Haviam viajado quatro ou cinco dias, enclausurados e amontoados como porcos junto com os cadáveres daqueles que não resistiram à fome e sede nos vagões de carga hermeticamente fechados, sem renovação de ar e sem espaço para sequer sentar, muito menos para deitar e dormir.
A última hora havia chegado para esses sobreviventes. Desembarcaram em grupos de dez mil na estação de Auschwitz. A seleção os enviou noventa e cinco por cento para esquerda, lado que significava morte imediata, e cinco por cento para direita, onde a morte atroz seria postergada por dois, três meses de puro terror, fome e trabalho degradante nos fornos crematórios e salas de despojos dos falecidos. Curvados sob o peso de sua suposta “raça”, torturados moral e fisicamente, alquebrados por anos de vida no gueto, envelhecidos dezenas de anos pelo trabalho forçado acima da capacidade humana a que foram submetidos, estão apáticos, submissos. É com ar de pavor que os noventa e cinco por cento dos condenados, depois de despirem suas roupas, cruzam a soleira do suposto banheiro onde receberão uma limpeza para fins sanitários, intuindo, entretanto, que ali encontram seus últimos momentos de vida. Ainda não sabem como, mas, dentro de instantes, o gás zyklon B sairá por onde a água deveria jorrar para o banho. O terror inominável e a falta de ar os farão acumularem-se insanamente frente à porta que permitiu suas entradas sobre os pés, e de onde só será possível saírem em carrinhos de mão conduzidos pelos seus pares, estes também condenados a uma morte anunciada para daqui a algumas semanas.
Os cinco por cento escolhidos para o lado direito, separados dos familiares, dirigem-se para o campo propriamente. Na entrada são saudados pelo cartaz, “ARBEIT MACHT FREI”, (O trabalho liberta) que, transposto para a realidade do campo, significa escravidão, doenças, fome, castigos e a morte mais cruel e dolorosa possível. Adentrados, ainda sofrerão a humilhação de terem os cabelos cortados, as roupas substituídas por trapos, os poucos pertences confiscados e a dignidade que lhes resta abatida pela degradação de castigos físicos e tortura emocional. O alimento que receberão, mais magro que água de lavagem de pratos, não lhes permitirá viver, nem morrer, pois isto lhes daria a sensação de liberdade, coisa que os carrascos não permitem. Só a morte por bala na nuca ou na câmara de gás é permitida. A albumina faltará, o que lhes causará inchaço nas pernas. A carência de lipídios trará fraqueza e lapsos de memória e a coordenação motora estará comprometida. A falta de vitamina “B” provoca sonolência e irritabilidade. Sob essas circunstâncias têm que realizar trabalhos brutais e sem sentido; tem que submeter-se a contagens que duram, às vezes, a noite toda, e trabalhar no dia seguinte. Muitos sabem que o suicídio é a saída, já que a outra opção é sair pela chaminé.
Pobre gente, homens simples ou não, pessoas comuns, artistas, médicos, artesãos, lavradores, professores, gente que vivia a séculos na Europa central, onde a memória de seus antepassados, agentes e vítimas da segunda diáspora, se perdia no tempo. Pessoas que pela suas convicções religiosas haviam sofrido discriminação e violência ao longo de séculos sem nunca clamar por vingança, porquanto suas escrituras exortam a oferecer a outra face ao agressor. Pessoas que haviam contribuído com seu trabalho para a construção daquelas nações que os repeliam, enfim, pessoas que só queriam vivem sem incomodar ninguém.
As circunstâncias políticas de uma nação dita civilizada e a ascensão de um déspota insano ao poder, aclamado por todos, permitiu que idéias de suposta superioridade racial impregnassem de ódio cidadãos que até então viviam em paz com os de religião não cristã. Esses religiosos, na nova Alemanha, passaram a ser considerados odiosos agentes de todos os males que o país passava por incúria de seus dirigentes; Piedosos e pacíficos, tornaram-se alvos das frustrações de um povo oprimido por cláusulas leoninas de um armistício assinado após a grande guerra. Assim, uma nação cega, conduzida por um agente de paixões inflamadas e visões megalômanas, se viu envolta em outra guerra contra todos sem a mínima chance de vencer e, frente a isso, deixou-se enganar, supondo que eliminando o “inimigo interno”, encontraria o poder, a liberdade e o tão sonhado “espaço vital”. Então, aqueles cidadãos “diferentes”, expiaram pecados jamais cometidos, morreram sem a honra de poder defender-se, sem a glória de combater o inimigo, pois este era o insuspeitado vizinho ao lado. Pobres vítimas, jamais haverá remissão para o crime hediondo que foi a eliminação de seis milhões de seus pares. Que a lembrança desse crime jamais se apague na memória da humanidade. Que isso jamais se repita com qualquer povo na face deste Planeta que nunca dividiu a humanidade em “raças” como queriam e querem alguns. JAIR, Floripa, 18/09/10.
3 comentários:
- Perdoar, se possível. Esquecer, nunca.
- É quase impossível acreditar que alguns sobreviventes do genocídio tenham conseguido perdoar seus algozes. Mas é certo que as cicatrizes permanecerão.
- Matéria contundente, Jair. Parabéns. E parabéns também pela marca de 200 seguidores. Abraços.
Jair, eu visitei,nos anos 60, em Porto Alegre, a uma exposição, chamada "Never! Nunca Más! Nunca Mais!" onde foram exibidas fotos, filmes e objetos referentes aos campos de concentração.
Mas, no RS, tinha também um tal de S.E. Castan, um neonazista que teve a cara-de-pau de escrever livros onde nega o extermínio sistemático dos judeus!
Ótima a sua matéria!
Coisas assim nunca devem ser esquecidas, senão, daqui a pouco começa tudo de novo...
Abraços!
Muito triste... mas a história precisa ser relembrada sempre! Muito bom o texto!
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