domingo, 28 de agosto de 2011

A morte do trema



Era comum na União Soviética, durante o regime comunista, o alto comando mandar apagar de fotos oficiais a figura de algum dirigente que houvesse caído em desgraça. Apagava-se seu registro em fotos e se fazia igual expurgo em documentos, memoriais e quaisquer outros lugares onde seu nome constasse. O indivíduo em questão deixava de existir. Normalmente para sempre e, em alguns casos raros, era ressuscitado pela nomemklatura quando, milagrosamente, passava a “viver” novamente.
Pois é, inspirados nos sábios dirigentes soviéticos, alguns vetustos filólogos e outros sabichões donos da verdade resolveram mudar algumas coisinhas na língua portuguesa com declarado fito de unir gramaticalmente todos os países que se expressam nesse idioma. Demitiram de suas funções os acentos circunflexos quando colocados em palavras com vogais duplas como “ee” e “oo” de veem e voo, por exemplo. Dessa forma não se veem mais voos usando chapéus chineses por aí. Confesso que acho os voos bem menos charmosos e elegantes a partir de então. Parece que os doutos gramáticos não se deram conta que os “ee” e “oo”, por serem gêmeos idênticos, faziam o uso do chapéu em um deles para definir um do outro, para não haver confusão de quem era quem.
Expurgaram os acentos agudos nas joias, de modo que elas já não mais apresentam aquele brilho anterior, ficaram meio opacas. No rastro das joias as jiboias também perderam aquele único ornamentozinho que podiam ostentar, agora estão lisinhas, cilindros animados sem graça e sem sabor. Feias jiboias!
Entre outros pequenos acertos, fizeram o favor de reconhecer cidadania aos símbolos gráficos “k”, “w” e “y”. Já não era sem tempo, essas pobres letras, consideradas estrangeiras, já moravam nos países de língua portuguesa há muito tempo, mas não constavam na relação de cidadãos chamada alfabeto, de modo que viviam na semi clandestinidade só se arriscando aparecerem em algumas palavras ditas estrangeiras, e assim mesmo correndo risco de serem expulsas a qualquer momento por algum purista de maus bofes com assento na ABL, ou nalgum ministério desses muitos que não tem o que fazer, então ficam procurando pelo em bola de bilhar, isso quando não estão enxugando gelo.
Mas o que mais magoou foi a extinção pura e simples do inocente trema. Veja bem, os demais acentos, agora proibidos de freqüentar certos ambientes, digo, palavras, continuaram com o antigo status em termos como você, café, paralelepípedo e proeminência, mas o trema não. O pobre trema, tal como as figuras soviéticas caídas em desgraça, deixou de existir, foi apagado da história e sua memória deixará de existir algum dia também. Daqui há algumas gerações ninguém saberá que esse humilde e discreto acento freqüentou nossa gramática e enfeitou palavras grandiloqüentes e até meio metidas como qüinqüênio, por exemplo. Mas, dirão alguns ungidos, ele sobrevive sobre “us” de palavras estrangeiras com Müller. Grandes coisas! Para um acento que já brilhou na lista vocabular da “última flor do Lácio”, aparecer em vocábulos estrangeiros donde nunca havia saído, não é nem prêmio de consolação. Vão se catar, bobões!
E, muito mais solidário que outros acentos, o trema era um companheiro confiável, um colega solícito que só queria ver a alegria das outras letras. Ele fazia de seu uso um gesto de cortesia para com o "i". Vejamos então, lá ficava o já meio complexado "i" por ser tão magrinho, aliás, a letra mais esbelta do alfabeto, equilibrando aquela bolinha como um cabeceador em treinamento, solitário, pensando com seus botões: quando será que sua arte de equilibrar vai ser apreciada, ou mesmo aplaudida? Sua única alegria era quando encontrava aquele primo atlético plantando bananeira: “!”, mas isso só nos fins frases exclamativas como “vivi!”. Então chega a lingüiça com tranqüilidade e coloca um companheiro “ü” ao lado dele partilhando a mesma habilidade. O “i” já não se sentia sozinho, curtia a companhia e o vocábulo tornava-se ornamentado com mais bolinhas saltitando sobre suas letras, era quase um espetáculo circense, enchia os olhos dos leitores.
O trema também costumava aparecer com certa freqüência em vocábulos com esse “ê” que, parecendo turista vindo da Ásia, estava sempre de chapéu chinês para impressionar aqueles não tão viajados. Sua presença ao lado do “ê” meio exibido, dava-nos a dimensão de seu desprendimento, não vivia só em companhia de “is” solitários com suas bolinhas equilibradas sobre a cabeça, ele também freqüentava a companhia de letras cultas que conheciam até o Oriente. Essa atitude fazia parte de sua natureza.
Só que agora ele se foi para sempre, mas eu, em nome da amizade e do companheirismo, continuarei colocando trema onde me aprouver e estou me lixando para esses patrulheiros gramaticais que, em nome de não sei o quê, tornaram inexeqüível um acento tão simpático e inofensivo. JAIR, Floripa, 27/08/11.

18 comentários:

Elizabeth Venâncio disse...

Jair, que texto delicioso, quanto mais eu lia mais tinha vontade de ler. ficou encantador.

um abraço

Beth

Luci disse...

Rsrsss...Jair,este texto tem a sua cara, o seu jeito de falar, a sua própria expressão...Parece que estou te ouvindo no olho-a-olho...um senso de humor embutido na vida atribuida a entes imagináveis que vão além da percepção gráfica.Concordo em go.,no. e grau com seus comentários.Como aposentada,, tenho meu apego a nossa lingua tal e qual, como a aprendi.Estou me lixando para as ditas correções...Luci

Anônimo disse...

É verdade, daqui um tempo quando contarmos que ideia por exemplo, era "idéia", eles vão achar estranho. Como eu achei estranho outras palavras que eu li em um caderno antigo da minha mãe.
Muito bom seu texto, e acredito que muito importante tambem! Parabéns
Beijos, Duda.

Francisco Simões disse...

Prezado Jair,

Só agora liguei o computador e já fui ler no seu blog. Magnífico seu artigo, excelente mesmo. Você deu um psseio no assunrto, meu amigo. Meus parabéns. Gostei demais da forma como fez todas as críticas, inclusive quanto ao coitadinho do trema, pois... risos...

Aliás, me permita divulgar para todos do meu catálogo daqui a pouco, colocando o endereço do seu blog. Pode ser? Puxa, você deu mesmo um show, Jair. Sinceramente. Já coloquei seu blog nos meus favoritos.

Um abraço amigo do
Francisco Simões.

Anônimo disse...

Pois é, meu caro amigo... esse trema já não existia há muito no português dito de Portugal.
Mas veja só: eles queriam acabar com os acentos todos !!! Felizmente que não conseguiram !!! Já viu como ficaria o pobre do cágado, por exemplo ?
Dizem que as consoantes mudas devem desaparecer. Você já reparou que, se calhar, iremos escrever Omem, Oje...
Olhe meu caro: eu acho que já nem sei escrever direito, como vcs dizem.
Um abraço deste pequeno "jardim à beira mar plantado, que se chama Portugal".
Jorge

Leonel disse...

Pois é, eu tenho que confessar que já havia assassinado o trema há muito tempo, acho que nunca o usei na realidade, a não ser ao escrever os nomes de alemães como "Müller" e "Göring".
Mas, quanto aos demais acentos, estas novas regras me fizeram engrossar o número de analfabetos, o que parece ser o objetivo do MEC, entregue à sanha dos "progressistas"!
Belo post, Jair!

João Esteves disse...

Jair, o nome deste blog encerra uma promessa, ainda bem que cumprida.
Quem, dera o mesmo se aplicasse mais amiúde em campanhas eleitorais e publicitárias.
Quanto ao tema do presente post, interessa-me de perto.
Este blog promete.
Frote abraço

Tais Luso de Carvalho disse...

Pois é, Jair, já passamos por algumas reformas, e também causaram dificuldades. Agora, não satisfeitos, e com muitas coisas para se preocuparem, 'eles' veem (vêem) com mais tantas outras, que na real não deixou ninguém satisfeito. Isso tudo deu o que falar. Precisava, realmente?
Parece que por aqui tudo anda tão bem que há tempo sobrando para invenções. Mas vamos lá: vamos tirar todos os tremas e parentes. Não tem jeito mesmo. E como dizem os paulistanos, fazer o quê?

Abraço
Tais Luso

R. R. Barcellos disse...

Anciães. Anciãos. Anciões.
Palavras com múltiplas grafias enriquecem nossa língua. Sem contar que fornecem ao poeta uma larga escolha de rimas. De há muito impetrei "Habeas Corpus" para meus pronomes - assim ele podem se deslocar à vontade nas frases, escolhendo a ênclise, a próclise ou a mesóclise. ELOQÜENTE seu discurso, Jair!
Abraços.

Roberta de Souza disse...

ADOREI!!!
Muito bom sseu pensamento!!

bj

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jaïr,
o texto é uma preciosidade. Para mim o trema já foi tarde. Invejo os que precisam digitar texto em inglês. Zero acentos.
Mas a beleza do teu texto da vontade de fazer ressureições, mas para o trema RIP
Com estima e continuada admiração
attico chassot

Ivy disse...

Olá Jair, concordo plemnamente com tuso o que disseste.É impressionanete o que se faz para banir certas coisas do nosso convívio, neste caso a transformação da nossa escrita.Me parece que a maioria de nós não está interessada em aprender esta nova forma de escrever. Caraca!É como disse no seu comentário: vão tirando tudo e quando percebermos estamos com o cágado ...sem assento!

Grande abraço.Gostei imenso do texto!

Professor AlexandrE disse...

Simplesmente excelente!
Texto leve, poético e filosófico... Adorei a comparação da 'Morte do Trema' com a política de 'desaparecimentos' da antiga U.R.S.S.
Como sempre, estás de parabéns!

Vida Longa e Próspera!

Elvira Carvalho disse...

Com muito humor colocou como coe dizer-se os pontos nos is do acordo ortográfico, feito à revelia da maioria de estudiosos da língua por meia dúzia de "iluminados" Sem estudos eu já não sabia escrever muito bem e agora fiquei pior, pois nem sei pois há palavras ou saíram letras, e outras onde continua a utilizar-se essas mesmas letras.
Um abraço e um bom dia.

Daniela disse...

Nossa, que delícia de texto!! Divertido, sincero, real, e como disse a Luci, é a sua cara! Embelezou e valorizou cada letrinha e seus acompanhantes!! AMEI!!!

Andre Martin disse...

Jair,
apesar do tom descontraído, leve, humorado e jocoso para abordar este assunto, o artigo lembra que as algumas argumentações válidas desta reforma ortográfica IMPOSTA não justificam outras atrocidades cometidas junto.
O mais irônico de tudo é que um de seus defensores era um presidente sem o menor domínio da língua portuguesa! Um absurdo.
Como toda "lei", algumas só vingam pelo uso e acatamento, e não por terem entrado em vigor.
Pessoalmente, eu não adiro: continuarei a escrever como aprendi por certo, e defenderei o uso da idéia com acento e tremas nas conseqüências!
Senao, a rigor, nenhum acento seria necessario ja que alguns computadores nao permitem e eh perfeitamente compreensivel se ler, como um artificio de comunicacao (ainda que saibamos ser um "portugues errado")
E se, por extensão, permitirmos ignorar regras seculares, normas cultas, qualquer lixo será "legal".
Intaum euteria Q terminah cõ 1 abrassu procê!
(Isto não é horroroso?)

Andre Martin disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Andre Martin disse...

imagino que venha a gostar de ler o artigo que acabei de publicar no blog http://mesdre.blogspot.com, em duas parte:
Escrita: manual X digital (parte 1 de 2)
Escrita: manual X digital (parte 2 de 2)