quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Rio




Verte da terra pequeno filete tímido que escorre lento entre galhos e folhas num leito de areia fina. Ainda meio sem destino avança nos desvãos de pedras e raízes formando pequenas poças e ganhando corpo com eventuais chuvas ou adição de pequenas nascentes que se lhe somam. Assim percorre algumas centenas de metros. Aos poucos, desviando-se de calhaus, elevações e pedras maiores, vai formando remansos onde haja depressões e correndo mais solto nos pequenos vales. Já, agora, ainda uma criança travessa e sem uma direção precisa, coleante como cobra preguiçosa costuma ser chamado de sanga, córrego, riacho, ribeirão ou outra denominação que os homens tenham como costume nomear pequenos cursos de água corrente. Pode também, apresentar leito rochoso se esta for a geologia do terreno o qual atravessa; nesta altura, peixinhos como lambaris e barrigudinhos podem viver em suas águas limpas e oxigenadas; se não ocorrer que atravesse região povoada por humanos, certamente a vida de insetos aquáticos e outros seres pequenos poderá atrair peixinhos variados em busca de fartura alimentar. Se atravessar terreno acidentado, pequenas corredeiras e quedas minúsculas lhe proporcionarão uma sonoridade muito ao gosto de poetas e outros sonhadores. Será marulhante, buliçoso, terá borbulhas e movimentos hipnóticos para àqueles que contemplem suas águas. Já, então, forma bacias remansosas que permitem banhos refrescantes de crianças e adultos; todo mundo gosta de banho de rio, e ele é uma espécie de piscina de águas correntes límpidas e convidativas. Se outros pequenos regos lhe forem tributários, encorpa e toma nome menos pomposo e mais de acordo com sua natureza: rio. Mas, seu curso ainda apresenta meandros, não é forte o suficiente para retificar seu avanço.
Então, agora percorridos muitos quilômetros, já não lembra aquele fiozinho de água que fluiu meio temeroso oriundo de lençol freático que aflorou à superfície, pois se tornou uma corrente decidida, meio majestática que corrói margens, transporta galhos e troncos e já tem direito a pequenas ilhas formadas a partir de elevações contornadas por ambos os lados. Já não pode ser transposto a vau, e nadadores deverão ser mais que meramente bisonhos para transpô-lo a força dos braços, barcos de porte médio já serão vistos a subir e descer suas águas muitas vezes tumultuosas. Tornou-se, ele próprio, um acidente geográfico de monta, nas suas margens surgem cidades que adotam seu nome como patronímico, e adjetivos como caudaloso, profundo e perigoso lhe são atribuídos sem pejo. Agora seus afluentes não mais serão pequeninos fluxos, rios de porte médio lhe reforçarão a corrente e contribuirão para que inche, se alargue e apresente funduras respeitáveis. Não se vê mais ninguém tomando banho sem preocupação em suas entranhas meio misteriosas. Os peixes que habitam corredeiras e remansos, agora serão considerados “comerciais” pelos pescadores. Se houver depressões no terreno, estas serão preenchidas e formarão lagos portentosos, cachoeiras também se formarão em trechos acidentados. Até pedras de porte poderão ser arrastadas pelas águas impetuosas, quase nada resiste a seu efeito aríete que tende a empurrar obstáculos antes contornados. Seu curso passa a ser quase reto, obtuso, determinado. Novos rios veem aos seus pés entregar-lhe águas que colorirão as suas e lhe darão mais força, passou a ser um grande e respeitável rio cujo presença invoca pontes majestosas se quiserem atravessá-lo. Navios e grandes barcos singram-no com receio de seus humores e redemoinhos traiçoeiros. Também, se chuvas mais intensas atingirem seus tributários, poderá causar enchentes em regiões mais baixas onde prejuízos advirão por imprevidência dos homens.
Veloz, fluido, personalíssimo, têm nome, sobrenome e cava seus próprios vales, a orografia lhe é subserviente. Se homens quiserem domá-lo para dele tirar a força motriz que alimenta a civilização, deverão empregar esforços hercúleos e enormes somas de numerários; um grande rio não se vence com trinta dinheiros. Se represas lhe forem impingidas, formará lagos oceânicos que farão inveja a muitos lagos naturais. Suas águas fluirão com ímpeto dos vertedouros construídos nas barragens. Agora poderá ter nomes locais que exaltarão a importância que tem para a cultura e tecnologia humana, será mencionado nos livros escolares como aquele que provê tantos milhares quilovates para abastecer tantas cidades e tantos milhões de habitantes. Claro que essa importância que lhe é atribuída não impede que os ímpios humanos deixem de lhe despejar dejetos poluidores e usar seu leito como depósito de lixo, mas, se lhe derem espaço, ele se auto limpará, suas águas tem o poder de tornarem-se límpidas novamente.
Talvez centenas de quilômetros tenham sido vencidos desde aquela nascente despretensiosa, seus tantos feitos ao longo do percurso o tornaram manso e cansado apesar de alargado, aproxima-se da foz. Desceu o tempo todo, mas se encontra na planície que precede o litoral. Agora resta apenas a expectativa do encontro com aquelas de outra natureza, águas que pela quantidade reduzirão as suas a “gotas no oceano” se a expressão não for redundante. Ao chegar àquele oceano indomado e de origem outra que não a sua, tenta, num primeiro momento, empurrar aquelas águas barulhentas com gosto estranho. Sabe que não conseguirá vencer tal imensidão, mas continua lançado catadupas que mais parecem alfinetes na pele de elefante naquela massa cinética e imperiosa. Suas águas de cor diferente colorem as do oceano como uma mensagem de herói que sabe que vai morrer, mas quer deixar sua marca. Vence alguns quilômetros talvez, mas o mar é maior, sua cor e sabor são consumidos naquele ambiente salgado milenar, dinâmico e muito poderoso, o rio deixa de existir. Foi uma vida plena que marcou tudo por onde passou, mas teve um final glorioso, pois mesmo tendo sido diluído, um dia terá evaporado com outras águas e formará nuvens que verterão chuvas que poderão formar enxurradas e rios novamente. O rio não sumiu, apenas mudou de forma, e assim é e será por milhões de anos. JAIR, Floripa, 06/01/12
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9 comentários:

Unknown disse...

Texto muitíssimo bem escrito, contando sobre o nascimento e a eternidade do rio.

Parabéns!

Karine disse...

Lindo texto Jair... transmite além de informação...emoção, por um bem tão majestoso deixado por Deus para nós mas que tanto sofrimento tem encontrado nos dias de hoje, com a poluição que tem recebido...

Grande abraço ...

Karine

R. R. Barcellos disse...

Por trás do cronista competente revela-se - finalmente! - a alma do poeta. Belo texto!
Abraços.

PS: Merecem revisão:
"desde àquela nascente"
"nas suas margens surge cidades"
"Suas águas fruirão com ímpeto"

JAIRCLOPES disse...

Obrigado Barcellos,
Como ninguém advoga com competência em causa própria, ninguém é bom revisor de seu próprio texto, e eu já estou bastante senil para não enxergar meus cochilos. Alguns leitores fazem a revisão por mim. Abraços, JAIR

Professor AlexandrE disse...

O rio atinge os seus objetivos porque aprendeu a contornar os obstáculos...
Ótimo post! Parabéns pela qualidade que aumenta a cada postagem...

Abraços!

J. Carlos disse...

Parece que eu estava vendo os arroios dos campos gerais, próximos de onde nasci. Bela descrição.

Luci disse...

Que legal Jair! meus pensamentos deram um salto para a imortalidade da alma, tal e qual um rio, a vida surge com todos os ingredientes. Um bolo,antes de ser digerido, leva uma mistura danada,leva batimentos,cores,sabores...até um resultado com seus derivativos!!! E, haja movimento neste universo misterioso.Eu sempre vôo nos seus textos, ah, este escritor aeronauta!Luci.

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
poética e geograficamente linda a descrição da gênese de um rio.
Escrevo contemplando a Cordilheira dos Andes, onde das geleiras se vê a formação de filetes aquíferos que se farão rios para fertilizar planícies.
Aqui os periódicos dizem ‘estarmos en un enero que queima’ e nele me encantei com teu texto.
Um abraço mendocino
attico chassot

JoeFather disse...

Fabuloso amigo! Eis uma visão que eu não tinha...

Abraços renovados!