sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Foguete


Rolava o ano de 1957, no Cine Teatro Municipal de Palmeira havia passado o sensacional filme de ficção científica, “O Planeta proibido” e, para gáudio dos russos, eles, na desenfreada corrida espacial com os americanos, haviam faturado um ponto importantíssimo: lançaram com êxito o primeiro satélite artificial da história da humanidade, o Sputnik. O artefato era uma bolota de alumínio polido de 58 cm de diâmetro e 83 kg, com 2 pares de antenas flexíveis de 2,4 m e 2,9 m que, parece, só fazia: bip, bip, bip. Mas, mais importante que tudo, seu lançamento abria a possibilidade de exploração do espaço, até então restrita às revistas de HQ com estórias do herói intergaláctico Flash Gordon e filmes como “O Planeta proibido”, com Leslie Nielsen, cujo falecimento se deu agora em 2010.

Pois bem, era indiscutível que o mundo todo estava atento aos passos que as duas potências rivais dessem. Qualquer piscar de olhos ou suspiro mais prolongado de um dos oponentes era acompanhado com suspense pelo resto da humanidade. Mas, em Palmeira como as pessoas reagiam a essa nova fronteira sendo desafiada? Não sei os outros, mas o Joel e eu ficamos excitadíssimos com as possibilidades que se apresentavam. Os fatos ouvidos no rádio (não havia televisão ainda, mas, se houvesse, com certeza não seria em nossas casas, pois éramos muito pobres) e lidos nos jornais davam origem a acalentados debates dentro de nosso limitado mundo de conhecimento. Entretanto, sabíamos até antes de tocar no assunto, que tínhamos que fazer alguma coisa, ficar vendo o trem da história passar não era opção. Sim, devíamos participar de alguma forma naqueles eventos tão importantes. Mas como? O que dois piás cheios de imaginação e dispostos a empregar toda a criatividade possível, mas sem recursos, poderiam fazer?

Depois de muito pensar e debater, chegamos à conclusão que tínhamos condições técnicas de construir um foguete. Não, evidentemente, um foguete tripulado ou mesmo de porte médio sem tripulação, mas um foguete vistoso que se decolasse rumo às nuvens já estava de bom tamanho. Concebida a idéia, passamos ao projeto físico e o suporte econômico. Como um artefato daquele nunca receberia o aval dos adultos e era impensável conseguir algum patrocínio, tivemos, mais uma vez, que recorrer à nossa fonte principal de recursos financeiros: venda de sucata. Incrementamos nossos esforços na busca de sucatas de bronze, latão, cobre e alumino, de forma que em três semanas de trabalho árduo e alguns cortes nos gastos “supérfluos” já dispúnhamos de numerário suficiente para dar seguimento ao empreendimento espacial. Como propulsores, havíamos estabelecido que aqueles fogos de artifícios chamados “buscapés”, tubos cheios de pólvora que, quando inflamada, impulsiona o objeto com grande ímpeto à frente, seriam usados; tantos quantos necessários para fazer nossa trapizonga decolar. O engenho em si era um cilindro reforçado mas bem leve de papelão encimado por um cone do mesmo material, os propulsores seriam colocados internamente no tubo em sequência, de forma que os primeiros a serem ignizados fossem os da base, em seguida os outros até o topo. Não era um projeto complicado que envolvesse grandes desafios técnicos. Os óbices estavam em conseguir a grana, o que já havíamos conseguido, e fazer com que os propulsores queimassem de acordo com o planejado. A fábrica de fogos da rua sete nos forneceu os “motores” na forma de busca-pés maiores e mais potentes. O problema relativo aos propulsores foi resolvido com um ensaio secreto feito depois que compramos pavios que queimariam durante a ignição de um estágio, ateando fogo no próximo estágio quando o anterior houvesse apagado. Não foi muito difícil estabelecer o tamanho dos pavios para que a sequência se fizesse sem solução de continuidade. Não afirmo com certeza, mas, parece que eram 72 propulsores dispostos em três camadas, cada uma representando um estágio, ou seja, depois que o primeiro estágio de 28 propulsores queimava, a parte de baixo do foguete se desprendia com os propulsores queimados de modo a deixar o foguete mais leve. A camada seguinte se comportava da mesma forma até que a terceira camada ou terceiro estágio queimava em altíssima velocidade impulsionando o foguete até não sei onde. Isso, se tudo estivesse de acordo com o planejado. Os dois estágios que se soltavam não requeriam qualquer concepção complicada de engenharia, cada um era simplesmente encaixado no superior e se mantinha assim pelo empuxo dos propulsores, quando estes se extinguiam, a força que mantinha o estágio conectado ao seguinte parava e o estágio queimado caía por gravidade, auxiliado pela queima dos propulsores de cima. Complexidade não era opção.

Então, com o engenho espacial secretamente pronto e devidamente guardado em baixo da casa do Joel, marcamos o lançamento para uma noite escura sem luar, sermos vistos por curiosos não era opção, podíamos fracassar e virar objeto de gozação dos invejosos. Nossa plataforma de lançamento seria um campinho de peladas atrás do conjunto de casas onde morávamos, o momento marcado para o evento era 21horas, quando não haveria ninguém mais nas ruas, os habitantes daquele pedaço costumavam se recolher cedo, visto terem que trabalhar às sete da manhã. Na hora aprazada, cheios de expectativa, com a poderosa máquina nos ombros fomos ao nosso Cabo Canaveral. Sentíamos como se fôssemos o próprio Werner Von Braun conduzindo sua primeira experiência com o foguete V-2. Colocamos o produto de nossos esforços criativos e econômicos no centro do gramado e nos afastamos uns cinco metros, onde poderíamos acender o pavio em segurança. A ignição da trapizonga coube ao Joel por sorteio. Acendido o pavio, este induziu a queima do primeiro estágio em dois segundos, quando os propulsores começaram a queimar houve um átimo de respiração suspensa, parecia que o projeto ia falhar. Nesta altura, falha não era opção. Não! Não houve falha! Lindamente os buscapés impulsionaram o foguetão para o alto com uma segurança e velocidade só possíveis num projeto tão perfeito como aquele. Havia uma camada de nuvens a uns duzentos metros talvez, essa camada foi rapidamente ultrapassada e pudemos ver quando o primeiro estágio se desprendeu e o segundo iniciou a queima. Daí, o ruído infernal do início foi diminuindo na medida em que o foguete subia, nada poderia detê-lo. Não chegamos a perceber quando terminou o segundo estágio e começou o terceiro, o artefato se perdeu em espaço nunca dantes navegado. Foi o ápice de um trabalho árduo de dois garotos obstinados e antenados nos últimos acontecimentos da corrida espacial. Nos sentimos os próprios pioneiros da astronáutica, dali em diante, secretamente, sabíamos que, se quiséssemos, conseguiríamos. Éramos vencedores.

No dia seguinte ouvia-se pelas ruas do bairro comentários a cerca de algum OVNI extremamente barulhento que subiu aos ares nas proximidades. Não se cogitava que fosse um aparelho construído debaixo das barbas daqueles adultos incréus. Em seguida a esse sucesso surpreendente, pensamos em construir um foguete mais potente que levasse um cachorro ou um gato na ogiva e que, por um mecanismo próprio, liberasse o animal lá em cima deixando-o cair de pára-quedas. Nunca chegamos a tentar essa façanha, o projeto era um desafio um pouquinho além de nossa capacidade técnica. Entretanto, a partir daí e para sempre, gostamos de pensar que nosso foguete encontra-se orbitando a Terra junto aos engenhos que as grandes potências enviaram a custo de milhões de dólares e rublos. Sonhar é opção. JAIR, Floripa, 15/01/11.

5 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Jair, as peças do quebra-cabeça que comporão sua autobiografia ficam cada vez mais cativantes.
- Os meus primeiros foguetes (bem menos ambiciosos que o seu megaprojeto) tinham menos de um palmo de comprimento, mas eram propelidos por um combustível revolucionário: nada menos que sumo de casca de laranja, fruto de pesquisas do nosso "staff" - meu irmão Marcos e um amigo nosso, o Sérgio Maurício. Bons tempos!

Leonel disse...

Felizes vocês, que tinham espaço e liberdade para construir e disparar sua engenhocas espaciais!
Felizes também os pobres gatos e cachorros, que felizmente escaparam de serem os primeiros mártires espaciais brasileiros!
Eu me limitava a construir planadores de madeira com asas e estabilizadores de papelão, que voavam que era uma beleza, sem atrair tanto a atenção dos adultos, salvo um ou outro admirado amante da aviação.
Linda recordação! Recentemente, vi um filme na TV, sobre garotos americanos que também queriam construir foguetes, naquela mesma época.
Tá começando a se formar outro livro...
Abraços!

J. Muraro disse...

Muito boa mais essa aventura dos pempos de guri. Parabéns.

Dismael Sagás disse...

Parabéns pela iniciativa!
Ótimo blog!

Joel disse...

Jair. Lembro que no dia seguinte ao evento, lá na venda do seu pai, o Seu "Nanías", algumas pessoas comentavam o fato de terem ouvido um barulho muito forte no meio da noite. Carlos Fabris, o Sabugo, falou que sua mãe ao ouvir o barulho fez o sinal da Cruz e se recolheu ao quarto com medo de que o mundo fosse se acabar. Note, o Picego, que morava nas proximidades disse que saiu à janela e chegou a ver um clarão por entra as nuvens. Alcir, o Capeta, falou que não ouviu nada porque estava dormindo. Já o Noé, com um copo de cachaça na mão comentou: Pra mim isso só pode ser coisa desses russos malucos.
Grande abraço,
Joel.