segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A Selva



Na década de setenta em virtude de meu trabalho no Serviço de Busca e Salvamento da FAB, era parte obrigatória do currículo fazer cursos de sobrevivência no mar e selva, porque as operações do chamado Esquadrão Pelicano presumiam possíveis acidentes nesses ambientes e as tripulações deveriam estar aptas a enfrentar as condições desfavoráveis que se apresentassem. Pode parecer que tais cursos eram algo radical ou extremamente desgastante, mas não eram nada disso. Bastava seguir os manuais, manter a calma, lembrar das instruções, adaptar-se ao desconforto e ser resistente à fome, frio, calor e ao cansaço, que tudo acabava bem.
Não pretendo descrever as sensações terríveis de três dias no mar em um bote de borracha, disputando espaço com cinco outros companheiros, comendo jujubas, bebendo meio copo por dia de água destilada do mar, e dormindo sentado, molhado da cabeça aos pés; nem tampouco dez dias de calor desgastante na floresta amazônica, dormindo em barraca improvisada a partir de pára-quedas, comendo o que pudesse caçar, pescar e colher, sendo devorado vivo por insetos e receoso de ficar doente sem qualquer recurso médico próximo. Não é meu escopo contar as alegrias e descobrimentos que essas provas me proporcionaram, quero contar apenas sobre a mata, a selva. A maravilhosa floresta úmida que cobre a região norte do país, a Hiléia amazônica.
A floresta tropical é exótica sob muitos aspectos. Para habitantes de centros urbanos talvez a primeira coisa que chame atenção seja o silêncio. O silêncio é uma força por si só, quase hipnótica, desorienta, chegamos a ouvir nosso próprio coração. Mas tem algo de solene, tem algo que nos remete à meditação, à abstenção de falar, à contemplação como se diante de algum ente transcendental. Podemos nos surpreender, mesmerizados, nos vendo compelidos a seguir com o olhar uma enorme borboleta azul metálica na sombra do dossel, ficamos fascinados pelas suas brilhantes asas de um azul imaginário, quando, de repente, percebemos que nossos passos não fazem nenhum ruído, pisamos em algodão por assim dizer. O chão não é o mesmo chão que conhecemos, é um macio tapete marrom que exala um forte cheiro de decomposição. As árvores parecem estar quietas há séculos. Paradas, solenes, majestáticas e dominantes, nós lhes somos indiferentes. Das castanheiras só podemos imaginar suas copas que chegam alcançar até sessenta metros de altura, a floresta, mais baixa, nos impede de vê-las. Se existe brisa, esta deve estar “lá fora”, aqui no interior o repouso é absoluto. Alguns troncos robustos lembram colunas de catedrais antigas. Orquídeas e bromélias de cores e formas variadas decoram árvores e troncos semi apodrecidos. Nem mesmo o sol exterior adentra aquele ambiente mágico, o próprio ar parece esverdeado e exala cheiro acre adocicado. A luz da manhã é estranha e difusa, como a iluminação do interior de uma igreja medieval cuja única claridade passa filtrada através de vitrais, mas tudo de uma beleza inverossímel. O verdor do ar é tão denso que parece palpável, achamos que pode ser espremido entre os dedos. A vida animal da floresta existe em profusão no alto das árvores centenárias, onde os pássaros se alimentam, namoram, constroem seus ninhos e se reproduzem; e os macacos guaribas negros como carvão vivem em suas comunidades agitadas e de relações sociais complexas. Os insetos existem aos milhões, mas são silenciosos, quando você é picado nem percebe de onde surgiu o atacante.
A noite na selva se transforma, agora é um mundo assombrado, impressivo e intimidante. Depois do por do sol, o silêncio é substituído por sons surpreendentes: o uivo do macaco, o som cavo dos sapos, a batida de martelo das pererecas, o voo rápido dos morcegos e assobios, trilos, tinidos e farfalhadas. Surgem insetos ardilosos com mandíbulas que perfuram a roupa e a pele, morcegos ousados que tentam pousar na nossa cabeça sabe lá com que intenções. Numa clareira havia cupinzeiros que brilhavam com uma luz fantasmagórica e mortiça. Os vaga-lumes conferiam à escuridão da selva um ar sobrenatural. Em algumas manhãs víamos pegadas de onça na areia da praia, já que nossa barraca estava às margens do rio Morená, no Parque Nacional do Xingu.
Para quem não “assume” a floresta como meio de sobrevivência, esta é atroz, não perdoa o ingênuo ou hedonista. Ela é um organismo vivo que respira, dorme e cresce, engole inocentes, almoça incautos e janta ineptos. Mas não precisamos temê-la, basta compreendê-la e respeitá-la. Desde muito cedo fui criado pescando em riachos, no rio Iguaçu e andando por trilhas de florestas ombrófilas e da mata atlântica da região do Paraná onde nasci, portanto, sempre tive contacto íntimo com as selvas e elas me atraem, de forma que ao me deparar com a floresta amazônica, foi só uma questão de adaptação à magnitude e às peculiaridades da mais extraordinária mata do Planeta. Lá as árvores e os rios são muito maiores, os insetos e outros animais são mais numerosos e teoricamente mais agressivos, mas, em compensação, os recursos para sobrevivência são mais abundantes, melhores e de fácil obtenção. Não é estultice afirmar que, adaptando-se àquele ambiente, é possível viver sem maiores angústias e sofrimentos uma longa vida naquela floresta, pois os meios existem, é só saber como tomá-los emprestados. Meu lado silvícola como descendente de índios Kaingangues prevaleceu e me senti como que voltando às minhas raízes, em nenhum momento me vi desafiado ou intimidado pela selva. Posso garantir que foi a mais fecunda e marcante experiência que já passei na vida. JAIR, Floripa, 06/10/11.

10 comentários:

Unknown disse...

Quando li o seu texto consegui me transportar para o local e sentir todas as sensações.
Uma floresta preservada é muito mais valiosa que o comércio da madeira, do ouro e muitas outras coisas que atiçam a cobiça do homem. Um dia vamos perceber tudo isso, mas vai ser tarde. Grande abraço.

Tais Luso de Carvalho disse...

Existem certas coisas na natureza, de tamanha magnitude que nos leva de imediato ao maior respeito. E a Amazônia e os mares são destas coisas que nos fazem sentir o quanto somos pequenos. Você deve ter tido uma das experiências mais fascinantes que um ser humano pode ter tido (tirando o homem à lua). Sua narrativa foi ótima, me levou com muita curiosidade até o final podendo ver a imensidão de tudo que é nosso e pouco ou nada fazemos por ela. Bem ao contrário, o homem está acabando com tudo. Penso que maior tesouro não existe. Quanto mistério deve haver entre aquelas árvores que jamais o homem descobrirá; só nos resta respeitá-la pela sua riqueza, pelas vidas que abriga, pelos seus mistérios e sua imensidão.

Grande abraço
Tais

R. R. Barcellos disse...

Este, meu amigo, é um texto que deveria ser divulgado ipsis literis entre as pessoas, comunidades e organizações que lutam pela preservação da natureza. E eu, encontrando oportunidade, não deixarei de fazê-lo. Parabéns.

J. Muraro disse...

Vou usar aqui uma expressão em inglês "so cool"! Achei a tua "leitura" da selva espetacular. É como se gente estivesse lá. Parabéns.

Professor AlexandrE disse...

Ótimo texto! Muito interessante! Leve, informativo e muito bem escrito... Adorei o modo como foi 'escrito' e 'descrito' pois em vários momentos me vi transportado para o coração da selva amazônica!
Parabéns Nobre Colega!

Vida Longa e Próspera!

MARILENE disse...

Você foi perfeito nesse texto. Mostrou o lado belo e que impõe seja conservado, integralmente,da Amazônia. As florestas são vivas e nos permitem, também, viver. Seus mistérios há que serem mantidos nesse estado, pois cada vez que propiciam uma descoberta, ao contrário de aplausos atraem cobiça e poder.
Abraços

Anônimo disse...

Nossa, adorei seu texto... acho que por eu gostar bastante da natureza ajudou um pouco. Acho que eu também nao ia achar desgastante ficar em uma selva, e ia adorar a experiencia. Principalmente se tivesse aventuras. Mas eu praticamente me senti no lugar que voce falou, parabéns... foi um dos seus melhores textos.
Beijos e boa semana!

Leonel disse...

Índio Velho, estou de volta!
Eu achei antológica e carregada até de poesia esta tua descrição da floresta tropical!
Eu tive bem menos contatos com ela, estive apenas nos arredores, mas o que mais me incomodou foi a consciência da presença imperceptível dos tais insetos que tu tão bem descrevestes!
Belíssima postagem, Jair!

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá amigo Jair

O que posso eu dizer... excelente texto escrito com amor transbordante pela natureza pura, a forma com o o fez, dá-nos a imagem clara de quao importente é a amazónia, mas não se iludam, como diz o Roberto Carlos, amazónia é a insónia do mundo. Tudo isto suspeito que não passe de romantismo, que a mim me toca, já que a realidade deve ser bem diferente, com abate indiscriminado da flora, derrubando-se arvores milenares, para lucro de alguns.

Como alguém atrás comentou, este deveria ser um documento para ambientalistas.

Muitos Prarabens abraço

Luci disse...

Jair,viajei!!!Me senti a estrela do filme "Avatar"!Seus escritos transportam o leitor para uma viagem não imaginária ,mas real. Estive no Jari a trabalho, na floresta amazônica, e as sensações são incríveis e você as descreve
de uma forma precisa... Sou nata nos Campos Gerais,onde o nobre escritor tem suas raizes...a nossa percepção da natureza se assemelham!!!Luci