segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Peixe boi

O pacífico e vegetariano peixe-boi amazônico é quase um ícone daquela região, não só porque foi caçado quase até a extinção, mas por se tratar de um mamífero aquático de características únicas. Segundo revela pesquisa de seus DNAs mitocondriais, todos os animais da família dos Sirenios como o peixe-boi amazônico, o manati, a vaca marinha africana e o dugongo são descendentes de animais terrestres que retornaram à água. Contrariando a história da evolução que registra a vida inicialmente surgindo nos mares e, posteriormente, adaptando-se a terra, alguns animais, inexplicavelmente saudosos da vida aquática, fizeram a viagem de volta e tornaram-se mamíferos marinhos como as baleias e os golfinhos. Mas quem eram esses retornantes? Ainda não se sabe, não há registros fósseis confiáveis que indiquem com precisão qual a morfologia das espécies que se adaptaram, contudo, abundam indícios que se tratava de paquidermes possivelmente anfíbios parecidos com hipopótamos e, quase certamente, parentes distantes destes.
A informação mais interessante acerca desses mamíferos aquáticos diz respeito justamente a seus ancestrais. Os testes revelam que animais, cujo habitat é tão distante como os dugongos que vivem no sul da Austrália e os peixes-bois amazônicos, são descendentes de uma mesma linhagem, isto é, seus ancestrais são comuns. Isso tanto pode revelar que suas origens remontam a Gondwana, o supercontinente que teria antecedido a atual distribuição de terras secas no Planeta, como pode indicar que houve uma migração de longuíssima distância por parte desses animais, o que parece bem pouco provável.
De qualquer forma, a docilidade e a lentidão de movimentos dos peixes-bois quase os levaram a extinção. Os ribeirinhos da Amazônia viam (alguns ainda veem) no animal uma formidável fonte de proteínas de fácil acesso, de modo que a caça era generalizada, não respeitando quaisquer regras. Aproveitavam-se quando os animais vinham à tona respirar, colocavam em suas narinas tampões que os sufocavam, de modo que os bichos permaneciam na superfície o tempo necessário para serem mortos a pauladas. A crueldade da caça e o grande número de mamíferos abatidos levou as autoridades a proibir sua caça. Ainda que a proibição continue em vigor, é bastante normal no Mercado Público de Manaus, encontrarmos bancas de peixe vendendo carne de peixe-boi. A desculpa dos comerciantes é que o mamífero enroscou-se em uma rede destinada à captura de peixes e acabou se afogando, daí os peixeiros estarem aproveitando sua carne para comercialização.
O nosso peixe-boi é o único Sirenio que vive exclusivamente em água doce, os demais vivem em estuários onde as águas dos mares se misturam com as dos rios, ou vivem somente em água salgada. Por isso, como o manati é encontrável desde o litoral da Bahia até a Flórida, há uma zona de interseção de habitats nos deltas do Orinoco e do Amazonas onde o peixe-boi acaba convivendo com o manati. Pesquisadores do museu Emílio Goeldi de Belém encontraram, próximo a ilha de Marajó, um espécime que traz características de ambas as espécies, denotando que, mais do que convivência, houve cruzamento entre o manati e o peixe-boi. Embora o primeiro possa pesar até oitocentos quilos e o segundo não passe de trezentos. Como a natureza é sábia e não permite que a evolução dê saltos, o híbrido de duas espécies distintas como cavalo e asno, por exemplo, não é fértil, sua probabilidade de gerar descendentes é nula, assim, é estultice esperar que venhamos a ter uma nova espécie oriunda do cruzamento dos dois mamíferos marinhos. Portanto, o cruzamento de dois bichos tão diferentes é um mero acidente de percurso sem maiores consequências para a evolução das espécies, o equilíbrio da natureza não está ameaçado.
Por último, para infelicidade dele, um bicho que nem de longe parece peixe, muito menos boi, e é considerado por muita gente preconceituosa um monstrinho disforme e sem graça (feio) - ao contrário do panda, por exemplo - possivelmente não terá chance de sobreviver no nosso desumano mundo que, o mais das vezes, julga o valor dos outros pela aparência. Infelizmente o destino do simpático animal, que não é campeão de beleza por qualquer critério e que tem poucos predadores naturais, está à mercê dos piores e mais arrogantes seres que já pisaram o solo deste Planetinha azul. JAIR, Floripa, 22/10/11.

6 comentários:

Leonel disse...

Na imensidão da Amazônia, fiscalizar e impedir a matança descontrolada destes animais me parece quase inviável.
Infelizmente, creio que sua extinção seja inevitável, pois os que os caçam não estão nem aí para a ecologia...
Parece que será mais uma história com final infeliz...
Mas, foi bom lembrar que eles ainda existem! Até quando, ninguém sabe...
Abraços, Jair!

R. R. Barcellos disse...

E foram os sirênios que deram origem ao mito das sereias (donde deriva sirene e sirênio). Será o destino do peixe-boi tornar-se também uma lenda?
Abraços.

J. Muraro disse...

Fico imaginando como nós humanos somos preconceituosos, o Panda por bonitinho, tem todo nossa apoio para continuar vivendo, mas o pobre e feioso peixe-boi que se vire.

Professor AlexandrE disse...

Muito interessante... Sempre acreditei na possibilidade da 'evolução' ter seguido por 2 caminhos: da água pra terra (em alguns casos) e da terra pra água (em outros)...
Ótimo texto!
Parabéns...

Morelli disse...

Interessantíssimo! É ler e guardar. Obrigado.

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
podes imaginar o consumo de peixe-boi por aqueles que não queriam quebrar a norma da abstinência de carne. Como este vivia na água podia ser consumido. Em 917, se defrontou com a autoridade da Igreja. Discutia-se, então, se um alimento que contivesse ovo em sua composição interromperia ou não a necessária abstinência de carne que os fiéis deviam guardar durante a toda quaresma e nas demais sextas-feiras do ano.
As discussões foram polêmicas e se exigiu um Concílio – o de Aquisgran – para debater as possibilidades de se estar transgredindo uma norma e assim se cometendo um pecado. A Igreja, com sua secular autoridade e responsabilidade sobre seus seguidores, determinou que o ovo corresponde a um embrião animal e aquele que o comesse estaria quebrando o preceito da abstinência, portando ofendendo a Deus de maneira pecaminosa. Então, não faltaram aqueles que ostensivamente transgrediram a determinação eclesiástica. Estes foram considerados hereges.
Aliás, poderia haver uma alternativa legal, que muito provavelmente ninguém contra arguiu. Há ovos que são não galados – como a maioria dos consumidos hoje –, logo potencialmente estes não gerarão pintos. Se a alguém, então, ocorresse a idéia de produzir ovos não galados, certamente seria um sucesso de mercado, mesmo que haja os que afirmem que os ovos galados sejam mais nutritivos – muito provavelmente, não deva ser porque a galinha tenha tido um fugaz momento de prazer quando da inseminação.
Eis mais uma explicação à voracidade contra o peixe-boi.
Valeu, mais uma vez

attico chassot