segunda-feira, 2 de abril de 2012

Sandices alimentares



Está escrito e não podia ser diferente, alimentar-se é uma necessidade básica dos seres vivos, vem antes da segurança e da impulsão sexual com intuito reprodutivo. Alimento só não tem prioridade sobre respiração e sede, e isto significa que se estivermos respirando e tivermos água à nossa disposição, nossa necessidade primeira é comer. Consequência disso, a busca por alimentos nos primórdios impulsionou o nomadismo do Homo sapiens, de modo que essas peregrinações o levaram a ocupar quase que todas as regiões habitáveis do Planeta. Não é exagero afirmar que a fome criou a civilização, ainda que de forma indireta. Homens que se locomoviam em busca de fontes alimentares acabavam descobrindo e se fixando em locais antes desabitados, construindo novos aldeamentos e enfrentando novos desafios inerentes a esses lugares, de forma que suas descobertas e invenções estavam atreladas a esses ambientes. Novas conquistas representavam enriquecimento cultural e base para civilizações diferentes daquelas anteriores.
Também é compulsório observar que a relativa abundância alimentar facilitava, e às vezes até impelia, uma maior densidade demográfica, isto é, a equação era simples, mais comida mais gente. Não é segredo algum que mais gente significa mais cabeças pensantes e possibilidade maior de existir gente mais capacitada no meio dessas pessoas. Onde há gente capacitada (inteligente) novas criações e aperfeiçoamento se tornam mais fáceis, ou seja, inventos, métodos novos e técnicas melhores se desenvolvem, então teremos forças atuantes em direção a qualidade de vida melhor.
Comendo a humanidade cresceu, multiplicou-se, adquiriu força de, em princípio, dobrar a cada vinte e cinco anos. Muitos anos depois, no início do século dezenove (1803), Thomas Malthus, economista britânico, desenvolveu uma teoria que publicou num trabalho: "Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona”. No qual ele afirmava que o Planeta estava fadado a entrar numa crise mundial de fome porque a população aumentava em progressão geométrica enquanto os alimentos só podiam ser incrementados em progressão aritmética. Como o homem era respeitado em seu campo de conhecimento, causou certa inquietação sua teoria então chamada malthusianismo. Na verdade, ele havia subestimado o desenvolvimento e adoção de técnicas modernas de plantio, descobrimento de fertilizantes e defensivos agrícolas que matavam as pragas, então verdadeiras dizimadoras de colheitas. Muita fome fustigou o Planeta desde então, mas nada tem a ver com falta de alimentos, o que existe é uso político dos alimentos e má distribuição de recursos.
Bem, e no varejo, no dia-a-dia das pessoas comuns, como a alimentação influiu nos costumes? Pois é, como o bicho homem havia se espalhado por quase (faltou regiões polares e alguns desertos muito áridos) todo o Planeta, acabou encontrando diferentes condições de produção de alimentos, bem como plantas e animais diferentes que se prestam para a domesticação com fins nutricionais. Assim, é perfeitamente natural que o povo inuit (também conhecido como esquimó) que vive no círculo ártico, não tenha em seu cardápio alimentos vegetais, eles são comedores de carne crua, ou seja, são omófagos de tempo integral e vitalício; também, não se deve estranhar que habitantes do norte África, região onde se situa o deserto do Saara, comam gafanhotos, por exemplo. Cada um se vira como pode e de acordo com os recursos disponíveis.
E quanto ao geral, como está a produção de alimentos no mundo? Vai bem, obrigado. Hoje há excedentes de alimentos nos países desenvolvidos e desperdícios na ordem de trinta por cento dos produtos agrícolas produzidos, segundo a FAO. Há tanta comida sendo produzida em países como os EUA e os mais desenvolvidos da Europa, que o excedente daria para alimentar todas as pessoas que sofrem de desnutrição crônica da África e ainda sobraria algum. Então o que é feito dessa comida toda? Simples, os americanos comem o equivalente calórico ao que três pessoas “normais” deveriam comer para manterem-se saudáveis e produtivas. As protuberâncias abdominais dos americanos, suas doenças do coração e suas academias lotadas são provas desse exagero. Hoje morre mais gente por doenças coronárias e excesso de peso do que de fome neste planetinha azul. Será uma espécie de punição da natureza para com aqueles que não enxergam a má distribuição calórica e protéica no mundo? Não sei, e se alguém sabe deveria berrar, pois o bom cabrito é aquele que berra prá caramba.
Reconhecendo algumas aberrações dignas de nota como o canibalismo, o homem comeu e come praticamente tudo que se move na face da terra, além de milhares de espécies de plantas e fungos. O bicho maior come o menor é um bom adágio para explicar como, na natureza, se comportam aqueles que constroem a cadeia alimentar, tantos os predadores quanto as presas. Já, com respeito ao bípede falante e presunçoso, ele come os menores e os maiores também, falta-lhe humildade para se enquadrar nas regras que vigem entre os animais em estado natural. Sem contar que alguns povos comem bichos selvagens os quais poderiam ficar quietinhos nos nichos, pois não falta proteínas entre esses predadores infames. Os japoneses são o exemplo mais contundente e vergonhoso dessa infâmia, matam baleias para servir sua carne como iguaria fina para os muito ricos, justamente aqueles que não estão nem perto da linha de fome. Se houvesse falta de proteínas no Japão, até seria quase compreensível que eles assassinassem esses mamíferos magníficos, mas não é esse o caso, a carne de baleia no Japão é vendida por algo em torno de trezentos dólares o quilo.
Às vezes eu sinto vergonha de pertencer a essa espécie que gasta bilhões em comida para animais de estimação e não olha os da mesma espécie morrendo de fome no Sudão e na Somália.
Imagino que a pressão da enorme expansão populacional deverá estimular inovações destinadas a superar o problema de milhões de bocas a serem alimentadas. Podemos imaginar que na ausência desse estímulo as inovações podem não acontecer, as grandes realizações humanas sempre foram antecedidas por pressões formidáveis, é só lembrarmo-nos das tecnologias desenvolvidas em consequência das guerras. Será que podemos contar com uma inversão dessa tendência mundial de poucos comerem muito e muitos comerem pouco? Fica a pergunta. JAIR, Floripa, 28/01/12.

4 comentários:

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
não é sem razão que entre ‘os gigantes em quem nos apoiamos para ver mais longe’, a meu juízo, Thomas Robert Malthus é dos mais proeminente. Ele na virada do 18/19, ainda ministro da igreja anglicana alerta para a necessidade do controle da natalidade ante ao risco do crescimento exponencial da humanidade levar a fome.
É com adequação que o programa do governo de combate a fome chama-se de ‘segurança’ alimentar.
Adiro, com entusiasmo, a tua proposta de combate ao desperdício.

attico chassot

Camila Paulinelli disse...

Olá,
Acho que daria para todo mundo ainda comer muito com uma distribuição lógica. O cerne da questão antecede a isso. Seria imaginarmos uma total reforma mental com relação ao acúmulo voraz para si e tirar uma parte para ajudar ao menos uma pessoa no mundo. Se pairasse essa idéia na cabeça das pessoas, também não seria este mundo, ou seja, o governo que é governado por humanos faria esta distribuição com dinheiro suficiente para tal. Belo texto. Beijos

Tais Luso de Carvalho disse...

Ótimo seu texto, mas vou comentar uma parte que me interessou mais.
Comemos muito e muito mal. O ser humano não precisa comer tanto, não precisaríamos matar tanto; matamos e a metade é jogada fora. Desperdiçamos tudo. Mas estamos pagando um alto preço por esta irresponsabilidade – principalmente os Estados Unidos que comem demais e de lá nos mostram que o homem mais pesado do mundo com mais de 500 quilos, e mulheres acima de 300 quilos. Não comem, se afogam na comida.

A crueldade habita os humanos. Alguém precisaria comer patê de ganso (foie-gras) ? Sabem o que padecem os bichos para que alguns se deliciem com isso? Precisaríamos matar baleias, coelhos, cachorros e outros tantos animais - e cruelmente arrancando sua pele ainda vivos? Sabem como conseguem o tal Baby-beef – uma carne muito macia? A que preço e sacrifício dos animais? Isso é uma carnificina. É só colocarem no Google que irão ver horrores.

Comida teria para todos, o problema é que o capital está em mãos que não se interessam; como você citou, é a parte política da coisa. É a desigualdade que todos falam e os governos nada fazem. Só discutem ao redor de fartas mesas. Enquanto alguns países transbordam de gente obesa, outros vivem com sua população caquética, morrendo de fome.

Abraços, Jair.
Tais

Professor AlexandrE disse...

Muito interessante... uma veradeira viagem filosofica através da alimentação...
Obs.: sou obrigado a admitir que ja cometi muitas 'sandices alimentares' ... ^^

Abraços!