segunda-feira, 21 de junho de 2010

Ensaio sobre a Guerra


"Bellum omnium contra omnes"

Vejamos um conceito bem acadêmico de guerra: “Guerra é uma disputa entre nações ou estados, realizada pela força, quer para a defesa, com intuito de vingar insultos e corrigir erros, visando ampliação do comércio, objetivando aquisição de território, para a obtenção e estabelecimento de superioridade e/ou domínio de um sobre o outro, ou para finalidade inconfessável; conflito armado de poderes soberanos; declarados e hostilidades abertas”.
Qualquer que seja o motivo que resulte em guerra, a verdade é que o estado de guerra subverte a estabilidade das comunidades envolvidas no conflito, deteriora a estrutura da sociedade e traz insegurança, seja no nível individual seja para a coletividade.
O estado de guerra determina o rompimento dos valores éticos que norteiam a conduta cívica dos homens; abole os princípios religiosos que pregam o perdão e a oferta da outra face ao ofensor; detona as leis e costumes que punem aquele que mata; esgarça o tecido social de modo a torná-lo roto, sem coesão.
De maneira geral, abala não só a relação de uns com outros, mas a noção de espaço e tempo. Explico, o espaço físico se torna local de insegurança ou de refúgio de acordo com as condições reinantes. O tempo passa a ser fator de incerteza, não se sabe o que acontecerá amanhã e, em alguns casos, o vai acontecer daqui a minutos.
Entrar em estado de guerra é, na verdade, adentrar um mundo paralelo, uma zona cinzenta onde comportamentos antes reprováveis, e valores antes invioláveis, passam a ser normais os primeiros e desprezados os segundos. Quem nunca matou e tem a convicção religiosa do pecado que isso representa e a noção social de crime passível de punição, passa a ter carta branca para fazê-lo, sem maiores consequências. Matar seu semelhante deixa de ser crime para se tornar um dever ou uma missão, e não matar passa a ser traição. A lógica se inverte e a mente do indivíduo entra em choque.
O fim da proibição de assassinato (crime maior) acarreta a tolerância implícita com estupros, violações e roubos (crimes menores), dentro da concepção: Nós contra Eles. Eles são aqueles os quais se pode matar, violentar e roubar sem punição. Não importa que “Eles” sejam os amigos ou os inocentes de ontem, a propaganda se encarregou de demonizá-los, de modo que hoje são nossos inimigos. Todo estado de guerra é precedido de propaganda que estabelece quem é o inimigo, porque é inimigo e o que fazer para livrar-se dele. Não importa que a razão e a verdade sejam manipuladas, isso apenas comprova que quando o conflito começa, “a verdade é a primeira vítima”.
O medo, que antes era um conceito vago ou uma realidade apenas pressentível diante de eventos que gerassem insegurança física, emocional ou social, agora passa a ser uma entidade viva e palpável, uma presença angustiante que causa estresse e se imiscui pelos interstícios mais banais da vida diária. O medo interfere na fisiologia humana, tira o sono e o apetite, causa palpitação, contrai os músculos e diminui o metabolismo, pessoas acometidas de medo crônico, embora tendam a comer em demasia em função da ansiedade, não digerem com eficiência e emagrecem, crianças submetidas a medo constante deixam de crescer, têm diarréia, pesadelos e tornam-se irritadiças. Medo é uma espécie de desconforto existencial extremo que não tem tratamento, não tem como evitar ou lenir, e acomete a todos mentalmente sãos, só os insanos lhe estão imunes, só os alienados lhe são indiferentes.
A morte é o único evento absolutamente inevitável e que alcança a totalidade dos seres vivos, mas nós, ocidentais de cultura judaico-cristã, não temos familiaridade com ela; não consta no curso do dia-a-dia de nossas vidas quaisquer práticas, cultos ou ritos que visem enquadrá-la num entendimento racional. Temos pavor dela e tentamos ignorá-la como se não existisse, como se fôssemos viver para sempre. Claro que essa atitude pode ser explicada pelo terror que alguma coisa tão definitiva e irrefragável causa a mentes pensantes, cujo funcionamento só é possível enquanto vida houver. Contudo, o estado de guerra traz a morte para dentro e casa, por assim dizer. A morte passa a “dividir espaço” com as coisas do dia-a-dia, ela se torna presente e opressiva, não há como escapar de sua inevitável possibilidade a qualquer momento. Ela é apavorante e traz terror para a vida dos inocentes da comunidade em guerra.
Conquanto nos últimos dois mil anos a humanidade só esteve em paz nuns poucos cem anos, o estado de guerra não pode ser considerado, sob o ponto de vista social ou emocional, um estado “normal”, não é algo que os seres humanos assimilam e convivem sem traumas, o estado de guerra é uma anomalia. O homem, ao guerrear contraria seu instinto de sobrevivência, ou seja, ele mata seres de sua espécie que poderiam dar seguimento à perpetuação; que poderiam ser elos férteis na corrente genealógica do Homo sapiens; ao eliminar seus semelhantes está, de certa maneira, se auto-eliminando, eliminando a própria humanidade. Hobbes tinha razão, “Homo homini lupus” (O homem é o lobo do homem), não tenhamos dúvida. JAIR, Floripa, 21/06/10.

2 comentários:

Leonel disse...

Jair, esta transformação de cidadão em soldado combatente, que implica em fazer com que o indivíduo rompa com os princípios morais e humanitários e passe a exterminar sem remorso seus inimigos, parece, infelizmente, ser uma via de mão única: depois de perder o respeito pela preservação da vida, é bem difícil voltar a valoriza-la novamente. A mente humana pode se confundir quando, após matar dezenas de pessoas sem nenhum motivo pessoal, tem que voltar a ter as limitações legais e morais quanto ao extermínio de alguém.
A incapacidade de voltar a ser cidadão já causou diversos incidentes trágicos com veteranos de guerra nos EUA, que desde o fim da II Guerra mundial não ficam muito tempo sem se envolverem em conflitos com emprego de força militar.

R. R. Barcellos disse...

- A liceidade da guerra é um tema recorrente na filosofia. Quando um povo é violado em seus direitos fundamentais e vê sua própria sobrevivência ameaçada, é lícito que recorra à guerra?
- Muitos entendem que sim, desde que:
- 1. Sejam esgotados todos os meios diplomáticos para evitá-la;
- 2. Haja uma perspectiva concreta de vitória;
- 3. Seja declarada por um representante legítimo do povo vitimado;
- 4. Seja conduzida conforme as regras internacionalmente aceitas;
- 5. A vitória não se transforme em vingança.

- Um pouco utópico, não acham?