segunda-feira, 21 de setembro de 2009

VOAR


Por pouco mais de quarenta anos voei como profissão. Por todo esse tempo voei sem muito pensar sobre o assunto, e sem teorizar sobre as razões que levam o homem a desafiar a gravidade, a elevar-se no ar e sentir-se algo como um pássaro desajeitado e barulhento, invadindo o espaço franqueado a nuvens e aves. Aliás, pouquíssimos têm sido os aviadores que se aventuraram pelo caminho de registrar na literatura suas experiências e sensações lá onde a liberdade parece uma coisa palpável e real, e as nuvens são vistas de cima. A aviação, ainda que considerada uma atividade charmosa e com certo mistério, parece, não costuma suscitar o surgimento de profissionais sensíveis dispostos a transformar em livros seus pensamentos e percepções quando observam a paisagem do alto para baixo. Os autores consagrados: Saint Exupery e Richard Back, talvez os aviadores-escritores que mais êxito tiveram nas suas carreiras literárias, são as exceções que confirmam a regra. Não nos esqueçamos que voar é, além de técnica, arte; Além da habilidade necessária para controlar uma máquina complexa, é a sensibilidade e delicadeza de transformar um mero deslocamento rápido em algo prazeroso e estético. Voar como arte é mais do que dominar as manobras e conhecimentos necessários para decolar, deslocar-se em cruzeiro e pousar com segurança. Voar como arte é “vestir” a aeronave como uma roupa sensível que reage às manobras de quem a comanda, e às forças externas que atuam sobre a fuselagem, superfícies das asas e empenagem; é perder o peso e a consistência, tornar-se insubstancial e transparente como aquele elemento que envolve e apóia a aeronave; é sentir-se como uma nuvem, mais até, é diluir-se e se transformar num ente etéreo, confundindo-se com o próprio ar. Desde que o ser humano iniciou seus deslocamentos pelo ar, já voou bilhões de quilômetros, cruzou todos os pontos possíveis do globo sobre florestas, cidades, desertos, mares e pólos. E, mesmo assim, para sua eterna frustração, apesar das bilhões de horas passadas lá em cima, jamais deixou o menor rastro no céu. Quando por lá passamos, deixamos uma pequena turbulência no ar atrás do avião. Mas logo o céu volta a ser liso e macio como se nada o tivesse perturbado, apagando todo e qualquer sinal de nossa passagem, tornando-se mais uma vez deserto e silencioso. O céu ignora o homem e sua vã pretensão de imitar os pássaros. O céu parece dar um recado para o homem: seja humilde, seu lugar é no chão, aqui em cima você é um intruso e como tal será tratado, não poderá deixar rastros por onde passou, não poderá marcar território onde nunca foi convidado, onde é apenas tolerado. Mesmo que tenhamos, por algum tempo, tentado fazer parte daquele elemento, o ar, não nos é dado a faculdade de deixar marcas que atestem nossa passagem por lá, somos perfeitamente desconhecidos pelos céus. Se nos resta algum consolo, é saber que os pássaros e todos os que se atrevem a voar também não deixam rastros. O céu é soberano, os pretensiosos seres que se alçam aos ares nunca terão a felicidade tornar seus os elementos que envolvem e fluem em torno dos corpos. JAIR, Floripa, 21/09/09.

8 comentários:

Anônimo disse...

Fariseu, muito bom. Abração
Fabio

Jorge disse...

Bem, eu exerço atividade aérea há muitos anos (não tantos quanto os seus) e não havia pensado o voo dessa maneira. Maneira invasiva e não bem-vinda para os céus, conforme você colocou muito bem. Parabéns pelo texto.

Diegonzo disse...

Sempre que pego um voo, eu e meu alterébrio otimista, penso: "porra, e se esse filhodaputa do comandante estiver num dia ruim? e se ele simplesmente resolver chocar-se brutalmente contra um prédio? e se a mulher dele o traiu e ele está indignado com a humanidade?"

voar é tão falho quanto as nossas caricatas personalidades. a pretensão humana sem limites, achar que sabemos de tudo porque damos algumas braçadas nessa piscina de merda que montamos... esse bunker de emoções universal que chamamos de mundo...

gostei muito do tua análise, eis um comandante que não me botaria medo. grande personalidade!

abraço,

Anônimo disse...

Depois de ler esse texto eu só me pergunto o seguingue: por que você, Jair, não se torna o novo escritor da aviação? Assim como foi Exupery. Você foi aviador por muito tempo, gosta de escrever, tem bagagem pra isso. Se não podemos deixar marcas no céu, podemos pelo menos deixar marcas sobre o céu... assim como fizeram (poucos) aviadores.

Abração

Unknown disse...

Jota, excelente pensamento este onde nós, os pretenciosos aviadores nos reconhecemos incapazes de demarcar os céus de forma duradoura.
Realmente a satisfação de estar voando, por mais que perdure por alguns momentos após o vôo, somente ficará regiatrada em nosas memórias.
Elegantemente descritas nas palavras do teu texto

Anônimo disse...

Nunca voei. Mas costumo chamar aos pilotos anjos silenciosos com forças sobrenaturais que viajam pelo universo e se tudo corre bem é porque tem contrato firmado com Deus.Para todos esses anjos obrigada por chegarem a bom porto com tantas vidas a salvo. Bjo.

Augusto Ouriques Lopes disse...

Parabéns Pai,

Seus textos estão cada vez melhores.
Gosto quando você deixa a poesia se entrelaçar com a narrativa técnica. Isto sim é arte.

Anônimo disse...

Grande Jotajota, é sempre bom ler as suas narrativas e capacidade de sintetizar a nossa profissão mesclando com a poesia como disse seu filho é fantástica. Parabéns e espero em algum momento próximo estarmos juntos nos Céus Brasileiros. Um grande abraço. Matulevicius