Quando eu tinha por volta de doze ou treze anos, em Palmeira, além de trabalhar para meu pai no “Armazém de Secos e Molhados Arino Silva” costumava, para complementar a mixaria que ganhava com o trabalho, fazer “bicos”. Esclareça-se, fazer bicos consistia em obter dinheiro com alguma coisa que não fosse explicitamente ilegal. Costumava vender sucata conseguida nos terrenos baldios onde as pessoas despejavam suas inutilidades. Pedaços de ferro, cobre, bronze e alumínio eram materiais altamente valiosos que o sucateiro, seu Rodolfo, comprava sem perguntar a origem. Umas panelas velhas, restos de fios elétricos, peças de automóveis usadas descartadas pelas oficinas e outras bugigangas eram o passaporte da piazada para o cinema de domingo à tarde.
Ainda que a atividade de venda de sucata fosse a mais rendosa, não constituía uma fonte permanente de renda, visto que dependia dos rejeitos disponíveis e era muito concorrida, quase toda a piazada pobre se valia desse recurso. Então, como alternativa proveitosa, valia prestar serviços a quem precisasse. Eu sabia de alguns garotos que carregavam sacolas das senhoras que iam as compras, outros transportavam malas dos viajantes que chegavam no trem ou no ônibus e iam para o único hotel da cidade, Hotel Schultz. Também tinha um primo meu, o Amadeu, que costumava “forçar” um pouco na nobre atividade das sucatas, suas panelas amassadas nem sempre eram velhas ou furadas o suficiente para terem sido desprezadas pelas donas de casa, parece que ele se antecipava ao futuro descarte das panelas, se apropriava delas as vendia um pouco antes de serem jogadas fora. Bom para o comércio de panelas. O Amadeu era muito mais criativo que um simples vendedor de caçarolas quase velhas, ele também costumava amassá-las com uma pedra dentro de forma a aumentar-lhes o peso na hora de vendê-las. Só isso? Não! Ainda tem mais. Vez ou outra ele visitava em horas tardias o monte de sucata do seu Rodolfo, recolhia algumas daquelas que havia vendido e as vendia de novo outro dia. Era o sucateiro mais inventivo e próspero da turma.
Pois bem, sempre de olhos e ouvidos atentos a novas oportunidades de ganho, fiquei sabendo pelo Joel, meu primo, que agora havia uma fabriqueta quase clandestina de fluido para freios chamado “Pare” em um barracão velho perto do mercado municipal. A fábrica era propriedade de Carlos Malucelli, seu “Carlito”, que havia se formado em química industrial há muitos anos e exercia cargo de chefia na indústria da família, mas agora resolvera abrir seu próprio negócio. Como empresário matreiro e afeito a expedientes pouco ortodoxos que era, seu novo empreendimento tinha registro legal, recolhia os impostos devidos, emitia notas fiscais, mas explorava mão-de-obra escrava. Para funcionar, pagava uma mixaria por horas de trabalho da gurizada, sem registro de qualquer espécie. Trabalhava-se lá todas as tardes de sábados e algumas vezes a noite dos dias úteis. Por pouco que pagasse era com essa graninha que comprávamos figurinhas, picolés e sorvetes e revistas em quadrinhos na banca do seu Zéquinha. O trabalho consistia em misturar os componentes químicos nas proporções especificadas pelo seu Carlito, mexer a mistura em tambores de 200 litros, depois enlatar nos recipientes de meio litro, tampá-los e encaixotá-lo para venda aos postos de gasolina. Diga-se, o trabalho era quase uma brincadeira, sem supervisão rígida, esta era feita pelo Maíco nosso colega de aulas e vizinho de rua, nós meio que nos divertíamos e ganhávamos uns níqueis.
O terreno onde se situava a fabriqueta, a qual não ostentava qualquer letreiro ou nome que a identificasse, era um lote abandonado com algumas ruínas de casas e um poço tampado bem no meio. Aqui vale um esclarecimento, não havia água encanada na cidade, toda água usada para beber, lavar e cozinhar, vinha de poços cavados no chão até encontrar o lençol freático. O poço devia ter uns dez ou doze metros de profundidade e constava que fora abandonado porque sua água era imprestável para o consumo, tinha cheiro e gosto de óleo. Uma tarde de trabalho sem supervisão, o Joel e eu resolvemos “dar uma olhada” no buraco maldito. Levantamos a tampa e nos assomou um fortíssimo cheiro do que seria um produto petrolífero, algo como uma mistura de óleo e gasolina, aliás, exalação bem parecida com a dos produtos que vínhamos utilizando na fábrica de óleo de freios. Por curiosidade, pegamos uma lata vazia, amarramos num cordão comprido e a descemos até a superfície do líquido lá embaixo, deixamos encher e a trouxemos de volta. O conteúdo da lata parecia ser de gasolina um pouco mais escura que a normal. Aproximamos um fósforo aceso e o líquido inflamou-se. Havíamos descoberto petróleo! Sim, tudo levava a crer que se tratava de petróleo leve, uma variedade nobre que pode ser usada sem refino, era inconcebível ser outra coisa.
Descoberto o petróleo e sabedores que poderíamos ganhar algum com o produto, tratamos de guardar segredo e providenciar meios de vendê-lo para os consumidores. Primeiro, num lance ousado, colhemos uma amostra e pedimos para seu Carlito analisá-la em seu pequeno laboratório na própria fabriqueta. Ele, apesar de ter questionado onde havíamos encontrado aquilo, e nós mentirmos que se tratava de restos encontrados em algumas latas velhas abandonadas no lixo, fez alguns testes e sentenciou que era alguma espécie de derivado de petróleo muito inflamável, talvez usado em lampiões de iluminação.
Desse dia em diante, colhemos o líquido em vasilhas de um litro, meio litro e cinco litros e escondemos em baixo de nossas casas. Depois saíamos com algumas daquelas latas oferecendo em casas que ainda usassem lampiões e a motoristas. Nossos preços eram menores do que os cobrados pelos concorrentes: O comércio que vendia querosene “Jacaré” e as bombas que forneciam gasolina. Passamos a nos sentir uma espécie de árabes clandestinos, jamais revelamos a localização de nosso poço e ganhamos dinheiro para satisfazer as necessidades de dois meninos pobres. As reposições de nossos estoques eram feitas à noite com bastante cuidado para que ninguém percebesse.
Não lembro quanto durou nossa empresa petrolífera, - mais de dois anos, com certeza - só sei que com o tempo o poço acabou secando, não mais fornecendo o produto e tivemos que encerrar nosso lucrativo comércio, acabou-se nossa sociedade e voltamos ao ramo das sucatas. Algum tempo depois eu soube que naquela esquina onde descobrimos o poço, teria existido um posto de gasolina há muitos anos, mas isso não mais me interessava. JAIR, Floripa, 07/01/11.
6 comentários:
- Inda bem que você e o Joel enveredaram por outros caminhos... não sei se gostaria de ter um lampião alimentado com "Fluido Epecial Jairel (ou Joir)" ou um carro com freios acionados por fluido "Malucelli - produzido sob rigoroso controle de qualidade".
- Esta crônica, Jair, é nota dez. As palavras que você dirigiu à minha alma lírica, eu as devolvo em maiúsculas ao seu estro literário: COMO VINHO DE BOA CASTA, SE APURA COM O TEMPO!
- Parabéns.
Olá
Parabens pelo excelente texto. Encontro na sua escrita, montes de saudades de outros tempos e isso é bom pois a escrita preserva a memoria dos povos. Continue gosto muito
Abraço
Bons tempos,aqueles, quando guris achavam "petróleo" no quintal!
Você me fez lembrar o velho fogareirinho Jacaré!
Boas lembranças!
Abraços!
Muito bom! Essa aventura petrolífera de tua infância é uma experiência fascinante. Belo texto.
Jair, bons tempos aquele. Embora não tenhamos nem nos aproximados de qualquer marajá do petrodolar, vez ou outra tinhamos dinheiro para a matinê do domingo ou para os gibis que líamos. Aliás, ainda possuo dois almanaques do Cavaleiro Negro (Dr. Robledo e seu cavalo Molenga) e um do Fantasma (o espírito que anda) comprados naquela época.
Grande abraço,
Joel.
Uma comedia interessante!!!
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