sábado, 12 de março de 2011

Traíra, o peixe


Em outros textos aludi às pescarias que costumava fazer na minha infância e adolescência, pescarias de lambaris nos riachos e regatos da periferia da cidade e de peixes maiores quando se tratava de rios caudalosos como Iguaçu e Tibagi. Nestes havia, além dos peixes mais comuns como carás, jundiás, cascudos e mandis, traíras que eram peixes mais “nobres”, por assim dizer. Traíras têm carne branca e, apesar de não serem peixes de grande valor comercial, seu filé é delicioso, e estão entre os mais saborosos, mas possuem muitos espinhos o que as torna quase impraticáveis de se serem degustadas.

Considerada pelos estudiosos e pelos pescadores, o peixe mais tipicamente tupiniquim, porquanto existe desde o Oiapoque até o Chuí, ou seja, habita todas as bacias hidrográficas do país; tem condições de viver em qualquer rio, riacho, represa, lagoa ou cursos d'água que existem no território nacional. Embora, como se sabe, apareça também nos países vizinhos como Argentina, Paraguai, Uruguai, Guiana, Bolívia e outros.

Não é peixe de piracema ou de águas agitadas, ao contrário, é territorial e prefere viver e se reproduzir em lagoas e ambientes de águas paradas mas, eventualmente, pode ser encontrado em rios com pouca correnteza onde costuma se alimentar de peixes menores. Seu hábitat por excelência são os meandros abandonados dos rios onde, eventualmente, durante as cheias, as águas do rio invadem trazendo grande quantidade de alevinos que lhe servem de alimento. É um predador voraz e seu método de ataque, fazendo uma analogia com mamíferos, é como o do tigre que fica de tocaia e ataca a vítima de repente, não como o leopardo que corre até alcançar a presa. Também, diferente da maioria dos peixes, a traíra é ovípara e se reproduz por desova parcial, ou seja, com várias posturas por ano, com produção alta de alevinos dos quais cuida com grande zelo ao mesmo tempo em que defende seu território com firmeza, ataca até peixes maiores quando está cuidando da prole. Pode ser pescada tanto com iscas naturais como artificiais, desde que estas sejam movimentadas na água a guisa de animal vivo se debatendo.

Por ser um animal extremamente primitivo, (uma espécie de celacanto da água doce) - calcula-se que exista há mais de duzentos milhões de anos, aliás, tenho um fóssil de 150 milhões de anos desse peixe, oriundo da serra do Araripe – tem aparência um pouco estranha e agressiva: Peixe de escamas; corpo cilíndrico; boca grande; dentes acúleos bastante afiados; olhos grandes; e nadadeiras arredondadas, exceto a dorsal. A cor é marrom esverdeada ou preta manchada de cinza. Chega a alcançar cerca de 60 cm de comprimento e até mais de 2kg. Para a ciência as traíras têm importância fundamental, pois além de conservar até hoje suas características primitivas, podem viver e se reproduzirem em ambientes muito poluídos, águas paradas com pouca oxigenação. Também gostam de aquecer-se ao sol em águas rasas, o que as torna alvo fácil de pescadores que usam arpões ou fisgas. Podem deslocar-se no seco, migrando de uma poça para outra e, até viver enterradas no barro na época da seca por meses, graças a uma reserva de água guardada no corpo.

Por sua aparência desagradável e agressiva, as traíras, o mais das vezes não são consideradas importantes ou úteis. Por possuírem dentes cortantes, pontiagudos e salientes, são acusadas indevidamente de destruir os cardumes de alevinos, o que não passa de falta de informação. Na realidade, como predadores do topo da cadeia alimentar, esses peixes melhoram a qualidade genética de suas presas, comem e exterminam os exemplares mais fracos e menos aptos, deixando que os melhores se reproduzam. Portanto, são necessários à evolução das espécies que a sábia natureza criou.

Lembro-me que pegar algumas traíras em nossas incursões pesqueiras, era proeza digna de festa, elas eram esquivas e nem um pouco abundantes naqueles rios do Paraná. Contudo, principalmente pelo fato de serem avis rara, sempre foram objeto de cobiça até dos mais canhestros pescadores, entre os quais me incluo. Peguei uma meia dúzia “no susto” em toda minha vida de pescador bisonho, não posso me gabar de ter sido um exterminador de traíras. Mesmo levando em conta as dificuldades de pescá-las, não era muito raro acontecer que pescadores como meu pai aparecerem com alguns bonitos espécimes depois de dois ou três dias de insistência na margem de algumas lagoas formadas pelo Iguaçu nas enchentes periódicas. Chegados em casa, os peixes deveriam ser deglutidos porque eram fonte de proteínas, mas, mais importante, porque eram deliciosos. A abundância de espinhos era o óbice para prepará-los, não havia como se livrar daquelas agulhas bifurcadas perigosas que podiam causar sérios danos à garganta do comensal incauto. Como preparar o peixe de modo a comê-lo sem muito perigo? Existiam alguns “macetes” como cortá-lo em fatias muito finas a moda de salame para fritá-lo em seguida, mas não havia uma maneira perfeitamente segura de prepará-lo, isso todo mundo sabia.

Desde aquele tempo sempre sonhei em comer a traíra com gosto sem qualquer perigo, e já tinha ouvido falar em “traíra sem espinhos”, prato preparado no sul de Minas, mas faltava-me a experiência degustativa em tempo real. Faltava-me! Porque um dia destes, numa viagem à Brasília, deparei-me com um restaurante na periferia da cidade, cuja especialidade era, justamente, traíra sem espinhos. Finalmente! Comi o delicioso peixe em toda sua exuberância de gosto e textura, sem qualquer receio. O maître do local não informa como se retira os espinhos do peixe, mas deixa subentendido que é uma técnica relativamente fácil com faca bem afiada de lâmina fina. De qualquer modo, para mim, o círculo se fechou, de pescador neófito que só conseguia pescar alguma traíra se esta estivesse distraída, passando por comensal desiludido com a dificuldade de preparar o prato definitivo que redimiria o paladar frustrado, até, finalmente, saborear o delicioso peixe em toda sua plenitude. JAIR, Floripa, 11/03/11

8 comentários:

Leonel disse...

Pô, Jair, lá vem você me levar nessas viagens a tempos maravilhosos! Eu tive a felicidade de acompanhar meu pai, aposentado em sua terra natal Barra do Ribeiro, em pescarias pelo arroio Ribeiro e suas ilhas.
Mas, a traíra, sempre falada e admirada como troféu pelos pescadores experientes, sempre me manteve afastado, justamente pelo temor dos suas famigeradas espinhas, presentes até mesmo nas grandes.
Aqui tem um tal restaurante chamado A TOCA DA TRAÍRA, que talvez use o truque que você citou! Qualquer dia, vou checar in loco!
Valeu, Mark Twain das araucárias!

David Palodetti disse...

Caro Amigo Jair, tudo bem com voces? Adorei o comentario sobre TRAIRAS, pois alem de ser um pescador quase compulsivo, tambem adoro a culinaria e como tal, aprendi com um grande amigo , o SO QAV Argeu Cirne da Silveira, ou simplesmente Nego Véio ,do Saudoso Quinto ETA à preparar o famoso Filé de TRAIRA Filetado, que consiste em escamar o peixe,retirar os dois filés inteiros, coloca-los com couro para baixo sobre uma boa tabua de madeira bem plana e, com uma faca bem afiada e reta, FILETAR a parte da carne do peixe, da cabeça para o rabo, deixando uma distancia de mais ou menos dois milimetros entre um corte e outro, porem sem cortar o couro , pois este será a base para manter os filetes UNIDOS. A seguir tempere à seu gosto.,( eu costumo temperar apenas com sal e limão) para manter o sabor do peixe. Após ,passar na farinha de trigo ou amido de milho para dar liga aos pequenos filetes e fritar.Pode dar até para crianças, pois o tamanho dos espinhos será no maximo o dos filetes. Espero que tenhas Gostado, caso eu não tenha ( chovido no molhado). Abçs do amigo Palô...

R. R. Barcellos disse...

- Parece-me que, entre os peixes de água doce nativos, a traíra pode ser considerada uma espécie de vira-latas, ou mesmo um lobo ancestral. Belo texto, pescador.
- Abraços.

Joel. disse...

Jair, voce está convidado a vir aqui em casa para comer queijo, beber vinho daqui da terrinha mesmo e se deliciar com uma traíra sem espinhos. Na vez passada quando esteve aqui ainda não sabia fazer mas agora este teu velho primo aprendeu, e não se trata de filé. É o peixe inteiro mesmo, com a cabeça, inclusive, porém sem os espinhos. Combine aí com a Brandi e venha, estamos esperando.
Grande abraço,
Joel.

OBS. Sabe aquela foto do "Tio Beto" bem acompanhado no metrô de Sampa que enviei à vc? Enviei uma pra Tereza tbm. Cara! estou correndo o sério risco de ser deserdado.

JAIRCLOPES disse...

Joel,
Prometo que um dia farei uma visita a você e cobrarei a traíra sem espinhos. Abraços.

Jorge Ramiro disse...

No outro dia eu descobri que o peixe pode comer o tempo todo sem parar. Eu tenho um cachorro que come o tempo todo, sem parar. Eu amo meu cão. Ele é minha vida. Agora, ele tem pulgas, então eu vou te comprar um remedio para pulgas.

Paulo Rogério Jasiocha disse...

Seus relatos são sempre interessantes, aprendi mais algumas coisas sobre traíras. Abraços.

Marcos disse...

OlhA Jair então sou exterminador de traíras, seu texto também me remete a infância, onde sem as facilidades atuais, nosso passatempo sempre foi pescar nas fazendas que bordeavam a cidade e em pescarias com meu pai, que era especialista em ferrar traíras, aprendi com ele, mas não me lembro de nunca pegar menos de 4 a 7 exemplares por pescaria, no interior de SP, elas são abundantes.E não tem como retirar espinho de traíra, como já teve ter aprendido é a maneira de retalhar que destrói eles, também aprendi no sul de Minas, minha paixão essa região do Brasil.