quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Calembures



Trecho da publicação na qual conto como se deu minha alfabetização: “Pois bem, estávamos no ano de 1953 e eu havia recém entrado no curso primário. Não sei como as demais crianças aprenderam a ler, mas, no meu caso, foi num átimo. Nos primeiros dias de março, logo nas primeiras aulas de alfabetização, a professora Lair Scheröder explicou as letras, a formação das sílabas e como estas formavam as palavras. Para mim foi “EUREKA!”, percebi que bastava conhecer as letras, juntá-las em forma de sons conhecidos e tínhamos qualquer palavra. Havia entendido o mecanismo daquela elementar gramática e passei a ler TUDO a partir daquele momento”.
Mais que isso, as palavras, muito mais que frases, sentenças, parágrafos e textos, me conquistaram, faziam fervilhar minha imaginação. Desde então sou apaixonado pela palavra, termo, vocábulo, nome, digrama, ortografia, lexicografia e etimologia.
Como comecei a ler com muita facilidade e, apesar de ser estimulado à leitura, não tive orientação sobre o que ler, passei a consumir sem peias tudo que se apresentava à minha frente. Desde jornais, revistas e gibis, até livros não recomendados a um néscio que incursionava pelas primeiras letras. Em decorrência dessas leituras mal orientadas e desenfreadas como se o mundo fosse acabar, acabei lendo muita coisa boa e coisa desnecessária e até livros incompreensíveis para minha idade.
Bem, não lembro se foi Guimarães Rosa ou algum autor menos conhecido que acabei deglutindo nessa fúria leitural que me acometia, mas ocorreu que o livro me revelou um português que eu nunca tinha ouvido, nem da boca de minha austera e competente professora Maria Jamur, nem lido em qualquer livro anterior. Um português estranho, gongórico, sinuoso, fascinante, meio ditirâmbico e anárquico que descrevia regiões ocultas e instigantes, definitivamente fora de meu limitado universo mental e que me deixava inquieto, atônito, desamparado até. Um português saturado de expressões errantes, insubordinadas e canhestras, desobedientes a todas as regras conhecidas, misturando passado e presente sem distingui-los, passagens que me faziam voar para outros aléns sem garantia de volta.
Mas as estórias, além de imagísticas, eram magnéticas, pegantes como carrapicho e grudentas como fita Scotch. Mas que estórias! cheias de vitalidade, de força, de energia! Quando descreviam a mata, parecia que a estória estava sendo escrita debaixo do dossel da própria floresta ombrófila a que se referia; e quando contavam sobre incêndio, eu era capaz de sentir as chamas logo ali ao lado de minha porta. E que poder hipnótico as palavras tinham! Aprendi amar as palavras naquele livro, mas aprendi também que certas palavras não querem se explicar, não se conjugam, sentem-se majestáticas, não ficam ansiosas por definições ou sinonímia, elas, herméticas e orgulhosas, são emancipadas, têm vida própria, não se juntam a essas tantas por aí que, vulgares ou sem auto-estima, ponteiam em qualquer opúsculo apócrifo ou cordéis de qualidade discutível.
Calembur é um desses termos que vivem por si só, que não estão nem aí para dicionários, calepinos e glossários, e pouco se mostram em jornais, livros e revistas. O pior é que, para meu mais terrível pesadelo, calembur, sem ser convidado, se imiscuiu no fundo de minha mente, tomou assento e nunca lhe dei oportunidade de sair ao ar livre e participar de meus escritos, permaneceu silencioso, ignorado, triste e esquecido até o dia de hoje quando, num surto idiomático agudo, resolvi não só libertá-lo da prisão de meus neurônios despóticos, mas também homenageá-lo dando nome a esse texto com seu plural: calembures. Que calembur se sinta recompensado pelos tantos anos obscuros que permaneceu dormente naquele espaço esconso da mente onde se aninham todos os termos esquivos, adventícios e arcaicos, guardados nas prateleiras cerebrais para um futuro uso que, no mais das vezes, nunca vem. O que me dá certeza que esse termo estava aprisionado é que jamais o encontrei em qualquer dos milhares de livros que li desde então. Se calembur fosse conjugável como um verbo, havia ficado calemburando em meu cérebro durantes anos, mas agora passou a vocábulo livre para voar pelos céus gramaticais dos textos que lhe interessar. Que goze dessa liberdade por muitos anos e apareça em escritos preciosos e rebuscados daqueles velhinhos da ABL que têm apreço por termos abumbrados ou túrbidos; ou transite livre na produção lírica de bardos inspirados. JAIR, Floripa. 24/09/11.

PS – Segundo o Huaiss calembur (substantivo masculino) significa: jogo de palavras semelhantes no som, mas de significado diferente, que dá lugar a dubiedades ou equívocos e muitas vezes é usado com finalidades jocosas; trocadilho; calemburgo.

18 comentários:

ricardoGAROPABAblauth disse...

alo JAIR

não conhecia a palavra mas vejo agora que sempre conheci muitos CALEMBURADORES........rsrsrsr

João Esteves disse...

Olá, Jair.
Essa palavrinha cá
pra que serviria, além
de me fazer sentir bur?

JAIRCLOPES disse...

João,
Gostei, os comentários podem ser mais inspirados e criativos que o próprio texto. Parabéns, JAIR.

Roberta de Souza disse...

Adorei o texto.
Quando eramos crianças brincavamos muito de dicionário.
Era uma brincadeira onde uma pessoa escolhia uma palavra bem difícil no dicionário enquanto os outros tentavam adivinhar o que significava.
Era ótimo para o nosso vocabulário essa brincadeira. Além de ser muito engraçado!
bj
Beta

R. R. Barcellos disse...

Voejem intímidos teus calembures!
Abraços.

Professor AlexandrE disse...

Gostei! Muito Legal... Assim como o 'Ricardo', não conhecia o termo, mais conhecia muitos 'CALEMBURADORES'...
Como sempre, um texto informativo, leve e divertido!
Parabéns!

J. Muraro disse...

Caro blogueiro,
Isso é boa literatura, você brincou com vocábulos não muito usuais e produziu um texto de qualidade. Meus cumprimentos.

Amélia Ribeiro disse...

Olá Jair,

não conhecia o termo, mas conheço alguns... :=)

Um beijo e bom fim de semana.

Augusto Lopes disse...

Olá,
Nao conhecia a palavra, mas já fiz muito uso de seu significado em algumas brincadeiras.
Muito interessante.
Bjos da nora,

Anônimo disse...

Também sou apaixonada por palavra e todas as coisas que englobem ela. Inclusive as "dinamicas" que se pode fazer com elas... como na foto do seu texto, um poema cinético... traz ao leitor um movimento, eu gosto desse tipo de leitura, até porque envolve nao só a intelectualidade do escritor, mas também a criatividade que envolve o contexto. Parabéns pelo texto! Amei. Beijos, Duda

Zilda Santiago disse...

Vou voltar com o dicionário...rsrsrsrsr
Bjs na alma.

Guilherme Schnekenberg disse...

Texto muito legal!!

Eu posso dizer que a parte mais legal da literatura são os tais de calembures. Brincar com o sentido das coisas tendo elas o mesmo som, a mesma origem, ou usá-las em orações que podem ser entendidas tanto no sentido literal quanto no figurativo ou popular.

Agradeço pela aquisição de mais uma palavra ao meu próprio vocabulário, abraços!

Andre Martin disse...

Hehehe...
Sempre gostei de ouvir e fazer jogos de palavras... Mas nunca soube que eu era um calemburador!

Maria Rodrigues disse...

Jair como sempre um texto excelente. Desconhecia completamente esse termo "Calembur", estamos sempre a aprender.
Bom domingo
Beijinhos
Mraia

Chico Simões disse...

Mas fui agor ao teu blog e vi o que lá está, o teu creio que CALEMBURES ou coisa parecida. Por coincidência, ainda hoje pela manhã eu li e tentava dar uma mãozinha ao filho de minha Lena numa redação para o curso que ele está fazendo. O teme era livre e ele escolheu justo este título: O JOGO DAS PALAVRAS. Ficou bem interessante. Achei curioso quando vi lá o teu texto sobre palavras e leituras e tudo o mais. Maravilha, como sempre. Tu também escreves e muito e divulgas paca. Muito bom, mas é difícil acompanhar de perto o teu ritmo... risos... Bem que eu tento.

Um abraço do amigo
Chico Simões.

Andre Martin disse...

Caro Jair Lopes,

Fiz uma referência a este post e ao seu blog, lá num dos meus blogs:

http://famainfame.blogspot.com/2011/10/serie-nao-confunda-44.html

Obrigado!

Luci disse...

Jair! Estou admirada pela forma como empregas os termos sofisticados em tons críticos,etc,etc.Mas,o seu depoimento de como foi alfabetizado foi o que mais me tocou.De forma simples,num método tradicional,sintético,alfabético,silábico...aprendeu a ler e apreciar a leitura e influenciar leitores!Para que servem tantas teorias pedagógicas,linguisticas...,num país em que há tantos analfabetos? Alfabetizadores...acordem! simplifiquem suas tarefas...esse testemunho é real.Luci.

Andre Martin disse...

Jair,

Vou lhe contar: já eu tive uma certa dificuldade para aprender a ler... até hoje leio mal (em voz alta) rsrs
Mas, talvez, porque cato, bebo e absorvo as palavras, uma por uma.

O que cativou você em devorar livros, palavras indecifráveis que atiçavam a sua imaginação, no meu caso a minha imaginação brigava com as palavras que a contrariavam posteriormente ao longo do texto.

Por isto me apego às imagens, e ás que da palavra suscitam. Talvez por isto eu justifique minha preguiça em ler textos grandes, em preferir histórias em quadrinhos, ou ver um filme em vez de ler o livro da mesma história..

Mas, ironicamente, gosto de escrever (espero que isto possa ser minha redenção do pecado da preguiça de leitura rsrs).

Abraço.