terça-feira, 18 de maio de 2010

ONDE ESTÃO ELES


Talvez o fato social mais importante da segunda metade do século vinte, o que mais gerou mudanças de mentalidades e orientações ideológicas que vieram depois, foi o movimento cultural hippie. Pode-se situar o ano de 1960, quando em janeiro formou-se uma manifestação pelos direitos civis em Atlanta, USA, como o início de tudo, como o ponto de inflexão em que a juventude resolveu tomar posição em confronto com o status quo. A juventude daquela década, nascida durante ou pouco depois da guerra, num estalo, tomou consciência que vivia num mundo engessado no qual embaralhavam, davam as cartas e eram donos do baralho duas potências nucleares que, entre outras coisas, podiam destruir a humanidade e até o Planeta.

A geopolítica que comandava os destinos da civilização era a doutrina pelo medo da destruição em massa, era a guerra fria em ação; o sexo fora do casamento ainda era pecado e, às vezes, punível pelas legislações conservadoras vigentes; a família, célula mater da sociedade, era intocável e sagrada, o divórcio era visto como sacrilégio pela igreja; nos países desenvolvidos, carreiras profissionais eram projetadas e seguidas desde a infância pelo filho-objeto dos pais; a “liberdade” consistia em não dizer NÃO ao establishment; ou seja, não se ataca a elite social, econômica e política que controla o conjunto da sociedade; religiões aceitas pelas nações ocidentais eram monoteístas e acomodadas, nem pensar em religiões “exóticas” orientais; música? Só romântica ou regional que não atacasse os valores pétreos de uma sociedade estagnada e silenciosa quanto a questões como racismo, capitalismo selvagem, domínio cultural e colonialismo; roupas, calçados e cabelos eram “certinhos”, não se ousava, não se feria a estética; uso de drogas? Vade retro! Não se discute, não se encara, não se admite, é proibido e pronto!

Esse era o bucólico mundo ocidental na década de sessenta, quando a juventude sentiu-se inquieta e resolveu protestar colocando o dedo na tomada. Roupas estranhas e coloridas, cabelo comprido e rebelde, música berrante de protesto, comportamento civil contrário às ordens vigentes, pavor de guerras e proselitismo de amor livre – make love not war. Palavras de ordem: rasgue seu cartão de alistamento, virgindade dá câncer, queime sutiãs, sinta desprezo pelos bens materiais, viva e deixe viver, não confie em ninguém com mais de trinta anos, tudo que é bom é proibido, imoral ou engorda, use maconha, LSD e haxixe, o psicodelismo está na ordem do dia, é proibido proibir.

Pois bem, o movimento nasceu nos EUA e se alastrou pela Europa, chegando, ainda que com timidez, até a países da cortina de ferro, num crescendo de protestos pacíficos e desobediência que chocalhou a roseira do marasmo das sociedades estabelecidas. O ápice do movimento situa-se em 1968, quando boa parte do mundo ocidental incendiou-se numa cadeia de protestos da França à Índia, passando por quase todos os países da Europa e da Américas. A guerra do Vietnam dava azo para que os jovens se unissem por uma causa comum, corpos cobertos com a bandeira, que chegavam de uma terra distante e desconhecida, eram prova cabal de que alguma coisa muito errada estava acontecendo. As autoridades não podiam ficar inertes para sempre, e mundo nunca mais foi o mesmo, mudou, ainda que não totalmente, a golpes de peace and love.

Por volta da metade da década de setenta, os hippies agora adultos (com mais de trinta anos) viram-se, uns frustrados, outros inconformados, mas todos sem forças para continuar queimando a vela pelas duas pontas, acomodaram-se e não deixaram seguidores. O que existe hoje são artesãos que se dizem Hippies, nada parecido com o que existiu, nada radical como aquela revolução dos costumes. Contudo, as sociedades nunca mais foram as mesmas.

E os hippies para onde foram? Naturalmente, eles também envelhecem. Hoje, sessentões, eles estão por aí, o mais das vezes mesclados à população dita “normal”, aquela que passou os anos sessenta e setenta observando, sem participação ativa nos acontecimentos. Contudo, em certos lugares, os ex-hippies são perfeitamente discerníveis e identificáveis, como em San Diego. Aqui existe um bairro chamado Ocean Beach, OB para os íntimos, que é habitado exclusivamente pelos contestadores daqueles anos loucos. O bairro é típico de pessoas “alternativas”; de gente que optou pela liberdade de comportamento; de gente voltada para uma vida natureba; de gente pouco preocupada com “ter” em detrimento de “ser”; de gente que curte a natureza e educa filhos e netos na direção de um mundo diverso do capitalismo consumista a sua volta; de gente vegetariana e vegana que têm restaurantes próprios voltadas para comidas orgânicas e sem produtos de origem animal.

Na maioria, os ex-hippies são pacatos pais e avós que exercem atividades autônomas como massagistas, quiropráticos, professores de doutrinas zens, dentistas e médicos de orientação alternativa, artesões, poetas, escritores, acupunturistas, homeopatas, todos pobres e de bem com a vida. A paz é seu objetivo de vida, não se alistam nas Forças Armadas e não aconselham ninguém a fazê-lo. Não incomodam ninguém e por ninguém são incomodados. Vale a pena comprar seus produtos a base de hemp e comer suas comidas orgânicas e deliciosas, o que fiz com prazer, junto com minha mulher, minha nora e meu filho. Quem vier a San Diego não perde nada se for até OB dar um rolê. JAIR, San Diego, 20/05/10.

4 comentários:

R. R. Barcellos disse...

Dialética de um leigo:
- O conservadorismo do pós-guerra foi a tese.
- Woodstock e o movimento hippie foram a antítese.
- E você, meu amigo, está testemunhando a síntese... aproveite.
- Abraços.

Osmar Bispo disse...

Meu mundo caiu, minhas teses foram massacradas, minhas ideias não escrevo mais num Fanzine, hoje me espalho pela rede digital, uma nova era chegou pra ficar.
Viva Woodstock viva o movimento hippie, viva Jannis Joplin e Hendrix!!!

Leonel disse...

Para mim, o movimento hippie foi puxado principalmente por jovens que estavam em vias de serem convocados para servir na guerra do Vietnã.
Na época, os EUA viviam sua época dourada, havia uma classe média que podia dar tudo o que um jovem sonhava e eles perceberam que não era hora de morrer enfiado em um lamaçal do outro lado do mundo. Daí, sairam com essa de romper com a "sociedade de consumo", sem contudo deixarem de viver à custa dela.
Também aproveitaram a liberdade para poder curtir o rock, suas fumacinhas (alguns apelaram para o LSD), filosofias exóticas e as lindas garotinhas liberadas, tudo isso coisas do diabo para a conservadora moral dos "rednecks".
Por aqui é raro, mas de vez em quando também se topa com algum "hippie aposentado".
A maioria é hoje parte anônima da sociedade de consumo.
The dream is over...

Joel disse...

biverPRIMEIRA CANÇÃO DA ESTRADA

Apesar das minhas roupas rasgadas
Eu acredito que vá conseguir
Uma carona que me leve pelo menos
À cidade mais próxima
Onde ninguém vai me olhar de frente
Quando eu tocar na minha guitarra
As canções que eu conheço
Eu tinha apenas 17 anos
No dia em que saí de casa
E não fazem mais de 4 semanas
Que eu estou na estrada...

Sá & Guarabyra