetros pode ser chamado de rio, sim) que se conhece que suas águas não descem apenas, elas fluem para lá e para cá de acordo com o regime pluvial, de forma que a margem direita e a esquerda permutam de nome entre si ao longo do ano.
O Casiquiare é uma curiosidade geográfica extraordinária, digna de ser registrada no “Blue Book of Curiosities”, um capricho especialíssimo da natureza e que não se encontra em outra parte do Globo. JAIR, Floripa, 07/10/11.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pi

3,141.592.653.589.793.238.462.643.383.279.502.884.197.169.399.375.105.820.974.944.592....

Os círculos podem ser vistos em toda parte do mundo natural, corpos celestes, olhos de animais, seção transversal de um ovo ou do caule da maioria das plantas, crateras e outras formações apresentam forma circular ou algo próximo disso. Até a órbita Terra em torno do sol, a qual costumamos representar como uma elipse alongada, é quase um círculo, a diferença entre os eixos da elipse é tão insignificante (menos de 3%) que seria mais próximo do real se a representássemos por um círculo. Talvez por essa abundância de círculos, desde que começamos aprender geometria passamos a nos relacionar com o π (Pi), letra grega que representa a divisão do comprimento da circunferência pelo seu diâmetro e tem o valor aproximado de três, vírgula, seguido de tantas casas decimais quantas pudermos imaginar. O π se inscreve na relação daqueles números chamados irracionais, os quais, segundo a Wikipédia: é um número real que não pode ser obtido pela divisão de dois números inteiros, ou seja, são números reais, mas não racionais. O que quer dizer que a divisão do comprimento da circunferência pelo seu diâmetro não dá uma fração exata, assim como a raiz quadrada de dois, por exemplo, também não é uma fração exata. A raiz de dois é, portanto, um número irracional também.
Concomitante com essa “intimidade” que temos com o Pi, em geral nada sabemos de sua história, de como ele foi descoberto e da importância que lhe foi atribuída pelos matemáticos ao longo de sua trajetória, e as tentativas de provar que ele é (ir)racional descobrindo-se cada vez um maior número de algarismos que compõem sua parte decimal.
Registra-se que os primeiros povos a usar o Pi foram os babilônicos que atribuíam a ele um valor de 3,125, também os egípcios, na mesma época usavam o Pi com valor de 3,160, essas aproximações eram fruto de medições físicas da circunferência.
O primeiro gênio a dedicar-se a descobrir o valor de Pi foi Arquimedes. Para isso ele desenhou um hexágono inscrito numa circunferência de raio unitário, inscrita em outro hexágono. Calculando os perímetros dos hexágonos e achando a média entre os dois, chegou à conclusão que o valor de Pi se situava entre 3,0 e 3,6. Mais tarde ele “refinou” os cálculos usando polígonos regulares de mais lados que o hexágono. Acabou utilizando um polígono de 96 lados de modo que concluiu que Pi estava entre 3,14084 e 3,14289. Foi um avanço espetacular no cálculo dessa relação e, durante dois mil anos essa foi a única maneira de calcular Pi com precisão. Porém, no século dezessete, Leibnitz, usando cálculo, uma poderosa ferramenta desenvolvida por ele, calculou Pi com maior precisão. Em 1705 o astrônomo Abraham Sharp, usando outras séries infinitas, conseguiu calcular Pi até 72 casas decimais, quebrando um recorde de um século que era de 35 casas, obtido por Ceulen. Isso tudo por diletantismo, porque dez casas são suficientes para calcular a circunferência da Terra com precisão de centímetros.
Em seguida vieram “disputas” entre os cientistas para obter novos recordes: em1706 John Machin obteve 100 dígitos, em 1717, francês Thomas de Lagny chegou aos 127 e, em seguida, o esloveno Jurij Veja conseguiu 140. Zacharias Dase, alemão, aumentou o recorde para 200 casas decimais em 1844, na década seguinte, o britânico William Rutherford calculou até 440 dígitos, e outro inglês William Shanks, em 1874, chegou a casa de 707 decimais. Esse recorde permaneceu por setenta anos até que D. F. Ferguson achou um erro na 527º casa e passou a calcular a mão durante os anos da segunda guerra chegando a 620 dígitos em 1946. Desde então os cálculos passaram a ser feitos por computadores.
Em 1949 o ENIAC, computador do Laboratório de Pesquisa Balística do Exército dos USA, calculou até 2037 casas decimais. A quantidade de casas decimais a partir de então nunca deixou de aumentar, só sendo limitada pela capacidade dos computadores, hoje se conhece três bilhões de dígitos, e só não há interesse em aumentar esse número porque vai parecer insanidade, o que realmente é. Quanto mais algarismos são encontrados, mais uma coisa parece bem clara: os números não obedecem a nenhum padrão óbvio. Os matemáticos interessados em números irracionais queriam classificar Pi como número transcendental, algo como um número superirracional. As propriedades matemáticas de Pi e seus dígitos que nunca apresentam um padrão repetitivo, o tornaram um ícone da matemática, uma espécie de pop star que atrai matemáticos, geômetras e gente curiosa de todo mundo. Uma das atividades ligadas a esse número é a memorização de seus dígitos. O atual recorde de memorização pertence a Akira Haraguchi que, em 2006, foi filmado num espaço público de Tóquio recitando 100 mil casas decimais em 16 horas e 28 minutos.
Ao lado da memorização, existe outra atividade lúdica que consiste e traduzir os números para linguagem escrita usando o valor dos dígitos para número de letras das palavras. A essa técnica deu-se o nome de escrita restrita e para o dígito zero costuma-se escrever palavras de dez letras. O mais ambicioso projeto nesse sentido é um poema de Mike Keith que usou 3835 dígitos de Pi. Para não ficar só contemplando, sem pretensão alguma, rascunhei um texto baseado em 63 dígitos desse número mágico. A pontuação visa fornecer algum sentido ao texto:

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Codornas



Codornas são pássaros da espécie Coturnix da família das galinhas mesmo. Aqui no Brasil costuma-se criar as européias chamadas codornas italianas, cuja carne é deliciosa, e ovos, comidos como aperitivo, têm fama de afrodisíacos. Mas, em nossos campos, principalmente no centro sul do país, elas existem em estado selvagem, cobiçadas presas de caçadores destituídos de consciência ecológica. Pois é, minha Palmeira natal era cercada por campos gerais, grande parte em estado natural, nos quais as codornas encontravam o habitat ideal para se reproduzirem sem maiores transtornos, ou seja, viviam sem serem perturbadas por ninguém ou por criações de gados que pisassem em seus ninhos. Quer dizer, essa condição ideal, embora sendo regra naquele tempo, não livrava as pobres aves das exceções que as transformavam de pássaros livres em jantar de algum palmeirense com uma arma na mão e um cachorro perdigueiro no chão. Inclusive um tio meu que era caçador afamado até que se deu conta que as aves também tinham direito à vida e deixou a caça para sempre.
Como já tive oportunidade de dizer no texto “A Cetra”, nunca matei um pássaro, não tenho na consciência o peso de ter tirado a vida de qualquer avezinha dessas que a natureza criou para voarem e embelezarem os céus ou adornarem as árvores como se fossem frutos coloridos, pulsantes e cantadores. Contudo, o mundo que queremos, ou aquele mundo utópico onde todas as coisas estão nos seus lugares, onde as relações entre os seres que nele vivem não contemplam a extinção de uns para benefício de outros, não existe, o mundo que vivemos é cruel, foge do modelo edênico. As codornas que habitavam os campos que rodeavam Palmeira tornaram-se provas da iniquidade do Homo sapiens, o qual tantas vezes se arroga produto supremo da Entidade que o criou à sua imagem e semelhança. Pobres codornas! Milhões de anos usufruindo de um ambiente em que tudo se ajustava, onde se alimentavam de sementes, frutas e insetos, acasalavam-se e criavam seus filhotes sem alterar o sutil equilíbrio natural que mantém a cadeia alimentar funcionando como uma máquina onde cada peça se ajusta com primor ao todo, sem que haja supremacia de uma sobre outra. Milhões de anos servindo de alimento a guarás e cachorros do mato, sem que isso significasse apreciável declínio de sua população, pelo contrário, a predação mantinha o plantel saudável pela seleção dos mais aptos, estes sobreviviam e deixavam descendentes. Milhões de anos que não as prepararam para a adveniência de seres brutos, ignorantes e malignos que, sem qualquer hesitação, moveram montanhas para causar-lhes males irreversíveis, os quais resultaram na sua quase extinção.
As aves e toda a complexidade biológica do ambiente dos campos conseguiram se manter em constante interação dinâmica até a chegada do Homo, daí em diante impôs-se uma transformação assaz deletéria que, de tudo que existiu, pouca coisa restou. Primeiro foram os lobos guarás e cachorros do mato caçados impiedosamente porque “comiam galinhas” dos criadores; depois foi a caça ilegal que, aliás, num primeiro momento, constituiu-se um fator de equilíbrio, porquanto a eliminação dos predadores havia permitido o crescimento populacional descontrolado das aves; em seguida surgiram no horizonte as máquinas agrícolas que destruíam o ambiente e tornavam impossível a vida das aves em vastas áreas, ainda que restassem nichos nos quais os animais poderiam reproduzir-se com certa tranquilidade; por último, de forma devastadora, vieram os agrotóxicos que envenenavam as águas, o solo, matavam os insetos que serviam de alimento às avezinhas e impediam a formação das cascas de seus ovos. Foi o fim inglório de bichos inofensivos que só queriam viver e deixar que outros vivessem.
Agora vejamos, se a jumentice humana não fosse o que é, poderiam os agricultores da região ter mantido algumas áreas intocadas de modo que as codornas tivessem onde viver. Comedoras vorazes de insetos, elas se constituiriam no fator de controle de pragas eliminando a utilização dos tais agrotóxicos que envenenaram tudo a sua volta. Se a ganância aliada à falta de visão dos humanos não se erigisse na pior característica desse primata imbecil, hoje teríamos codornas saudáveis ajudando no controle de pragas das plantações, o uso de venenos estaria diminuído ou eliminado e até caçadores inconsolados com seu desaparecimento poderiam ter as aves excedentes como alvo de suas espingardas e uma excelente alternativa culinária. A racionalidade que pode gerar um mundo melhor de se viver, onde as espécies possam ocupar seus nichos sem expulsar as demais, parece não ser um atributo dos homens, lamentavelmente. JAIR, Floripa, 16/01/11.

sábado, 22 de outubro de 2011

Ciclo da borracha




Desde o descobrimento, o esbulho das riquezas naturais do Brasil se fez com fúria e determinação pelos descobridores. Qualquer coisa que representasse ganhos de alguma forma para os portugueses, era explorada até que se extinguisse a fonte de uberdade, ou que deixasse de ter valor econômico significativo. Assim, começando pela extração criminosa do pau-brasil para uso como corante de roupas na Europa, iniciou-se em série de “ciclos extrativistas” que, a partir de 1503, tornaram o país uma espécie de despensa cujas mercadorias eram apropriadas ao bel prazer dos colonizadores. Na marcha dos ciclos, a cana-de-açúcar tornou-se o próximo objeto de exploração e o país passou a fornecer açúcar para a Europa em troca de nada. Quando se descobriu ouro na região, que por isso mesmo passou a se chamar Minas Gerais, inaugurou-se um novo ciclo que escravizou índios e empobreceu ainda mais a já quase miserável população brasileira. Calcula-se que só no ano de 1760 saíram do Brasil 14.600 toneladas do precioso metal. O ciclo do algodão veio a seguir na parte nordeste do país, concomitante com o ciclo do gado que engordava nos pastos. Cerca de 1,3 milhões de cabeças de gado pastavam no Centro-oeste em 1711. Árvores foram cortadas e cerrados foram queimados para “fortalecer” os pastos. Desertos se formaram ao longo do rio São Francisco, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O ciclo do café nasceu no século XIX até a década de 1930. Concentrado a princípio no Vale do Paraíba (entre Rio de Janeiro e São Paulo) e depois nas zonas de terra roxa do interior de São Paulo e do Paraná, o grão foi o principal produto de exportação do país durante quase 100 anos. O ciclo da borracha começou em meados século dezenove.
A borracha natural, como a conhecemos, é um produto industrial obtido do látex extraído da Hevea brasiliensis, árvore nativa da floresta amazônica. Desde 1850, coincidindo com a expansão da revolução industrial, a bacia amazônica era a única fonte de borracha de alta qualidade do mundo, e as ambições das grandes potencias econômicas invadiram a selva. A Grã-Bretanha, vivendo em plena era Vitoriana de cujo império dizia-se “onde nunca o sol se põe”, foi a primeira a perceber o potencial geopolítico da borracha, essencial para a fabricação de juntas para motores a vapor e, por volta de 1870, Londres compreendeu com toda clareza a necessidade de turbinas gigantes para impulsionar encouraçados pelos mares. Esse material pouco familiar, de composição química ainda desconhecida, acompanhava o ferro e o aço onde quer que fossem assentados maquinários de fábricas, ferrovias e bombas de mineração. A borracha, essencial para confecção de correias de transmissão e válvulas, era usada também nos amortecedores para vagões ferroviários e, logo depois, nos “aros pneumáticos” como eram chamados os pneus então. O progresso significava mobilidade, e poder mundial dependia do acesso aos três recursos estratégicos necessários à autonomia: petróleo, aço e borracha.
Muito antes da ascensão das companhias petrolíferas e da riqueza que o petróleo passou a representar, a economia e política da borracha geraram riquezas faraônicas para poucos e miséria, doenças e morte para milhares de despossuídos. Por 63 anos o vale amazônico dominou o mercado mundial de borracha e tornou a capital do Amazonas, Manaus, uma espécie de capital do mundo.
O mundo estava representado em Manaus. Ingleses, franceses, alemães e portugueses gerenciavam as operações da borracha; espanhóis, italianos, libaneses e sírios eram proprietários de negócios que davam suporte às milhares de pessoas que orbitavam os negócios borrachais. Nas lojas da cidade era possível comprar revólveres Smith & Wesson, relógios Omega de ouro, manteiga escandinava, lustres de cristal da Boêmia, uísque das melhores marcas, máquinas de escrever Underwood e perfumes franceses. Calculava-se que o consumo de diamantes da cidade era o maior do mundo. A libra esterlina era usada correntemente nas ruas, (tenho três exemplares de “notas” de libra dessa época). Os barões da borracha construíam palácios suntuosos de mármore italiano, os mobiliavam com importações inglesas e francesas e penduravam candelabros de cristal no teto. Um barão comprou um iate, outro um leão, e um terceiro dava champanhe para seu cavalo beber. As joias eram importadas no atacado, e as prostitutas trazidas dos melhores bordéis europeus ganhavam diamantes de presente. Dizia-se que de cada três casas de Manaus, uma era bordel.
O cume da glória de Manaus era o Teatro Amazonas, a famosa casa de ópera inspirada na Ópera Garnier de Paris e construído totalmente com material importado. Até as pedras usadas na construção vieram da Europa, como, aliás, as pedras de pavimentação das ruas vieram da França, pedras conhecidas como Plimsoll. Custeado totalmente com os lucros da borracha, a construção do teatro se deu de 1891 a 1896 e custou o absurdo de dois milhões de dólares, uma soma astronômica para época. Dinheiro que daria para construir três hospitais de grande porte.
Mas, como não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe, a “bolha” de desenvolvimento da borracha se rompeu e o sonho acabou. Em 1876, o inglês Henry Wiekham roubou setenta mil sementes de seringueira da floresta amazônica e levou-as para os botânicos da Inglaterra. Essas sementes plantadas nas colônias inglesas destruíram o monopólio do Brasil na produção de borracha. A borracha extraída de plantações racionais era de melhor qualidade e de custo mais baixo que a produzida a partir de extração da mata nativa. Em 1900 o Brasil produzia 95% da borracha consumida no Planeta, o declínio começou em 1913 com os primeiros resultados das plantações racionais, até que em 1928 quando as colônias inglesas passaram à plena produção, a borracha brasileira representava apenas 2,3% da demanda mundial.
Para quem conhece Manaus hoje, e vê seus palacetes decrépitos, suas ruas outrora verdadeiros boulevards parisienses e agora esburacadas e sem graça e seu porto flutuante semi abandonado, dá para ter uma ideia do que foi a pujança da borracha. O ciclo da Hevea se foi e deixou uma cicatriz na alma do povo amazonense. O país traído por uma ilusão de dinheiro abundante e fácil caiu numa armadilha e não conseguiu reerguer a região amazônica da débâcle. Mais tarde, numa espécie de compensação, instituiu-se uma zona franca industrial onde, teoricamente, indústrias viriam se instalar em virtude dos impostos baixos, mas nada deu certo e Manaus tornou-se um paraíso para aqueles empresários que se locupletam com sonegação, mas o povo continua pagando a conta e vendo o trem passar. Mas isso já é outra história. JAIR, Floripa, 08/10/11.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sobre a Vida




Refletindo sobre o que a vida realmente é: uma dádiva da natureza. Para aqueles que acreditam num Ser que a tudo antecede, e que criou a própria natureza, ela é uma dádiva desse Ente. Mas uma dádiva da qual dispomos por apenas algum tempo, sobre a duração da qual não temos a menor ciência e nos é dado apenas o prazer de usufruí-la. Algumas pessoas podem aproveitá-la por mais tempo do que outras, mas todos teremos que deixá-la um dia. Não há exceção e a vida é uma só, não se justifica desperdiçá-la. Alguns, como eu, não enxergam a vida como exercício para um devir, uma passagem para o além, mas como um fim em si mesmo. Todos nossos recursos mentais e organizacionais devem ser voltados para o bem estar e a saúde da vida terrena. Neste caso, egotismo deixa de ser condenável, passa a ser uma virtude. Uma existência hígida, honesta e ativa deve ser o escopo de todas nossas ações. Portanto, num período tão curto seria no mínimo trágico deixar que nossas mentes sejam tomadas pelo veneno das amarguras e da ira. Tais armadilhas desviam nossa energia da finalidade última que é aproveitar melhor nossas vidas e torná-la construtiva, não só para nosso deleite, mas contribuindo para tornar a passagem dos outros pelo Planeta, algo agradável também. A vida se justifica plenamente se vivermos com a mente aberta e atentarmos para o direito que todos têm de viver a seu modo. Não nos é dado o poder de sermos donos da verdade, mas, sim, apenas a faculdade de sermos felizes, e isto é o suficiente. Quando nos formos, o valor de nossas vidas individuais será calculado pelo bem que tenhamos feito aos demais seres enquanto partilhamos este Planetinha azul, e não pelos bens materiais que tenhamos acumulado. JAIR, Floripa, 16/10/11.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A força do vapor



Desde que o homem “descobriu” os mares e suas potencialidades como fonte de proteínas e, principalmente, como via de transporte e comunicação entre as diversas regiões do globo, a civilização sofreu um significativo empurrão rumo a novas descobertas e ampliou seus horizontes. Os primeiros barcos conhecidos datam do Período Neolítico, por volta de 10.000 anos atrás. Contudo, a tecnologia necessária à flutuação positiva e ao impulso dos barcos foi, aos poucos, sendo adquirida. É certo que as primeiras embarcações, como acontece ainda hoje com embarcações de povos primitivos de Bornéu, por exemplo, foram movidas a pedaços de madeira que, ao custo de pequenas modificações, se transformaram em remos, tão mais eficientes quanto mais elaborados.
O segundo “passo”, se assim se pode dizer, foi o invento das velas. Parece que se tornou quase compulsório, homens que viviam do mar, observassem que os ventos poderiam ser seus auxiliares na propulsão dos barcos. Assim nasceu a navegação a velas. Elas são uma invenção que praticamente se perde no tempo. Há indícios das primeiras embarcações a vela nas águas do mar Mediterrâneo, com gregos e depois os romanos utilizando barcos que aproveitavam mais o vento a favor, com velas ainda bastante toscas. A vela triangular chamada latina, considerada a mais manobrável, passou a ser utilizada em barcos pesqueiros ao fim da idade média, pelos genoveses em seu comércio com Bizâncio. Há registros que os Vikings aperfeiçoaram o sistema de quilha e vela, utilizando-se de formas variadas de panos em conformidade com o mar e os caprichos dos ventos; e, finalmente, a perfeição foi alcançada com os navegadores ibéricos, os quais realizaram as grandes navegações em suas caravelas e galeões. Há que se fazer justiça às velas, todos os grandes descobrimentos que acabaram por moldar o mundo civilizado como o conhecemos, foram feitos por navios que se valiam dos ventos para se deslocarem.
Mas, como a marcha do progresso não pára, com a revolução industrial vieram os motores a vapor que forneceram mais velocidade, conforto e espaço tanto aos navios de carreira como às marinhas de guerra de todo o mundo. O desenvolvimento do navio a vapor foi um processo complexo. Em 1774, James Watt produziu a primeira máquina a vapor, mas somente em 1807 Robert Fulton utilizou o mesmo princípio para impulsionar uma pequena embarcação que ele batizou de "North River Steamboat". Em seguida vieram outros navios produzidos na Europa. A propulsão a vapor teve saltos importantes durante o século dezenove. As principais inovações foram o condensador, o que reduziu a necessidade de água fresca, ou seja, a água passou a ser reutilizada depois de resfriada no condensador; e motor de expansão de múltiplos estágios que obteve um acréscimo considerável de rendimento; a roda de pás deu lugar ao, bem mais potente, propulsor de hélice. Invenções posteriores resultaram no desenvolvimento da turbina a vapor marítima por Sir Charles Parsons, que fez a primeira demonstração da tecnologia no navio de 100 pés "Turbinia" em 1897. Essa invenção estimulou o desenvolvimento de uma nova geração de navios de cruzeiro de alta velocidade na primeira metade do século vinte.
Parece que o vapor resolvia todos os problemas de impulsão das naves marítimas, mas existia um óbice importante: o calor necessário para transformação de água líquida em vapor era proveniente da queima de carvão e, como sabemos, o carvão é altamente poluente além de ser um recurso não renovável e exigir imensos depósitos nos porões que diminuíam a carga útil que o navio podia transportar. Então se fazia necessário encontrar um novo combustível que substituísse essa fonte de energia.
Nikolaus August Otto, em 1860, teve a idéia de construir um mecanismo, baseado no conjunto mecânico de pedal e manivela muito utilizado em serviços braçais e nas bicicletas, onde uma mistura de ar e combustível pudesse explodir e gerar força e movimento. Depois da sua criação o motor de combustão interna criado por Otto atravessaria os séculos acionando as máquinas de tração mecânica. Automóveis, máquinas industriais e navios formaram, e formam até hoje, um formidável contingente de milhões de artefatos que queimam bilhões de litros de combustível não renovável para serem impulsionados. Em decorrência do uso de combustíveis derivados do petróleo passaram a existir navios com imensos motores a diesel e navios que usam a combustão do diesel para aquecer a água que impulsionará turbinas a vapor, ou seja, o vapor continua a mover embarcações. Há cinco anos fiz um cruzeiro marítimo num super transatlântico que era movido por turbina a vapor aquecido por queima de diesel.
Assim, numa sequência cronológica, força manual, ventos, carvão e combustíveis derivados do petróleo foram utilizados no sentido de mover os meios flutuantes cada vez mais rapidamente e com mais proveito. Mas, engana-se quem pensa que essas forças foram substituídas umas pelas outras na medida que foram surgindo, o que houve foi apenas incorporação de mais opções de fontes de energia. Especialmente o vapor, que surgiu com a queima de carvão, passou para queima de óleo combustível para aquecer a água e, depois da segunda grande guerra, a energia nuclear, oriunda do urânio e outros elementos, passou a ser a fonte primária de calor para as belonaves chamadas atômicas.
Primeiro foram os EUA que construíram o “Nautilus” um submarino precursor que, munido de dois reatores que provocavam a fissão do urânio, aqueciam a água para transformar em vapor que movia turbinas que impulsionavam o submersível. Desde então, milhares de navios das armadas de diversos países são movidos dessa maneira. Há que observar que as turbinas usadas nas embarcações marítimas atômicas são apenas versões mais aperfeiçoadas da turbina inventada por Sir Charles Parsons em 1987. Então, o que significa isso? Simples, os submarinos e porta-aviões mais modernos, com os sistemas de propulsão de ponta, são simplesmente belonaves movidas a vapor. A única coisa que as diferencia daqueles navios do século dezenove, é o modo como a água é aquecida para se transformar no vapor que move a embarcação. Naquele tempo o carvão era a fonte de energia calorífica e agora são elementos nucleares que fornecem o calor. Portanto, continuamos a ver “navios a vapor” nos dias de hoje como era no século dezenove, e não há qualquer indicação que o vapor vai deixar de ser usado num futuro previsível. Aliás, se a barreira psicológica que impede que as pessoas confiem na energia atômica como fonte de energia for superada, é possível que venhamos a assistir uma grande demanda de navios mercantes “atômicos” dentro de alguns anos. JAIR, Floripa, 11/10/11.

sábado, 15 de outubro de 2011

Camelos



Camelídeos são animais encontráveis em continentes tão distantes uns dos outros como América do Sul, África, Ásia e até Oceania, contudo, por estranho que possa parecer não se originaram em nenhuma dessas regiões. Acredita-se que esse animal é o mais antigo dos ruminantes. Curiosamente, os camelídeos não tiveram origem na África como costuma parecer, mas na América do Norte. Camelos da América do Norte foram extintos cerca de 15.000 anos atrás. Durante o Pleistoceno – período compreendido entre 1,80 milhões e 11,5 mil anos atrás, aproximadamente - os ancestrais da lhama, do guanaco, da vicunha e da alpaca – migraram para a América do Sul, enquanto os ancestrais do camelo e do dromedário cruzaram uma passagem que existia onde hoje é o estreito de Bering, e adentraram o leste da Ásia. Da Ásia migraram pela Europa oriental, pelo Oriente Médio e pelo norte da África. Por volta de 3000 aC, entretanto, os camelídeos selvagens também se haviam extinguido da América do Norte. Foram introduzidos no Saara à medida que a desertificação aumentou sua utilidade lá e logo se tornaram o bem mais importante para um homem, algo assim como o cavalo na cultura européia. Camelos foram domesticados na Arábia por volta de 1800 aC, e talvez antes, já em 4000 aC. na Ásia Central. No deserto, ainda hoje, o proprietário de um camelo é dono de uma riqueza insubstituível.
Camelos são frequentemente referidos como "barcos do deserto", porque são utilizados para transporte de mercadorias e pessoas através de longas distâncias. Seu leite e carne são consumidos pelos povos nômades do deserto. Seu pelo é cortado e usado na confecção de tapetes, cordas, roupas e tendas. O couro é curtido e também usado como tapete. O esterco seco é utilizado como combustível. Unidades de camelos montados têm sido usadas ao longo dos séculos pelas forças militares e policiais.
Camelo se originou nas Américas cerca de 40 milhões anos atrás, e havia migrado para a Ásia na época da última Idade do Gelo. Como me deparei com dromedários selvagens na zona rural de minha cidade natal, acredito que a adaptabilidade desses animais associados ao deserto seja muito mais ampla que se imagina. Assim como o Pantanal mato-grossense possui cavalos selvagens, e javalis africanos estão disseminados nos campos e matas do sul do país, não duvido que as matas ombrófilas do segundo planalto do Paraná abriguem descendentes daqueles camelídeos que encontrei nos fins dos anos cinquenta.
Mas o que são camelídeos? Que espécies de animais são eles que podem ser encontrados em estado natural tanto nas areias escaldantes do Saara como no terrível frio do deserto de Gobbi na Ásia? Passando pelo Outback australiano e as regiões andinas desde o Equador até o gelado sul da Argentina?
Os camelídeos são animais exclusivamente herbívoros e de grandes dimensões. Esta família distingue-se dos restantes dos ruminantes por terem um aparelho digestivo constituído por três (em vez de quatro como os bovídeos, por exemplo) câmaras. Esse sistema digestivo lhes permite um aproveitamento extraordinário das plantas quase sempre duras e fibrosas que ingeriram.
O dromedário ou camelo árabe distingue-se do camelo bactriano, nativo da Ásia Central, pela presença de apenas uma giba ou corcova, contra duas do último. A bossa do dromedário não contém água como supõe a crença popular, mas gordura acumulada pelo animal em tempos de fartura, gordura esta que é uma espécie de ”poupança” para os períodos de escassez. A água é acumulada em sua corrente sanguínea, onde seus glóbulos vermelhos podem aumentar em até duzentos e cinquenta por cento seu volume para acumulá-la. Para comparação, nossos glóbulos vermelhos podem aumentar cento e vinte por cento. Outras adaptações à vida no deserto incluem: uma pelagem esparsa e suave que permite refrigeração, variando do branco-sujo ao bege-claro ou castanho-escuro; suas patas, que têm base larga, com uma área que impede que se enterrem na areia; pálpebras semitransparentes que lhe facultam enxergar de forma bastante razoável mesmo com os olhos fechados; além de longos cílios que protegem os olhos do animal durante tempestades de areia. Não é a toa que os conquistadores portugueses os apelidaram de caravelas do deserto. Uma das características que provam a ancestralidade comum dos camelídeos é o hábito que têm de cuspir quando se sentem incomodados. Tanto os dromedários e camelos, como seus parentes andinos, defendem-se lançando um cuspe espesso e grudento em quem os perturba.
O dromedário encontra-se extinto na natureza e a totalidade da população existente no Oriente Médio vive domesticada. O único local do mundo onde ainda restam populações selvagens é nas zonas áridas da Austrália, que tem condições de clima e paisagem relativamente semelhantes. Os dromedários australianos são descendentes de animais introduzidos pelos pioneiros que exploraram o centro do país e que depois passaram ao estado selvagem. O dromedário foi domesticado como meio de transporte à semelhança do cavalo.
Já a lhama e seus parentes, guanacos, alpacas e vicunhas são animais menores, mas extremamente adaptados as altitudes e temperaturas dos Andes. Quando trabalhei na Bolívia, nas minhas andanças pelos altiplanos ao redor de Cochabamba, costumava encontrar lhamas e guanacos selvagens em regiões que pareciam desprovidas de plantas e água que pudessem dar suporte à vida de animais daquele porte. Contudo, milhares de preás, muitas lhamas e até chinchilas viviam muito bem naquelas alturas de pouca atmosfera e escassa comida.
No deserto, os camelos, além de serem um meio de transporte seguro e confiável, também podem ser usados como meio de orientação eficiente. Quando um ser humano na companhia de um camelídeo estiver perdido, basta deixar que o animal o conduza sem interferir no seu rumo, o bicho, por instinto de sobrevivência, o conduzirá até um oásis ou fonte onde exista água, é uma aposta certa. Enfim, esses animais mal humorados e turrões são o que há de melhor para uma civilização vindoura que restará depois que o Planeta for atingido por um asteróide e nada das nossas conquistas atuais sobreviver. Podemos colocar todas nossas fichas nos camelídeos com segurança, esses animais serão capazes de contribuir para o ressurgimento de uma nova civilização. JAIR, Floripa, 16/09/11.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Livros e cães



Certa vez quando eu tinha doze ou treze anos e cursava o antigo Ginasial, estava absorto lendo um livro na biblioteca quando minha professora de português, Maria Jamur, - a qual nunca desperdiçava uma única palavra, jamais jogava conversa fora – aproximou-se assim como não querendo nada, mas, olhando-me nos olhos com uma intensidade desconcertante, e, com uma reverência que eu a julgava incapaz de manifestar, falou-me algo que ficou gravado em minha mente e que , ainda hoje, continuo lembrando como se tivesse acabado de ouvir.
Embora se espere que os livros possam mudar ao longo dos tempos
(futurologia? os livros eletrônicos de hoje parecem corroborar essa previsão), assim como as pessoas também o fazem, a diferença está em que, as pessoas sempre se afastam quando percebem que não podem obter nenhuma vantagem, interação positiva, prazer, interesse ou pelo menos um momento aprazível em nossa companhia, um livro nunca nos abandona. Nós com certeza vamos abandoná-lo, algumas vezes por muitos anos, ou até para sempre talvez. Mas eles, os livros, mesmo traídos ou maltratados, nunca vão nos dar as costas: vão continuar esperando por nós silenciosos e humildes nas prateleiras ou nos cantos e porões onde foram deixados. E eles nos esperam por dezenas de anos, só sua destruição por traças, umidade ou fogo, impedirá que eles estejam à nossa espera. Não se queixam e não se cansam. Até que um dia qualquer, quando nós precisamos de um deles, quando sentimos necessidade de folhear suas páginas silenciosas e sábias, mesmo que seja numa noite chuvosa ou num dia frio, ou mesmo que seja um livro velho e maltratado que tenhamos jogado num canto sem qualquer cuidado, e que tenha ficado esquecido por muitos anos, ele não vai decepcionar-nos – descerá da prateleira poeirenta ou sairá de seu canto úmido e bolorento e virá conviver conosco como se nada tivesse acontecido. Não fará cobranças, não inventará desculpas e não perguntará se vale a pena, se ele nos merece, se nós o merecemos, se nós temos ainda algo a ver com ele, ou se tem algo a ver conosco, mas virá às nossas mãos no momento que nós quisermos, jamais fugirá ou nos trairá”.
Hoje, refletindo sobre isso, descobri porque gosto igualmente de cães e livros. Livros e cachorros são as duas faces da mesma moeda, a moeda da fidelidade. JAIR, Floripa, 24/09/11.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A Selva



Na década de setenta em virtude de meu trabalho no Serviço de Busca e Salvamento da FAB, era parte obrigatória do currículo fazer cursos de sobrevivência no mar e selva, porque as operações do chamado Esquadrão Pelicano presumiam possíveis acidentes nesses ambientes e as tripulações deveriam estar aptas a enfrentar as condições desfavoráveis que se apresentassem. Pode parecer que tais cursos eram algo radical ou extremamente desgastante, mas não eram nada disso. Bastava seguir os manuais, manter a calma, lembrar das instruções, adaptar-se ao desconforto e ser resistente à fome, frio, calor e ao cansaço, que tudo acabava bem.
Não pretendo descrever as sensações terríveis de três dias no mar em um bote de borracha, disputando espaço com cinco outros companheiros, comendo jujubas, bebendo meio copo por dia de água destilada do mar, e dormindo sentado, molhado da cabeça aos pés; nem tampouco dez dias de calor desgastante na floresta amazônica, dormindo em barraca improvisada a partir de pára-quedas, comendo o que pudesse caçar, pescar e colher, sendo devorado vivo por insetos e receoso de ficar doente sem qualquer recurso médico próximo. Não é meu escopo contar as alegrias e descobrimentos que essas provas me proporcionaram, quero contar apenas sobre a mata, a selva. A maravilhosa floresta úmida que cobre a região norte do país, a Hiléia amazônica.
A floresta tropical é exótica sob muitos aspectos. Para habitantes de centros urbanos talvez a primeira coisa que chame atenção seja o silêncio. O silêncio é uma força por si só, quase hipnótica, desorienta, chegamos a ouvir nosso próprio coração. Mas tem algo de solene, tem algo que nos remete à meditação, à abstenção de falar, à contemplação como se diante de algum ente transcendental. Podemos nos surpreender, mesmerizados, nos vendo compelidos a seguir com o olhar uma enorme borboleta azul metálica na sombra do dossel, ficamos fascinados pelas suas brilhantes asas de um azul imaginário, quando, de repente, percebemos que nossos passos não fazem nenhum ruído, pisamos em algodão por assim dizer. O chão não é o mesmo chão que conhecemos, é um macio tapete marrom que exala um forte cheiro de decomposição. As árvores parecem estar quietas há séculos. Paradas, solenes, majestáticas e dominantes, nós lhes somos indiferentes. Das castanheiras só podemos imaginar suas copas que chegam alcançar até sessenta metros de altura, a floresta, mais baixa, nos impede de vê-las. Se existe brisa, esta deve estar “lá fora”, aqui no interior o repouso é absoluto. Alguns troncos robustos lembram colunas de catedrais antigas. Orquídeas e bromélias de cores e formas variadas decoram árvores e troncos semi apodrecidos. Nem mesmo o sol exterior adentra aquele ambiente mágico, o próprio ar parece esverdeado e exala cheiro acre adocicado. A luz da manhã é estranha e difusa, como a iluminação do interior de uma igreja medieval cuja única claridade passa filtrada através de vitrais, mas tudo de uma beleza inverossímel. O verdor do ar é tão denso que parece palpável, achamos que pode ser espremido entre os dedos. A vida animal da floresta existe em profusão no alto das árvores centenárias, onde os pássaros se alimentam, namoram, constroem seus ninhos e se reproduzem; e os macacos guaribas negros como carvão vivem em suas comunidades agitadas e de relações sociais complexas. Os insetos existem aos milhões, mas são silenciosos, quando você é picado nem percebe de onde surgiu o atacante.
A noite na selva se transforma, agora é um mundo assombrado, impressivo e intimidante. Depois do por do sol, o silêncio é substituído por sons surpreendentes: o uivo do macaco, o som cavo dos sapos, a batida de martelo das pererecas, o voo rápido dos morcegos e assobios, trilos, tinidos e farfalhadas. Surgem insetos ardilosos com mandíbulas que perfuram a roupa e a pele, morcegos ousados que tentam pousar na nossa cabeça sabe lá com que intenções. Numa clareira havia cupinzeiros que brilhavam com uma luz fantasmagórica e mortiça. Os vaga-lumes conferiam à escuridão da selva um ar sobrenatural. Em algumas manhãs víamos pegadas de onça na areia da praia, já que nossa barraca estava às margens do rio Morená, no Parque Nacional do Xingu.
Para quem não “assume” a floresta como meio de sobrevivência, esta é atroz, não perdoa o ingênuo ou hedonista. Ela é um organismo vivo que respira, dorme e cresce, engole inocentes, almoça incautos e janta ineptos. Mas não precisamos temê-la, basta compreendê-la e respeitá-la. Desde muito cedo fui criado pescando em riachos, no rio Iguaçu e andando por trilhas de florestas ombrófilas e da mata atlântica da região do Paraná onde nasci, portanto, sempre tive contacto íntimo com as selvas e elas me atraem, de forma que ao me deparar com a floresta amazônica, foi só uma questão de adaptação à magnitude e às peculiaridades da mais extraordinária mata do Planeta. Lá as árvores e os rios são muito maiores, os insetos e outros animais são mais numerosos e teoricamente mais agressivos, mas, em compensação, os recursos para sobrevivência são mais abundantes, melhores e de fácil obtenção. Não é estultice afirmar que, adaptando-se àquele ambiente, é possível viver sem maiores angústias e sofrimentos uma longa vida naquela floresta, pois os meios existem, é só saber como tomá-los emprestados. Meu lado silvícola como descendente de índios Kaingangues prevaleceu e me senti como que voltando às minhas raízes, em nenhum momento me vi desafiado ou intimidado pela selva. Posso garantir que foi a mais fecunda e marcante experiência que já passei na vida. JAIR, Floripa, 06/10/11.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Calembures



Trecho da publicação na qual conto como se deu minha alfabetização: “Pois bem, estávamos no ano de 1953 e eu havia recém entrado no curso primário. Não sei como as demais crianças aprenderam a ler, mas, no meu caso, foi num átimo. Nos primeiros dias de março, logo nas primeiras aulas de alfabetização, a professora Lair Scheröder explicou as letras, a formação das sílabas e como estas formavam as palavras. Para mim foi “EUREKA!”, percebi que bastava conhecer as letras, juntá-las em forma de sons conhecidos e tínhamos qualquer palavra. Havia entendido o mecanismo daquela elementar gramática e passei a ler TUDO a partir daquele momento”.
Mais que isso, as palavras, muito mais que frases, sentenças, parágrafos e textos, me conquistaram, faziam fervilhar minha imaginação. Desde então sou apaixonado pela palavra, termo, vocábulo, nome, digrama, ortografia, lexicografia e etimologia.
Como comecei a ler com muita facilidade e, apesar de ser estimulado à leitura, não tive orientação sobre o que ler, passei a consumir sem peias tudo que se apresentava à minha frente. Desde jornais, revistas e gibis, até livros não recomendados a um néscio que incursionava pelas primeiras letras. Em decorrência dessas leituras mal orientadas e desenfreadas como se o mundo fosse acabar, acabei lendo muita coisa boa e coisa desnecessária e até livros incompreensíveis para minha idade.
Bem, não lembro se foi Guimarães Rosa ou algum autor menos conhecido que acabei deglutindo nessa fúria leitural que me acometia, mas ocorreu que o livro me revelou um português que eu nunca tinha ouvido, nem da boca de minha austera e competente professora Maria Jamur, nem lido em qualquer livro anterior. Um português estranho, gongórico, sinuoso, fascinante, meio ditirâmbico e anárquico que descrevia regiões ocultas e instigantes, definitivamente fora de meu limitado universo mental e que me deixava inquieto, atônito, desamparado até. Um português saturado de expressões errantes, insubordinadas e canhestras, desobedientes a todas as regras conhecidas, misturando passado e presente sem distingui-los, passagens que me faziam voar para outros aléns sem garantia de volta.
Mas as estórias, além de imagísticas, eram magnéticas, pegantes como carrapicho e grudentas como fita Scotch. Mas que estórias! cheias de vitalidade, de força, de energia! Quando descreviam a mata, parecia que a estória estava sendo escrita debaixo do dossel da própria floresta ombrófila a que se referia; e quando contavam sobre incêndio, eu era capaz de sentir as chamas logo ali ao lado de minha porta. E que poder hipnótico as palavras tinham! Aprendi amar as palavras naquele livro, mas aprendi também que certas palavras não querem se explicar, não se conjugam, sentem-se majestáticas, não ficam ansiosas por definições ou sinonímia, elas, herméticas e orgulhosas, são emancipadas, têm vida própria, não se juntam a essas tantas por aí que, vulgares ou sem auto-estima, ponteiam em qualquer opúsculo apócrifo ou cordéis de qualidade discutível.
Calembur é um desses termos que vivem por si só, que não estão nem aí para dicionários, calepinos e glossários, e pouco se mostram em jornais, livros e revistas. O pior é que, para meu mais terrível pesadelo, calembur, sem ser convidado, se imiscuiu no fundo de minha mente, tomou assento e nunca lhe dei oportunidade de sair ao ar livre e participar de meus escritos, permaneceu silencioso, ignorado, triste e esquecido até o dia de hoje quando, num surto idiomático agudo, resolvi não só libertá-lo da prisão de meus neurônios despóticos, mas também homenageá-lo dando nome a esse texto com seu plural: calembures. Que calembur se sinta recompensado pelos tantos anos obscuros que permaneceu dormente naquele espaço esconso da mente onde se aninham todos os termos esquivos, adventícios e arcaicos, guardados nas prateleiras cerebrais para um futuro uso que, no mais das vezes, nunca vem. O que me dá certeza que esse termo estava aprisionado é que jamais o encontrei em qualquer dos milhares de livros que li desde então. Se calembur fosse conjugável como um verbo, havia ficado calemburando em meu cérebro durantes anos, mas agora passou a vocábulo livre para voar pelos céus gramaticais dos textos que lhe interessar. Que goze dessa liberdade por muitos anos e apareça em escritos preciosos e rebuscados daqueles velhinhos da ABL que têm apreço por termos abumbrados ou túrbidos; ou transite livre na produção lírica de bardos inspirados. JAIR, Floripa. 24/09/11.

PS – Segundo o Huaiss calembur (substantivo masculino) significa: jogo de palavras semelhantes no som, mas de significado diferente, que dá lugar a dubiedades ou equívocos e muitas vezes é usado com finalidades jocosas; trocadilho; calemburgo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Algarismos e relógios



Por volta de oito mil anos antes de Cristo surgiu na Babilônia a prática de usar pequenas placas de barro com marcas para se referir a objetos. Esses símbolos registravam principalmente número de coisas a serem compradas e vendidas como carneiros, cerâmicas e peles. Peças de barro diferentes se referiam a diferentes objetos ou quantidade de objetos. A partir daquele momento, os carneiros podiam ser contados mesmo que não estivessem presentes, o que tornou o comércio e o armazenamento de estoque muito mais fluídos, muito mais fáceis de serem contabilizados. Foi o nascimento do que chamamos de números.
No quarto milênio aC, na Suméria, região que faz parte do hoje vilipendiado Iraque, esse sistema simbólico evoluiu para a escrita em que um graveto pontudo era pressionado no barro úmido, A primeira representação dos números era em forma de círculos ou das unhas dos dedos. Por volta de 2700 aC, o marcador tinha a ponta achatada e as marcações pareciam pegadas de pássaros, com marcas diferentes representando números diferentes. Essa escrita, chamada cuneiforme, marcou o começo de uma longa história dos sistemas de escrita ocidentais. É interessante pensar que o início do que viria a se chamar literatura foi uma mera consequência residual da notação numérica inventada pelos mercadores mesopotâmicos.
Na escrita cuneiforme só havia símbolos para 1, 10, 60 e 3600, o que significa que o sistema era um mix de base 60 com base 10. Dá para notar alguma semelhança com nosso sistema de marcação de tempo? Com nossos relógios que marcam minutos e segundo na base 60, mas os dividem em 10 e submúltiplos? A razão para os sumérios agruparem os números em múltiplos de 60 já foi descrita como um dos maiores mistérios não resolvidos da história da aritmética.
Os babilônios que fizeram grandes avanços em matemática, astronomia e astrologia (inventaram o Horóscopo Planetário do qual falarei em outro texto), adotaram a base sexagesimal suméria, e depois os egípcios, seguidos pelos gregos, basearam seus métodos de medida do tempo no método babilônico – razão para nossos relógios dividirem a hora e os minutos em 60 unidades. Estamos tão acostumados a medir o tempo na base 60 que normalmente não questionamos esse fato, embora seja algo não explicado.
Contudo, a França depois da revolução, queria passar a limpo tudo que via como incoerências do sistema adotado até então. Quando a Convenção Nacional, em 1793, introduziu o sistema métrico para pesos e medidas, tentou-se colocar o tempo dentro do sistema decimal também. Assim, um decreto estabeleceu que os dias seriam divididos em 10 horas, cada hora em 100 minutos, cada minuto teria 100 segundos. O horário decimal tornou-se obrigatório em 1794, e nos relógios fabricados na época as horas iam até 10. Mas o novo sistema não foi assimilado pela população e foi abandonado depois de seis meses. Na verdade, os relógios que foram fabricados naquela época são verdadeiras raridades cobiçadas pela tribo dos colecionadores, na qual me incluo.
Mas, recentemente, em 1998, o conglomerado suíço Swatch lançou o relógio Swatch Internet Time, que divide o dia em mil partes chamadas “beats”. Eles venderam os relógios que mostravam uma “visão revolucionária do tempo” por mais ou menos um ano antes de, constrangidos, retirarem o produto do mercado diante do fiasco de vendas. Nossa mente está sexagesimada demais quando se refere ao tempo, não há como desprogramá-la num estalar de dedos.
Trabalhei algum tempo numa empresa de taxi aéreo em Curitiba, onde a marcação de tempo nos relatórios de voo se fazia na base decimal. As horas eram divididas em 100 minutos e assim eram registradas. Confesso que, no começo, além de parecer idiossincrasia ociosa da empresa, tive certa dificuldade em “desprogramar-me” do sistema sexagesimal, transformar cada fração de seis minutos em dez minutos me confundia um pouco. Depois, passou a parecer natural uma marcação decimal tão mais divisível e multiplicável para atribuir valores em dinheiro pelas horas voadas.
Quanto à marcação numérica dos primeiros mostradores, o uso de algarismos romanos foi a opção preferencial porque conferia certo charme aos relógios. Normalmente era usada a notação usual dos numerais romanos: I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI e XII. Contudo, a marcação da quarta hora passou a ser IIII em consequência de um acidente ferroviário na Inglaterra no século dezenove. Consta que o encarregado de uma estação confundiu o VI com o IV e informou através de telégrafo, como era costume, o horário errado que o trem deveria sair. Em sentido contrário foi despachado outra composição pela mesma linha supondo que, pelo horário informado, o comboio só sairia duas horas depois, foi uma colisão frontal que resultou em dezenas de mortos e feridos. As autoridades inglesas resolveram então mudar os mostradores para evitar nova confusão, assim, até hoje ainda temos relógios com marcação IIII ao invés de IV para informar a quarta hora.
De qualquer forma, com ou sem números romanos, os relógios são mecanismos que cativam os seres humanos desde sua invenção, atribuída ao arcebispo de Verona chamado Pacífico no ano 850 de nossa era. Confesso que sou fascinado por relógios mecânicos, os coleciono e agora estou à procura de alguns exóticos como relógios de mecanismo totalmente de madeira. Algarismos e relógios são uma combinação irresistível. JAIR, Floripa, 01/08/11.

domingo, 2 de outubro de 2011

Submarinos



O afundamento de dezenas de navios mercantes brasileiros efetuados por submarinos alemães e italianos, nas costas do país durante a segunda guerra mundial, é um assunto muito interessante abordado com grande competência por meu amigo Leonel no "O Asteroide". Também publiquei “O Supérstite”, texto que contava a história de um médico brasileiro que foi vítima de dois torpedeamentos e sobreviveu. Ainda que esses fatos sejam uma realidade cruel e dolorosa e provem a capacidade técnica e bélica dos perpetradores europeus, deixam certo sabor de mistério de como submarinistas alemães e italianos conseguiam informações válidas para, depois de atravessar um oceano de distância, chegarem aos pontos certos e nos horários corretos para encontrar os navios vítimas de seus torpedos. Como essas mortíferas embarcações reabasteciam ou faziam manutenção se necessário? Como funcionava a logística dessas operações complexas?
Como sabemos, os três estados sulinos foram objeto de migrações maciças de europeus desde o século dezenove até inicio do século vinte. Em consequência desses deslocamentos temos aqui na região muitas colônias de descendentes de europeus as quais colorem e dão um tempero especial à cultura e aos costumes dos brasileiros. Não só isso, a nacionalidade, o idioma e os costumes dos imigrantes geralmente foram preservados, de modo que, durante a guerra, não foi nem um pouco estranho ou surpreendente que muitos emigrados alemães “torceram” pela vitória de seu país e alguns até se voluntariaram para lutar ao lado dos nazistas.
O que não se sabe até hoje é qual papel os imigrantes que aqui ficaram tiveram com relação aos submarinos que “visitavam” nosso litoral e causaram tantos transtornos aos navios da marinha mercante brasileira e fizeram tantas vítimas indefesas. A respeito dessa atuação tenho algumas informações e conjeturas interessantes.
Tive um professor no ginasial de nome Jurandir Araujo o qual, durante a juventude, fora um “Marumbinista”, ou seja, na década de cinquenta havia pertencido a um grupo de desbravadores montanhistas que se dedicavam a explorar o pico Marumbi (1847 metros, considerado o ponto culminante do estado) e as cercanias da Serra do Mar próximo à cidade de Morretes. Pois bem, nos contava ele que seu grupo de montanhistas fora o primeiro a desbravar a trilha que subia até o pico Paraná e descobriu que este era mais alto que o Marumbi. Mas, o mais interessante é que, apesar de não haver trilhas que levassem ao Paraná e nem qualquer meio razoável para lá se chegar, eles encontraram escondido na mata, bem no cume, uma estrutura de ferro. Uma torre treliçada com trinta metros de comprimento dessas que suportam antenas de transmissão. Não havia qualquer registro de rádio ou órgão do governo que tivesse colocado aquela estrutura naquele local. Pelo que se sabia ninguém jamais havia escalado aquele pico. Uma investigação posterior feita entre os habitantes da zona rural de Morretes moradores de área próxima, deram conta que a antena fora colocada por “alemães” na década de quarenta. Havia (ainda há) colônias de imigrantes germânicos nas proximidades.
Em fevereiro de 1941 o Navio “Sea Cloud” de bandeira da África do Sul, comandado por um capitão supostamente argentino Sigfried Blaffert e com tripulação “argentina”, atracou no porto de Antonina para descarregar trigo que o Brasil normalmente importava do país platino. O “Sea Cloud”, além do trigo também desembarcou três passageiros “argentinos” que apesar do passaporte atestar sua nacionalidade platina, falavam apenas um pouco de espanhol com carregado sotaque germânico. Tratava-se de passageiros incomuns, meio misteriosos e caladões os quais se hospedaram na Pensão da Dona Custódia com uma bagagem não menos estranha: malas ou baús de madeira os quais eles carregavam com bastante cuidado e dos quais não distanciavam o olhar em momento algum. Na noite do segundo dia de hospedagem foram visitados por um indivíduo de capa e chapéu sobre os olhos carregando uma pasta, e que perguntou também com sotaque alemão para a empregada onde eles estavam. Visitou-os por um pouco mais de uma hora e saiu sem a pasta. No outro dia os visitantes pagaram a pensão e saíram com suas bagagens rumo a estação onde, se supõe, pegaram o trem para Curitiba.
Os rumores sobre esses estranhos personagens se espalharam o que encetou uma discreta verificação por parte Paulo Wendt, delegado de polícia. O pouco que ele descobriu ficou registrado no jornal “O Vespertino” de Paranaguá: O visitante misterioso provavelmente era o cônsul alemão creditado em Paranaguá e que sumiu após aquele dia. Dizia-se que partiu para local desconhecido. Os “visitantes” nunca foram encontrados. Mas, afirmava-se, eles eram técnicos alemães em eletrônica e comunicação por rádio e suas bagagens eram aparelhos de transmissão de última geração fabricados na Alemanha.
Quando morei em Florianópolis, na década de sessenta, conheci um militar da ativa que havia servido na Marinha de Guerra e fora transferido para a FAB em 1941 quando da criação do Ministério da Aeronáutica. Ele servira no então Destacamento de Base Aérea de Florianópolis onde participou durante a guerra de missões de patrulhamento do Atlântico Sul a bordo dos aviões PBY americanos, então lotados naquele Destacamento. Eu havia notado na selvagem e deserta praia do Morro das Pedras - local totalmente fora de qualquer circuito praiano freqüentável pelos nativos e turistas - três estranhas construções de tijolos bem deslocadas e aparentemente sem qualquer utilidade. As edificações mediam três por três metros e tinham portas de ferro voltadas para o mar, nada indicava para que teriam servido algum dia. Moukarzel, o militar citado, disse-me que as obras teriam abrigado bombas de recalque de combustível para submarinos durante a guerra. Caminhões contendo óleo diesel estacionavam no local, o submarino emergia nas águas profundas, abrigadas e discretas da praia e marinheiros conectavam mangueiras às bombas que, acionadas, levavam o combustível para a embarcação. Imigrantes alemães, propositalmente donos de postos de combustível, eram os supridores dos submersíveis.
Se somarmos dois mais dois fica fácil perceber como se fazia a comunicação com os guerreiros marítimos que perpetravam estragos em nossa costa. E o suprimento de combustíveis para suas máquinas mortais está explicado. Quem quiser, pode enxergar porque era tão fácil a missão deles, especialmente no sul do país. JAIR, Matinhos, 07/09/11.