sábado, 22 de outubro de 2011

Ciclo da borracha




Desde o descobrimento, o esbulho das riquezas naturais do Brasil se fez com fúria e determinação pelos descobridores. Qualquer coisa que representasse ganhos de alguma forma para os portugueses, era explorada até que se extinguisse a fonte de uberdade, ou que deixasse de ter valor econômico significativo. Assim, começando pela extração criminosa do pau-brasil para uso como corante de roupas na Europa, iniciou-se em série de “ciclos extrativistas” que, a partir de 1503, tornaram o país uma espécie de despensa cujas mercadorias eram apropriadas ao bel prazer dos colonizadores. Na marcha dos ciclos, a cana-de-açúcar tornou-se o próximo objeto de exploração e o país passou a fornecer açúcar para a Europa em troca de nada. Quando se descobriu ouro na região, que por isso mesmo passou a se chamar Minas Gerais, inaugurou-se um novo ciclo que escravizou índios e empobreceu ainda mais a já quase miserável população brasileira. Calcula-se que só no ano de 1760 saíram do Brasil 14.600 toneladas do precioso metal. O ciclo do algodão veio a seguir na parte nordeste do país, concomitante com o ciclo do gado que engordava nos pastos. Cerca de 1,3 milhões de cabeças de gado pastavam no Centro-oeste em 1711. Árvores foram cortadas e cerrados foram queimados para “fortalecer” os pastos. Desertos se formaram ao longo do rio São Francisco, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O ciclo do café nasceu no século XIX até a década de 1930. Concentrado a princípio no Vale do Paraíba (entre Rio de Janeiro e São Paulo) e depois nas zonas de terra roxa do interior de São Paulo e do Paraná, o grão foi o principal produto de exportação do país durante quase 100 anos. O ciclo da borracha começou em meados século dezenove.
A borracha natural, como a conhecemos, é um produto industrial obtido do látex extraído da Hevea brasiliensis, árvore nativa da floresta amazônica. Desde 1850, coincidindo com a expansão da revolução industrial, a bacia amazônica era a única fonte de borracha de alta qualidade do mundo, e as ambições das grandes potencias econômicas invadiram a selva. A Grã-Bretanha, vivendo em plena era Vitoriana de cujo império dizia-se “onde nunca o sol se põe”, foi a primeira a perceber o potencial geopolítico da borracha, essencial para a fabricação de juntas para motores a vapor e, por volta de 1870, Londres compreendeu com toda clareza a necessidade de turbinas gigantes para impulsionar encouraçados pelos mares. Esse material pouco familiar, de composição química ainda desconhecida, acompanhava o ferro e o aço onde quer que fossem assentados maquinários de fábricas, ferrovias e bombas de mineração. A borracha, essencial para confecção de correias de transmissão e válvulas, era usada também nos amortecedores para vagões ferroviários e, logo depois, nos “aros pneumáticos” como eram chamados os pneus então. O progresso significava mobilidade, e poder mundial dependia do acesso aos três recursos estratégicos necessários à autonomia: petróleo, aço e borracha.
Muito antes da ascensão das companhias petrolíferas e da riqueza que o petróleo passou a representar, a economia e política da borracha geraram riquezas faraônicas para poucos e miséria, doenças e morte para milhares de despossuídos. Por 63 anos o vale amazônico dominou o mercado mundial de borracha e tornou a capital do Amazonas, Manaus, uma espécie de capital do mundo.
O mundo estava representado em Manaus. Ingleses, franceses, alemães e portugueses gerenciavam as operações da borracha; espanhóis, italianos, libaneses e sírios eram proprietários de negócios que davam suporte às milhares de pessoas que orbitavam os negócios borrachais. Nas lojas da cidade era possível comprar revólveres Smith & Wesson, relógios Omega de ouro, manteiga escandinava, lustres de cristal da Boêmia, uísque das melhores marcas, máquinas de escrever Underwood e perfumes franceses. Calculava-se que o consumo de diamantes da cidade era o maior do mundo. A libra esterlina era usada correntemente nas ruas, (tenho três exemplares de “notas” de libra dessa época). Os barões da borracha construíam palácios suntuosos de mármore italiano, os mobiliavam com importações inglesas e francesas e penduravam candelabros de cristal no teto. Um barão comprou um iate, outro um leão, e um terceiro dava champanhe para seu cavalo beber. As joias eram importadas no atacado, e as prostitutas trazidas dos melhores bordéis europeus ganhavam diamantes de presente. Dizia-se que de cada três casas de Manaus, uma era bordel.
O cume da glória de Manaus era o Teatro Amazonas, a famosa casa de ópera inspirada na Ópera Garnier de Paris e construído totalmente com material importado. Até as pedras usadas na construção vieram da Europa, como, aliás, as pedras de pavimentação das ruas vieram da França, pedras conhecidas como Plimsoll. Custeado totalmente com os lucros da borracha, a construção do teatro se deu de 1891 a 1896 e custou o absurdo de dois milhões de dólares, uma soma astronômica para época. Dinheiro que daria para construir três hospitais de grande porte.
Mas, como não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe, a “bolha” de desenvolvimento da borracha se rompeu e o sonho acabou. Em 1876, o inglês Henry Wiekham roubou setenta mil sementes de seringueira da floresta amazônica e levou-as para os botânicos da Inglaterra. Essas sementes plantadas nas colônias inglesas destruíram o monopólio do Brasil na produção de borracha. A borracha extraída de plantações racionais era de melhor qualidade e de custo mais baixo que a produzida a partir de extração da mata nativa. Em 1900 o Brasil produzia 95% da borracha consumida no Planeta, o declínio começou em 1913 com os primeiros resultados das plantações racionais, até que em 1928 quando as colônias inglesas passaram à plena produção, a borracha brasileira representava apenas 2,3% da demanda mundial.
Para quem conhece Manaus hoje, e vê seus palacetes decrépitos, suas ruas outrora verdadeiros boulevards parisienses e agora esburacadas e sem graça e seu porto flutuante semi abandonado, dá para ter uma ideia do que foi a pujança da borracha. O ciclo da Hevea se foi e deixou uma cicatriz na alma do povo amazonense. O país traído por uma ilusão de dinheiro abundante e fácil caiu numa armadilha e não conseguiu reerguer a região amazônica da débâcle. Mais tarde, numa espécie de compensação, instituiu-se uma zona franca industrial onde, teoricamente, indústrias viriam se instalar em virtude dos impostos baixos, mas nada deu certo e Manaus tornou-se um paraíso para aqueles empresários que se locupletam com sonegação, mas o povo continua pagando a conta e vendo o trem passar. Mas isso já é outra história. JAIR, Floripa, 08/10/11.

7 comentários:

Maria Rodrigues disse...

Excelente post. É sempre um prazer renovado vir visitá-lo, aqui estou sempre a aprender e a aprendizagem é uma das maravilhas que a vida nos oferece. Obrigado.
Bom fim de semana
Beijinhos
MAria

Leonel disse...

Uma tremenda aula de EPB, dada pelo professor Jair!
Há algum tempo, eu assisti a um filme FITZCARRALDO, de Klaus Kinsky, onde a ação se situa neste lugar e época, exatamente no ciclo da borracha!
Esta matéria vem a mostrar algumas coisas:
1-Sempre foi tradição no Brasil ter meia-dúzia usufruindo de requintes de luxúria, enquanto uma enorme massa vive abaixo das mínimas condições de decência.
2-Quem vive sem planejar o seu futuro, confiante em riquezas extrativas aparentemente inesgotáveis, sempre acaba dando com os burros n'água!
3- Os ingleses sempre foram "muy amigos"...da onça!
Um post para ser lido por todos os que quiserem entender como estamos onde estamos!
Abraços, Jair!

R. R. Barcellos disse...

...e o Brasil, sempre levando borrachada!
Abraços.

Professor AlexandrE disse...

Sempre que eu penso que você chegou ao TOP você me surpreende com um Post ainda melhor! Adorei esse voo sobre os ciclos economicos da historia do Brasil com foco na 'borracha'... Ótimo texto com uma abordagem histórica perfeita!
Parabéns meu nobre colega!

Vida Longa e Próspera!

Attico CHASSOT disse...

Prezado Jair,
dos diferentes ‘ciclos’ – e a denominação parece histórica equivocada – nenhum teve pico tão alto e ‘fundamento tão grande como o assim chamada ciclo da borracha. O rouba das sementes para leva-las as colônia do Reino Unido na Ásia é talvez um dos mais históricos símbolos de biopirataria.
Obrigado pela trazida do assunto que me vez evocar ter estado há um mês no teatro de Manaus.
Com admiração

attico chassot
http://mestrechassot.blogspot.com

Elizabeth Venâncio disse...

Boa Noite, que texto rico, obrigada, aprendi muito hoje.

Um abraço.

Tais Luso de Carvalho disse...

Muito bom; mas a verdade é que nosso país era uma verdadeira 'farra do boi'!! Chegavam e iam levando... Se apropriaram de nossas riquezas, como todos nós aprendemos na escola. E ficou por isso mesmo. Mas o mundo dá voltas. Hoje, as coisas estão diferentes. Não somos mais a Casa da Mãe Joana.

abraços, jair.
Tais Luso