domingo, 4 de setembro de 2011

O Renascimento


Nada se movia, parecia uma fotografia de paisagem bucólica, algo assim como uma bonança antes da tormenta. A humilde cidade, já pouco movimentada por pequena, parecia estática. Neste momento, quem olhasse para o céu poderia notar que um lado estava negro arroxeado e do outro, ao contrário, completamente limpo. O lado escurecido vindo do leste movimentava-se lentamente em direção ao claro, e este se movimentava em direção ao negro e, por fim, eles se fundiram num abraço mortal bem sobre o centro de Palmeira. Depois do fato, meteorologistas disseram que havia acontecido um choque de duas frentes atmosféricas antagônicas. Uma das frentes era um ciclone quente e úmido, a outra, seu oposto, um anticiclone seco e frio. Era a expressão máxima da síntese dos opostos que se atraem. Elas chocaram-se de repente e, por todo lado, ouviram-se uivos, assobios e estrondos. Uma força descomunal revolveu a nuvem escura que se transformou em um torvelinho negro, sujo e desgrenhado, em uma coluna volteante cuja extremidade inferior tocava o solo, enquanto a superior se estendia em direção ao infinito onde o olhar não podia alcançar. Um motor inacreditável fazia girar essa massa escura, extraindo e juntado tufos negros no centro, como se o próprio satanás a tudo comandasse. Em torno da coluna, rodavam e borbulhavam nuvens de fumaça, poeira, sujeira ou alguma outra coisa imprecisa, com todas as cores do arco-íris e suas nuanças mais repulsivas e estranhas. O torvelinho não ficava em um único lugar nem se deslocava em linha reta: como tromba maiúscula numa dança cujo ritmo fosse apenas de seu conhecimento, andava em círculos que invertiam seu sentido pelas ruas e terrenos da cidade, como se quisesse arrasar tudo a seu alcance, como se quisesse deixar sua marca particular e profunda naquela cidade de iniquidades e pecadores.
O ciclone curvava-se com requebros quase sensuais, torcia-se até o chão e arrancava árvores, esmigalhava telhados de casas, revirava automóveis, fazia latões de lixo rolarem pela rua ou serem lançados ao espaço, despedaçava quiosques em fragmentos indefiníveis, levantou a carroça de um pequeno feirante fazendo desaparecer suas frutas e legumes, elevando o cavalo a rodopiar no ar como um pégasus deslumbrado curtindo uma valsa vienense. Ao redor eram só assovios, uivos, rugidos e lamentos; o vento ululava e gemia com a fúria de uma besta ensandecida; do céu despencava sobre a cidade chuva sólida, pejada de granizo composto de pedras grandes como limões galegos em quantidades antes nunca vistas naquela região. Flashes de relâmpagos ziguezagueavam a sua luminosidade ofuscante e, com terríveis estrondos, atingiam postes, chaminés e até a torre da catedral. Todo mundo apavorou-se – alguns olhavam pelas janelas, aterrorizados; outros, ao contrário, fechavam olhos e janelas e tapavam espelhos, mas todos, até os mais incréus, lembrando que tinham alma, rezavam.
Nunca um palmeirense tinha visto uma tempestade assim nessa época do ano, ou em qualquer época, e nem queria ver. Muitas pessoas até começaram a pensar que talvez isso não fosse uma tempestade, mas um castigo divino, e não um castigo simples, mas algo de proporções bíblicas como registrado no Velho Testamento. Ou então, pior que isso, o fim do mundo. O dia do Juízo Final, quando a Terra seria revirada, todos os túmulos seriam abertos e hordas de mortos-vivos putrefatos sairiam e começariam ranger os dentes.
Foi quando ímpios, bandidos, estróinas, marginais, meliantes, malandros, punguistas, estelionatários, desclassificados, perversos, patifes, adúlteros, malfeitores, alcoviteiros, celerados, venais, ruinosos, sátiros, encapetados, bandoleiros, gatunos, ratos, vendilhões, tratantes, maníacos, flibusteiros, nazistas, matadores, contrabandistas, exploradores, escroques, chantagistas, quadrilheiros, descuidistas, velhacos, transgressores, niilistas, clandestinos, facínoras, hereges, vilões, malvados, miseráveis, golpistas, politiqueiros, canalhas, genocidas, pecadores, pérfidos, satanistas, feiticeiros, verdugos, monstros, carrascos, malufistas, cínicos, desordeiros, senadores, demônios, incendiários, demagogos, satanistas, corruptores, falsos, gângsteres, maoístas, diabólicos, torturadores, réprobos, especuladores, devassos, contraventores, impudicos, libidinosos, viciados, súcubos, pornógrafos, pelintras, bruxos, libertinos, blasfemos, traidores, levianos, maldizentes, promíscuos, vis, falsários, pistoleiros, invejosos, vagabundos, sanguinários, iracundos, odientos, maníacos, detratores, capciosos, parricidas, góticos, sinistros, usurários, crápulas, charlatões, muquiranas, bolchevistas, delinqüentes, ladrões, coprófagos, vadios, terroristas, cavilosos, sádicos, assassinos, caloteiros, pedófilos, amaldiçoados, imorais, criminosos, descarados, mentirosos, perjuros, pivetes, calhordas, belicosos, comunistas, safados, larápios, malignos, trombadinhas, embusteiros, tarados, heréticos, sicofantas, proxenetas, sediciosos, poluidores, hipócritas, venenosos, rufiões, jagunços, inescrupulosos, corruptos, possuídos, desdenhosos, vândalos, ordinários, histriões, deputados, raptores, impiedosos, piratas, invejosos, sádicos, estupradores, coléricos, cáftens, ruins, iconoclastas, algozes, pernósticos, cafajestes, receptadores, masoquistas, brutais, mexeriqueiros, vândalos, calvinistas, perversos, fornicadores, desumanos, perpetradores, verdugos, fariseus, cruéis, pulhas, dissolutos, vigaristas, encrenqueiros, abjetos, traficantes, desleais, sicários, desordeiros, obscenos, toxicômanos, assaltantes, necrófilos, mafiosos, fofoqueiros, sequestradores, permissivos, párias, enganadores, indignos, penitentes, escrotos, caluniadores, incestuosos, concupiscentes, impostores, infiéis, falazes, sórdidos, nefastos, torpes, indecentes, funestos, licenciosos, ignóbeis, solertes, avaros, mesquinhos, indecorosos, agiotas, malafamados, fascistas, infaustos, aziagos, peçonhentos, poltrões, truculentos, depravados e stalinistas sentiram que teriam que prestar contas por suas culpas, malfeitorias e vícios. Tudo brilhava, se movimentava e estrondeava; alguns se assombravam, tinham a sensação de fazer parte daquela dança macabra, mas sem nenhuma idéia de como fazê-la parar.
A história registra que os moradores da cidade nunca viram uma tempestade daquelas em qualquer época e em qualquer outro lugar. Com descargas de raios, torvelinhos de ventos e turbilhões, tudo foi quebrado, esmagado, arruinado, queimado, reduzido a cacos, mas o ímpeto do fenômeno atmosférico como que redimiu os pecados daquele burgo. Arderam casas de madeira, o posto de gasolina e uma oficina mecânica. A fábrica de farinha ficou em pedaços e nem o cemitério foi poupado, mas ninguém morreu, todo o estrago foi apenas material. E, parece, as almas das pessoas foram redimidas, o ciclone “limpou” os pecados e transgressões dos palmeirenses.
Mesmo depois de reconstruída, a cidade nunca mais foi a mesma, renasceu, parece que seus habitantes, em conformidade com as novas construções e novos arruamentos, adquiriram uma nova sentalidade que os remeteu a relações mais cordiais entre si e para com os estranhos, e a honestidade passou a revestir todas as ações daquela comunidade. Para o bem da humanidade o povo tornou-se mais devoto e passou a cuidar mais da alma e falar menos da vida alheia. O Ciclone foi a melhor coisa que aconteceu àquela cidade. JAIR, Floripa, 01/09/11.

11 comentários:

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá amigo Jair

Parabéns pelo texto, não li todos os adjectivos... mas são imensos. Nada como ter uma segunda oportunidade para mudar comportamentos.

Grande abraço. continuarei meio ausente... mais quinze dias

Paulo disse...

"(...)mas ninguém morreu (...)"

Ainda bem...

Abraço

Unknown disse...

Destruir para reconstruir, normalmente para melhor. Lembra da parábola sobre o vaso e o oleiro?

Professor AlexandrE disse...

Ótimo texto... Em tempos de adversidade, as pessoas descobrem suas maiores qualidades!
Parabéns...

Vida Longa e Próspera!

Anônimo disse...

Jair... Na minha opinião esse foi um dos seus melhores textos. Eu adoro este tipo de texto que usa várias metáforas, como voce usou a do abraço dos opostos. Principalmente as que envolvia a natureza, descreveu no início o lugar, e conseguimos imaginar perfeitamente como era. Parabens, voce escreve muito bem. Continue com seus textos para eu vir ler :) Beijos, boa semana para todos nós .

Tais Luso de Carvalho disse...

Poxa... tive a sensação que estáva pressentindo o Armagedon!!
E bem narrado, nos mínimos detalhes.

Abraços
Tais Luso

Attico CHASSOT disse...

Jair,
Catastrófico. Às bíblicas Sodoma e Gomorra, há que juntar a tua Palmeira.
Com espanto
attico chassot

J. Muraro disse...

gostei dessa fábula fabulosa, parabéns.

R. R. Barcellos disse...

Marque mais uma estrela na tua técnica narrativa. Parabéns.
Abraço.

Joel disse...

No meio daquele pessoal todo estava o Maíco.
Joel.

Almirante Águia disse...

Jair, esta de parabéns, só faltou citar católicos, protestantes e vendedores de padrax (aquela pomadinha que se vende nas praças com um peixe elétrico em uma cuba d'água).