segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A cetra


Sou do tempo e do lugar em que nem tudo estava disponível nas lojas ou no comércio, como dizíamos. Na década de cinquenta no interior do Paraná, em Palmeira, coisas simples como brinquedos para crianças eram “luxos” que, o mais das vezes, só eram encontráveis em Curitiba, quase cem quilômetros de péssima estrada de rodagem ou quatro horas de trem, de distância. Adicione-se às dificuldades geográficas, a falta de dinheiro que era uma constante para a grande maioria dos operários que trabalhavam nas serrarias abundantes na Palmeira daqueles anos. Meu pai era um desses tolhidos e mal pagos empregados das serrarias. Diga-se, pobres e escravos de madeireiros gananciosos, pais e mães eram tão corujas ou amavam seus filhos como os de hoje, e nutriam os mesmos desejos de verem seus rebentos felizes com presentes nos aniversários ou no Natal. Pois é, então se não havia grana ou era impossível comprar o mimo para os filhos, como os pais tiravam coelhos da cartola? Como as próprias crianças se viravam?

Ora, onde o dinheiro mal dava para comer o básico feijão-com-arroz com alguma carne nem sempre presente, mas sobrava imaginação, as pessoas usavam a criatividade. Se você queria possuir um bem, você criava esse bem! Os guris da rua em eu morava eram exímios construtores do que hoje, numa versão menos nobre, costumam chamar de carrinhos de rolimãs. A versão antiga desse brinquedo tinha quatro rodas de madeira, sofisticado sistema direcional composto de volante, barra de direção e tirantes de couro ligados ao mecanismo do eixo dianteiro, de modo que, o motorista, sentado num banco às vezes almofadado, girava o volante para onde desejava e o carrinho de madeira, se tudo estivesse correto, obedecia.

Pipas (papagaios, arraias, pandorgas e outras denominações) construídas pelos próprios usuários, saturavam o espaço aéreo da periferia com suas dezenas de cores e formatos os mais diversos. Essa pobre pipa de duas varas de bambu comprada em lojas que os guris de hoje bordejam pelos bairros, está a quilômetros de distância das que confeccionávamos com varetas de flor de capim, muito mais leves, que permitiam formatos e tamanhos que só perdiam para as elaboradas pipas japonesas. Lembro que eu fazia uma pipa chamada bidê, em cuja confecção entrava dezoito varetas de tamanhos variados e trinta e seis alfinetes, era uma obra de engenharia linda e voava com uma elegância magnífica. Fico com pena dos garotos de hoje com suas modestas pipas de duas varetas e formato sempre o mesmo.

Pois bem, caminhõezinhos, trenzinhos, bonecas, casinhas, piões e até bicicletas de madeira eram comuns na comunidade. Quando tinha cinco anos ganhei de meu pai, um triciclo de madeira pintada de azul piscina, feito por ele mesmo, um brinquedo especial. Toda a piazada da rua admirava meu brinquedo ágil e reluzente.

Era quase regra geral naquele tempo, os piás costumavam caçar passarinhos! Por favor, não julgue isso com conceitos ecológicos atuais, naquele tempo de poucos recursos isso representava uma fonte crucial de proteínas, a fome ditava comportamentos hoje politicamente incorretos. O que quero dizer é que caçar passarinhos requeria uma “arma” adequada para a prática, de tal forma que o potencial caçador fabricava o artefato que chamávamos de cetra. Em outras regiões do país tal instrumento recebe os mais variados nomes: estilingue, bodoque, atiradeira, funda, baladeira e outros mais. O importante é que era uma arma de arremesso constituída de uma forquilha em forma de “Y” provida de um par de elásticos, geralmente cortados de câmaras de ar, presos a uma tira de couro macio chamada malha, com que se lançavam pedras ou pelotas de barro cozido ao sol ou ao forno de lenha, bolotas de barro que chamávamos pelotes e transportávamos num bocó, ou seja um embornal próprio que levávamos pendurado no ombro. Assim, madeira, couro e borracha combinados no jeito certo davam luz à elegante cetra, terror dos passarinhos e, às vezes, das vidraças. Embora um instrumento simples, construir uma cetra era uma arte que requeria conhecimento especializado, aptidão manual e certa técnica, sem as quais o artefato acabava sendo uma bugiganga imprestável. Escolher nas matas a forquilha resistente era o primeiro passo. Pode parecer banal, mas encontrar um galho bifurcado simétrico, com os dois ramos de espessura igual, retos ou ligeiramente curvados, mas de igual ângulo de curvatura, madeira dura e lisa e sem nós, é uma habilidade que deve ser praticada com bastante empenho para se chegar a uma peça fundamental e que dever ser bem equilibrada, sob o risco de o instrumento tornar-se de má qualidade. Havia árvores “próprias” para se encontrar uma boa forquilha: Cambuí, branquinho, pau-ferro e aroeira eram as mais adequadas. Conseguida a forquilha, passava-se a aquisição de elásticos, borracharias eram os locais naturais para se conseguir pedaços de câmaras que servissem ao propósito. Câmaras michelin, de cor vermelha, mas muito raras, eram as melhores, na falta, câmaras de bicicleta e, por último, as demais. Cortavam-se as tiras com muito cuidado para não produzir “bocas”, ou irregularidades que acabassem enfraquecendo o material, enfraquecimento que poderia causar incidentes quando o elástico se rompia e atingia o rosto do atirador descuidado. O corte do material se fazia com tesoura para um acabamento ideal. A tesoura de costura de minha mãe perdia o fio por esse uso indevido e isso me custou algumas broncas e puxões de orelha, mas nada traumático felizmente. Por penúltimo, escolhia-se um pedaço de couro macio, geralmente uma banda de sapato velho servia perfeitamente. Amarrilhas eram o próximo passo, nada mais que tirinhas de elástico bem finas com as quais se amarravam as tiras maiores na forquilha e na malha, hoje seriam usados elásticos de prender dinheiro com mais eficácia, mas naquele tempo nem conhecíamos essa modernidade. Estava pronta a cetra, arma fundamental para abater os incautos pássaros que seriam degustados no jantar, a destreza no manuseio se adquiria com a prática.

Pois bem, também construí umas cetras com habilidade adquirida pelo método de tentativa e falha, fui um “cetrista” bem razoável. É bom que se esclareça, nunca matei passarinhos. Não sei se atribuo esse fraco resultado à pontaria ruim, alguma consciência ecológica precoce ou a cetras de má qualidade, contudo, acertei algumas vidraças em atos hoje considerados “de vandalismo”. Agora, no século vinte e um, passando as festas de fim de ano na casa de um amigo no litoral paranaense onde abundam árvores, resolvi testar minha aptidão em confeccionar uma boa cetra. Para isso, utilizei borrachas médicas encontradas nas farmácias, amarrilhas de maços de dinheiros, mas a forquilha foi encontrada, cortada e preparada com toda técnica e visão acurada adquiridas nos anos cinquenta. O artigo ficou bonito e funcionou muito bem, algumas garrafas PET sofreram danos irreversíveis com a potência da arma e minha pontaria que, afinal, não está tão enferrujada assim depois de quase seis décadas.

O resultado dessa incursão nas artes manuais é fruto da tentativa de provar que não perdemos nossas habilidades desenvolvidas na infância. Em outra ocasião, quando morei em Campo Grande, construí pipas maravilhosas que fizeram a alegria da garotada no dia da criança. Há quem diga que nadar, andar de bicicleta e datilografar, depois que se aprende nunca mais se esquece. Ouso dizer que capacidade de construir e usar cetras não se perde jamais também. JAIR, Matinhos, 02/01/11.

11 comentários:

Leonel disse...

Jair, esta arma, que no RS nós chamavamos "funda" me traz lembranças de dar arrepios!
Pois próximo da minha casa, havia um grande terreno arborizado que chamávamos "chacrinha". E este local, para nós guris, era palco de nossas "guerras de fundas".
A munição era constituída de bolotas de mamona, aquelas cheias de espinhos, e os tiros eram pra valer!
Tanto que numa dessas, fui espiar por cima de um tronco e levei com uma dessas bolotas no olho! Doía bastante e eu fui levado ao pronto socorro! Meu olho ficou num vermelhão só, e o amigo que me acertara escondido em casa, com medo de ter me cegado e ter que encarar as consequências! Felizmente, tudo foi superado, mas tenho até hoje a marca no olho atingido!
Quando eu lembro, ainda dói!
Abraços!

Anônimo disse...

Explêndido !!!

R. R. Barcellos disse...

- Na minha infância, nossa turma de moleques era eclética: havia-os de famílias pobres, remediadas e uns poucos de famílias abastadas. E eu aprendia habilidades como a fabricação de bodoques e cafifas sempre com os menos endinheirados - talvez por isso, os mais afortunados em habilidades manuais. E cheguei a fabricar, com minhas mãos, três ou quatro "setas" (como as chamavam) de razoável qualidade, a partir de galhos de goiabeira.
- AH, E TAMBÉM CURTÍAMOS NOSSAS GUERRAS DE MAMONA.
- Bons tempos... e mesmo botando de lado a nostalgia do tema e a admiração pelo amigo... Parabéns, Jair. Grande texto! Bela estréia no ano!
- Abraços.

Joel disse...

Jair, belo e reflexivo texto, me fez voltar aos bons tempos de piá. Assim como vc, nunca fui bom matador de passarinhos mesmo pq além de mau atirador, tbm tinha dó, pena mesmo daqueles que conseguia acertar. Lembra da vez em que acertou um pardal com um tiro de espingarda de chumbinho? Estávamos na janela do teu quarto e o passarinho "sentou" na copa de uma árvore que havia no quintal da segunda casa ao lado da sua, uma distancia realmente grande. Duvidei que acertasse mas vc acertou, e o que para nós na época foi considerado um belo tiro, para o Tio Beto não passou de uma "cagada" pois segundo ele, vc poderia atirar mais dez vezes e não acertaria um tiro sequer. É bom deixar claro que ele não estava presente ao acontecimento. Apenas foi informado por mim e acabou fazendo esse comentário nada elegante.
Outra coisa: Lembro bem dos bidês que vc construia, muito bonitos realmante. Minha especialidade era construir arraias. Lembra?
Quando tiver um tempinho escreva sobre as "mascas" (máscaras) que fazíamos no carnaval usando argila e jornal picado.
Grande abraço,
Joel.

J. Muraro disse...

Essas crônicas voltadas para as peripécias de sua infância são o máximo. Siga o caminho das outras crônicas e publique im livro de textos curtos autobiográficos. Sei que vai ficar supimpa. J.M.

Adri disse...

Gostei!

Anônimo disse...

Jair,
sua postagem me fez lembrar da minha infância, das minhas bonecas feitas de espiga de milho, o cabelo do milho era o cabelo da boneca...minhas bonecas de pano, pois éramos pobres e brinquedos só: com mangas verdes, espigas de milho, sabugo, e folhas de mamonas, tenho grandes e maravilhosas lembranças de uma infância feliz, apesar do frio e fome que as vezes batia à nossa porta.
Quanto a funda me lembro muito bem da primeira vez que fui atirar com uma: virei a furquilha de frente pro meu rosto estiquei o qt pude e soltei kkkkkk advinha que aconteceu?
Amei seu blog, o meu ainda está engatinhando, mas qd eu crescer vou ser igual a você
Parabéns senhor pensador!!!!

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá amigo Jair

Registe aí mais um termo para a sua Cetra, Fisga...

Excelente trabalho, um belo exercicios de memória passado há quantos anos não ouvia falar destas coisas... Parabens adorei ler e recordar como fomos felizes mesmo com poucos recursos.

Abraço

Anônimo disse...

Grande, Jair, é muito legal a gente ler/ouvir alguém chamar cetra de "cetra", que também, empunhei, sem muita destreza, não na "Parmera" dos 50'; mas sim, na Piraquara dos 70', embora, por uma feliz coincidência, minha mulher é de Parmera,a Cidade Clima, e meu filho também nasceu lá! Você ainda anda por aquelas bandas?

Abraços Daniel

Anônimo disse...

Grande, Jair, é muito legal a gente ler/ouvir alguém chamar cetra de "cetra", que também, empunhei, sem muita destreza, não na "Parmera" dos 50'; mas sim, na Piraquara dos 70', embora, por uma feliz coincidência, minha mulher é de Parmera,a Cidade Clima, e meu filho também nasceu lá! Você ainda anda por aquelas bandas?

Abraços Daniel

P.S.: Eu cheguei até seu texto, mediante uma consulta ao google à palavra "cetra", pois, conforme acima, eu, inúmera vezes, a havia escutado e falado, porém nunca a vi escrito, de maneira que fiquei em dúvida se escrevia com "s" ou "c". Na consulta ao dicionário, a dita cuja cuja não constava, daí que tive a idéia do Google!

Abraços Daniel Macarrão

JAIRCLOPES disse...

Daniel,
Gostaria que você entrasse em contato pelo email: oveque@hotmail.com
Abraços, JAIR.