quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A Pedra de Roseta



Em 1798, o vitorioso general Napoleão que havia derrotado a Itália, inclusive saqueado o próprio Vaticano, resolveu conquistar o Egito, que segundo entendimento comum na França pós revolucionária, “não tinha dono”. Para a empreitada, o jovem general armou uma esquadra com 16 mil marinheiros e 34 mil soldados, com toda a parafernália necessária para empreender uma campanha naquele país contra os mamelucos que detinham o poder, ainda que, nominalmente, o Egito fizesse parte do império Otomano, conhecido no ocidente como império Turco. Os mamelucos eram uma casta de guerreiros que originalmente teriam sido escravos criados desde crianças orientados para as artes bélicas, ou seja, guerreiros. Comportavam-se como mercenários, ou como a Legião Estrangeira veio se comportar depois de criada pela França. Eram guerreiros formidáveis que só se dedicavam à guerra e à pilhagem.
Contudo, ainda que a frota e as tropas napoleônicas estivessem bem de acordo com seus propósitos imperialistas de conquista de espaços vitais, a expedição tinha um componente no mínimo inusitado: contava com um entourage de 150 “cientistas”, a nata do Instituto da França, incorporado às tropas do exército com soldos correspondentes a de oficiais, embora seus membros se recusassem a usar fardas. Chamados genericamente de “sábios” por Bonaparte, matemáticos, topógrafos, arquitetos, cartógrafos, engenheiros, geômetras, físicos, astrônomos, químicos, botânicos e até um músico e um poeta compunham essa eclética equipe destinada a estudar in loco todas as particularidades da terra exótica e de cultura milenar que era o Egito e a região circundante, chamada Levante. Berthollet, Savigny, Geoffroy Saint-Hilaire, Gaspard Monge (inventor da geometria descritiva), Devilliers, Fourier (séries de Fourier, quem não lembra?), o fantástico inventor Nicolas Jacques Conté e uma quantidade de estudantes de engenharia, faziam parte do grupo que, teoricamente, efetuariam profundos estudos civis sobre a geografia, a sociedade, os potenciais econômicos, a hidrografia e a botânica da região, mas que, por trás dos panos estavam destinados para finalidades militares que, desde o primeiro momento, eram o escopo do general francês.
Assim que chegaram ao Cairo, os “sábios” fundaram o Instituto Egípcio e caíram em campo para trabalhos que renderam ao fim da viagem uma enciclopédia, “Description de L’Égypte”, em 23 volumes. Mas Napoleão, de olho numa conexão militar estratégica, ordenou que os engenheiros, arquitetos e topógrafos fizessem um estudo visando à construção de um canal ligando o Mar Vermelho ao Mediterrâneo, iniciando no porto de Suez. O projeto só se tornou realidade 50 anos depois por iniciativa do empreendedor Lesseps, mas nada tinha a ver com Bonaparte então.
Pois bem, enquanto faziam medições próximas à cidade de Roseta, os engenheiros encontraram uma rocha rosada com estranhas inscrições, que acabaria por trazer à luz uma grande parte perdida da história humana. A chave que viria a revelar a antiga escrita egípcia foi descoberta em Roseta, num dia muito quente de verão no final de julho de 1799. Os franceses estavam cavando ao longo de uma muralha, na tentativa de reforçar uma velha fortaleza do tempo dos cruzados, na margem esquerda do Nilo, trabalho destinado a defender a costa contra a armada inglesa que navegava pelo Mediterrâneo com vistas a expulsar os franceses do Egito. Em meio aos detritos, um engenheiro francês de nome Pierre-François Xavier Bouchard, notou uma pedra de granito rosa coberta por inscrições. Espanando a poeira que a cobria, percebeu que os escritos vinham em três línguas, uma delas visivelmente o grego antigo e outra claramente hieroglífica. Bouchard levou sua descoberta ao conhecimento do general encarregado das obras em Roseta, Jacques Menou, que mandou transportar para a própria tenda, ordenou que a limpassem e providenciou a tradução do texto grego. Menou pediu também que os engenheiros procurassem por outros fragmentos daquilo que, todos concordavam, deveria ser um achado muito importante, mas, ainda que aos soldados se tivesse dito que aqueles pedaços de rocha “valeriam seu peso em ouro” não foi possível desvendar o segredo que aquelas linhas encerravam.
Poucos dias depois, um engenheiro chamado Michel-Ange Lancret mandou uma carta a Monge e Berthollet no Cairo, informando-os da descoberta. Menou enviou a pedra aos acadêmicos no Cairo em agosto. Jean-Jacques Marcel, o orientalista da expedição, foi o primeiro a examiná-la. Identificou a segunda escrita como sendo “demótica” – uma versão popular mais simplificada da antiga língua egípcia. Os cientistas ficaram entusiasmados. Possivelmente, as cinquenta e cinco linhas em grego e as trinta e duas em demótico inscritas na pedra tornariam possível traduzir a terceira, um fragmento de texto menor, catorze linhas em escrita hieroglífica na parte inferior da pedra.
Quando os franceses encontraram a Pedra de Roseta, como passou a ser conhecida, 1500 anos haviam se passado desde que o último ser humano fora capaz de ler um único caractere da escrita hieroglífica egípcia. Ainda que a antiga civilização tivesse durado milhares de anos, a erradicação do paganismo egípcio fora súbita e total. Os cristãos que conquistaram o país no século três ordenaram que os habitantes locais abandonassem sua antiga escrita religiosa. O coptas – egípcios recém cristianizados – aceitaram a imposição sem protestar e passaram a usar o alfabeto grego. Com a antiga cultura já em processo de rápido declínio, não se passou mais duas ou três gerações até nenhum ser humano sequer ser capaz de decifrar a “língua dos deuses”, como era conhecida a escrita hieroglífica. Diante dessa situação a Pedra de Roseta era o descobrimento arqueológico mais importante da história humana. Fazia-se necessário que alguém conseguisse decifrá-la.
Com a derrota de Napoleão pelos ingleses no Egito, assinou-se o Pacto de Alexandria que espoliou os franceses daqueles bens que eles haviam espoliado dos egípcios, a Pedra de Roseta acabou indo para Londres onde se encontra até hoje. Aos perdedores as batatas! Ou melhor, restaram apenas litografias feitas por Conté, as quais foram enviadas a Paris onde se encontram no Louvre.
Jean-François Champollion (1790 – 1832) foi um linguista e egiptólogo francês. Com dezesseis anos dominava uma dúzia de línguas, e com vinte anos isso incluía o latim, grego, hebreu, amárico, sânscrito, avestan, pahlavi, árabe, siríaco, caldeu, persa e chinês, sem contar o francês. Em 1809 se torna professor de História em Grenoble. Seu interesse pelas línguas orientais, especialmente o copta, levou-o a se dedicar à tarefa de decifrar os escritos da então recém-descoberta Pedra de Roseta, e ele passou os anos 1822–1824 envolvido nesta tarefa. Decifradas as escritas hieroglíficas por Champollion, tornou-se tarefa de menor vulto ler as extensas inscrições nos monumentos e tumbas de faraós, as quais os egípcios foram pródigos em produzir. O resgate da ascensão e declínio dessa fantástica civilização, e por tabela das origens da cultura decorrente, só foi possível por que alguém, em algum momento do passado, teve a iniciativa de produzir a Pedra de Roseta. JAIR, Floripa, 18/08/11.

12 comentários:

Graça Pereira disse...

Eu, que adoro História, deliciei-me com esta postagem!
Em boa verdade, Napoleão com a sua vontade de conquistar o mundo, abriu muitos canais para os vindouros, isso não podemos negar!
O que eu acho engraçado é que, com razão ou sem ela, "tudo" vai parar a Inglaterra. Uns plantam, semeiam e eles...colhem!! E não foi sempre assim??
Beijo
Graça

Andre Martin disse...

Caro Jair,
Interessante apanhado, resumo amplo e contextual.
Tão fascinante quanto a "decifração" dos hieróglifos é a "decifração" da escrita cuneiforme, dos antigos sumérios, mesopotâmios, hititas, acádios e outros médio-orientais arcaicos.
Dizem que seu decifrador, quando o fez, saiu pulando como louco, feliz por ser o primeiro homem "moderno" a ler um texto de 5 mil anos, e logo depois morreu...

Roberta de Souza disse...

Muito bom o texto!
bj

Professor AlexandrE disse...

Realmente se alguém não tivesse tido a ideia de produzir a chamada Pedra da Roseta, é bem provável que até hoje a escrita egípcia seria um 'mistério'.
Adorei o texto... Parabéns!
Vida Longa e Próspera!

Elvira Carvalho disse...

Um excelente texto para quem como eu que não tendo estudos gosta de textos que lhe ensinem alguma coisa da história do mundo e dos seus povos.
Um abraço

Paulo Correia disse...

Obrigado!!!

Paulo

J. Muraro disse...

Sabe que sempre tive curiosidade sobre essa pedra? Pois muito se falava sobre ela nas aulas de história, mas só a conectavam com Champollion, nunca com Napoleão e seus cientistas. Bela postagem.

Anônimo disse...

Nossa que matéria ótima! Estou estudando em história bem esse período da Era napoelônica, foi bem útil, amanhã já sei o que falar de novo na sala aheuahue. Parabéns pelo seu blog, faz pensar mesmo. Continue com suas ótimas matérias. Obrigada pela ajuda.
beijos e boa semana.

Leonel disse...

Jair, bela aula de história!
O que me chama a atenção são principalmente duas coisas: a consciência de Napoleão do valor histórico e arqueológico do Egito, que o levou a fazer esse "mutirão" de cientistas, resgatando muitos dados importantes, como a própria pedra.
A outra coisa foi a clareza de visão do anônimo sábio que entalhou as inscrições, criando um dicionário trilíngue em pedra que, apesar de quase ter sido perdido, resolveu um problema que poderia existir até hoje: o significado dos hieroglifos!
Abençoados sejam os que preservam o conhecimento!
Abraços, amigo!

Iara Zippin disse...

Jair, parabéns pelo teu bolg!
É muito importante encontrar um lugar como este onde se pensa, e bem!!!!
Um abraço,
Iara

Attico CHASSOT disse...

Muito estimado Jair,
uma belíssima aula que já recebeu eloquentes comentários. Como retardatário trago dois comentários pessoais:
#1) Quando em 23 de abril de 2002 estava emocionado na nova biblioteca de Alexandria sou chocada por reprodução em tamanho natural da ‘Pedra de roseta’ e recordei que vira antes a original no British Museum em Londres, que revi agora em julho.
#2) Nos jardins de minha Morada dos Afagos tenho uma reprodução da mesma, o que quer traduzir o quanto as informações preciosas que trazes são significativas para mim.
Com admiração
attico chassot

Luci disse...

Informações preciosas,graças ao empenho do nosso pesquisador "beletrista".Grata.Luci.