Em Palmeira, cidade interiorana situada no segundo planalto do Paraná, a paisagem é um misto de campos gerais, constituídos de vegetação gramínea com pequenos arbustos esparsos, e matas ombrófilas de transição, uma mistureba de mata atlântica e mata de zona temperada cheias de araucárias. A flora é belíssima e muito rica em imbuias, cedros, variedades de canelas e, sobranceiras as demais árvores, as araucárias. Crianças criadas sem medo de animais e livres de ambientes onde há violência, era comum os piás de minha época embrenharem-se nos matos em busca de pinhões os quais comíamos às vezes no próprio local, ou na época certa colhíamos gabirobas muito doces e pitangas deliciosas.
Férias escolares coincidentes com os verões eram uma dádiva para nós naqueles tempos, davam-nos oportunidade de pescar lambaris nos riachos ao tempo que explorávamos as matas circundantes. Diga-se, matas fechadas, misteriosas com nomes meio estranhos como, Mata do Manhoso, Furadinho, Vaca Morta e outras. Pois bem, estava meu tio Beto, meu primo Joel e eu em uma dessas excursões no interior da mata mais densa, grande e inexplorada do pedaço quando, numa clareira ensolarada, nos deparamos com um animal que, até então, apenas tínhamos visto em revistas e livros de historinhas infantis: um Unicórnio. Parece que meu tio ficou extático, meio assustado e apreensivo com a aparição, meu primo e eu não reagimos assim, nos pareceu bastante natural que uma floresta daquele porte abrigasse a criatura a qual estávamos vendo. Porque não? Unicórnios podiam ser tão raros em alguns lugares que as pessoas os tinham como lendas e até escrevessem história fantásticas sobre isso, mas para nossa imaginação infantil não havia razão para não existirem ali onde podíamos vê-los. O animal, ao contrário das representações fantasiosas dos livros que os mostravam sempre brancos, pareceria um pônei, era baio com um chifre cônico em espiral no meio da testa, parecia tranquilo e não se assustou com nossa presença. Apenas levantou um pouco a cabeça, moveu as orelhas, deu uma olhada e continuou pastando como se nada houvesse acontecido.
Pois é, a partir daquele dia, o cavalinho engraçado que já habitava nossas imaginações e as histórias que líamos, passou a ser o amigo secreto que vez ou outra visitávamos na mata. Era uma experiência inusitada que não partilhávamos com outros piás, não nos interessava dividir aquela amizade com outros. Penso que procedíamos assim mais por egoísmo e um sentimento de exclusividade que, aliás, era comum na maneira que a gente fazia nos casos em que encontrávamos alguma coisa nova interessante. Por exemplo, se nas andanças deparávamos com um pé de guabiroba particularmente produtivo ou com frutos mais saborosos, fazíamos questão de não dividir a descoberta com os guris nossos conhecidos. Meu tio, visivelmente incomodado com a descoberta, nunca a comentou com ninguém, acho que não queria ter que explicar aos amigos e companheiros coisas que sequer entendia, até hoje, quando se menciona o fato na sua presença ele desconversa ou se zanga e nada fala. E nós continuamos a curtir o equino durante o verão todo, passamos a levar folhas de alface, algumas cenouras e repolhos, iguarias que ele adorava, e o bicho tornou-se nosso companheiro de caminhadas, pois nos acompanhava mata a dentro quando íamos visitá-lo. Havia uma coisa que ele jamais fazia, nunca saía da mata. Quando nos retirávamos depois de ter passado a tarde toda na sua companhia, o dócil equino nos acompanhava até o limiar da floresta onde começava o campo, dali seguíamos sozinhos e ele voltava para o interior do mato. Nunca soube se na área existiam outros de sua espécie, nunca nos foi dada a oportunidade de encontrar algum. De resto, não sei se por ingenuidade ou por qualquer outro motivo, não achávamos estranho que o cavalinho fosse um ser único, sem família, parecia natural que estivesse sozinho no mundo.
A decisão de não divulgar a morada do animal gerou, a meu ver, duas consequências distintas, preservou a privacidade necessária que ele precisava para sobreviver, mas, a longo prazo, privou-nos da possibilidade de comprovar junto à história e ao mundo, sua existência. Equivale dizer que hoje, quando conto o evento, as pessoas se recusam a acreditar, acham que estou criando fantasias. Quisera eu ter imaginação tão fértil a ponto de criar uma estória tão extraordinária, acho que se assim fosse seria escritor de histórias fantásticas e ganharia muito dinheiro com isso.
Então, passaram-se as férias como sempre e as aulas voltaram, não havia tempo para visitar o cavalinho baio com chifres, nova oportunidade só nas próximas férias de meio do ano. O semestre, assim como veio passou batido em meio nossa expectativa de voltar à mata onde o Unicórnio vivia. Era primeiro de julho de 1958, lembro muito bem, tão logo as aulas acabaram, com algumas verduras e duas ou três bananas lá fomos nós para o local onde o animal costumeiramente pastava. Chegando à clareira, para nossa decepção nada encontramos, e pela altura da grama parecia que há muito tempo herbívoro algum ali pastara. Sinceramente, nunca havia me passado pela mente, mesmo que por um instante sequer, a possibilidade de que o animalzinho sumisse da mata, mudasse para outro local ou viesse a morrer talvez. Fizemos um busca “pente fino” pelos arredores, mas nunca mais o vimos, o Unicórnio volatizara-se, ficamos meio zangados e tristes por tê-lo abandonado aquele tempo todo, achávamos que ele mudou por que seus amigos não mais o visitaram. Hoje vejo a coisa um pouco diferente, se o cavalinho não houvesse sumido de lá, acabaria sendo descoberto por outras pessoas, talvez adultos sem imaginação e gananciosos, talvez gente mal intencionada, talvez caçadores ávidos por raridades. Para o bem dele, tenho certeza, mudou-se para algum local onde jamais foi encontrado e viveu feliz até a velhice com alguma fêmea de sua espécie. Por que penso assim? Porque hoje, conversando com minha prima Patrícia, que por acaso gostava de trilhar aquelas matas, ela me contou que também encontrou um Unicórnio, só que branco e fêmea. Já que o “meu” era macho, fico feliz em imaginar que ambos se encontraram, acasalaram, tiveram filhos e viveram muitos anos nas matas onde jamais foram vistos por outros olhos humanos. Seus descendentes talvez ainda vivam no que resta daquelas florestas. Outra explicação possível é que o unicórnio tenha perdido o chifre por acidente e acasalado com alguma égua selvagem daquelas que existiram por lá na época. E viveram felizes para sempre. JAIR, Matinhos, 02/01/11.
9 comentários:
Unicórnio: "Jair, vc está simplesmente magnífico. Nem mais, nem menos. Vi uma vez um critico de cinema dizer que Marlon Brando ao interpretar Don Corleone em O Poderoso Chefão foi tocado pelo dedo de Deus. Digo o mesmo de vc nesta trilogia. Coisa linda."
Grande abraço,
Joel.
- Seu unicórnio não morreu, nem perdeu o chifre, meu amigo. Eu o vejo amiúde, ou a um seu irmão, acompanhado de muitos outros... pois basta à realidade, para de fato existir, a crença - embora os seres inferiores invertam quase sempre essa lógica luminosa.
- Abraços!
Amigo, eu o invejo, pois os únicos unicórnios que eu vi foram no papel:
o primeiro em gravuras de uma antiga revista VOGUE da década de 30 que tinha na minha casa;
o segundo, numa história do Pato Donald em que ele e seus sobrinhos vão atrás de um destes animais, para o zoológico do ganancioso Tio Patinhas.
Mas, eu também presenciei coisas incríveis e únicas, das quais nunca me esqueci!
Abraços!
Não vejo por que não existirem unicórnios nas florestas paranaenses, pois não existia um rinoceronte no Sitio do Pica-pau Amarelo, em Taubaté?
Abraços, Jair, continue nos brindando com essas experiências salutares de tua infância.
Bem-vindo à minha escarpa
Perdi meu unicórnio
ou ele se perdeu de mim
naquele verão.
Jair,
que maravilha receber sua visita e poder conhecer seus vários maravilhosos blogs! Parabéns pela belíssima forma de explorar sua sensibilidade!
Venha sempre nos visitar!
Abraços,
Laryssa
www.ponto-arquitetura.blogspot.com
Yo también te envidio, porque los que vi fue en papel.
Me gusta tu escrito.
Te dejo saludos y te deseo un FELIZ 2011!
Sergio.
Olá,
Fui lendo este texto e pensando como é importante a criança ter este contato com a natureza. Uma fase mágica, onde nossa mente pura nos ajuda a deixar uma aventura ficar muito mais inesquecível. Me lembrei de quando era criança, sempre gostava de andar sozinha com meu cavalo em nossa fazenda, descobrindo novos reinos encantados. Parabéns pelo texto,
Beijos da nora,
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