quinta-feira, 21 de julho de 2011

Frankenstein



Cada um dos aglomerados humanos chamados cidades tem características próprias, seja por sua situação geográfica, por sua vocação econômica, pelo clima ou pelas etnias que compõem a fauna humana que formam suas populações. Assim, urbes litorâneas costumam ter certa vocação turística e, por força dessa orientação, constroem infra estrutura que lhe dão suporte aos turistas, nada mais que o esperado. Outras cidades industrializam-se por motivo geográfico ou político e adquirem feição diferente de suas congêneres não industrializadas. Há, ainda, o fator humano que delineia não só a aparência desses aglomerados, como também suas atividades primárias e secundárias. Entendendo-se por atividades primárias aquelas voltadas para o benefício econômicos dos empreendedores, como as indústrias de transformação, os serviços ou a agropecuária; e secundárias as atividades que dão suporte as primeiras, como as escolas, a indústria de construção e os serviços como de lavanderias e restaurantes.
Quanto à história e geografia, a regra geral é que as cidades costumam nascer de pequenos povoados criados a partir da fixação de pioneiros em sítios que pelas suas condições geográficas eram, naquele momento, apropriados. Ou seja, no passado, viajantes com intuito de ocupar a terra geralmente se fixavam em beiras de rio onde, supostamente, tinham um meio de locomoção fácil, além da água para suas necessidades. Daí, se o local provasse sua qualidade, surgiam novos migrantes, novos ocupadores que, somados ao crescimento vegetativo da população formavam o primeiro núcleo do que viria a se tornar um vilarejo. As vilas ou aldeias só viriam a se tornar “adultas”, ou melhor, cidades, se as condições apropriadas se mantivessem e a elas fossem somadas vias de acesso que permitissem comunicação com outros núcleos de modo que o intercâmbio de bens e serviços pudesse dar suporte a um crescimento constante e durável.
Claro que esse empirismo na criação de cidades, no mais das vezes, determina a forma caótica que elas costumam assumir quando se tornam maiores, não há como prever uma urbe organizada e funcional a partir de métodos baseados na vontade de cada um, sem qualquer orientação formal, o homem, quando deixado a vontade, vira anarquista, a sociedade urbana também.
Pois bem, nenhuma cidade que se formou e cresceu sem peias tornou-se urbanisticamente organizada, essa é uma verdade cristalina, nossas metrópoles são exemplos cabais dessa assertiva. Então qual é a solução? Construir cidades planejadas seria a resposta. Belo Horizonte, Goiânia, Maringá e Brasília são cidades planejadas tendo em vista uma melhor ocupação do solo, melhor fluxo do trânsito e melhor distribuição dos serviços. Não deu certo pelo que sabemos, é lamentável.
Hoje estou em Brasília, cidade especialmente construída para ser capital da república, cidade que pelo planejamento inicial deveria ser um exemplo de organização urbana voltada para o bem estar do cidadão e que permitisse um crescimento ordenado em todas as direções. Se esse era o escopo inicial, quase tudo saiu errado, hoje, Brasília mantém o chamado Plano Piloto com suas largas avenidas e blocos residenciais dentro do que foi planejado, contudo, essa ilha da fantasia está rodeada de caos turbulento no melhor estilo das cidades construídas a olho. O Plano Piloto foi concebido com formato aproximado de pássaro de forma a conter a população, os setores administrativos e os setores de serviços de apoio, com quadras marcadas em código alfa-numérico a partir do centro para a periferia em ordem crescente, mas exauriu a capacidade de absorção há muitos anos suscitando o aparecimento de bairros e cidades satélites populosos e não planejados que crescem como cogumelos para todos os lados.
Ao conceber Brasília, seu criadores, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, capitaneados por Juscelino, não previram, por desconhecimento ou arrogância, a absorção dos “candangos”, homens que vieram de quase todas as latitudes, mas principalmente do nordeste, trabalhar na construção da capital. Assim, os operários ao serem dispensados se fixaram de qualquer maneira num bairro, hoje extremamente valorizado, ao lado do Plano Piloto, mesmo porque, a política ocupacional da época estimulava a migração de gente para ocupar espaços na capital. O bairro dos ex-construtores, chamado Vila Planalto, foi erigido sem qualquer planejamento, sem qualquer infra estrutura e tornou-se o embrião de outros bairros que vieram a seguir. Somado ao caos de bairros e cidades periféricas populosas e bagunçadas, os meios de transportes coletivos são precários, a concepção da cidade só prevê a circulação de carros. Aliás, andar a pé nesta cidade sem esquinas é quase impossível, ainda que o motorista brasiliense respeite o pedestre, a concepção viária da urbe não prevê circulação de gente, só de carros.
“Frankenstein”, romance de Mary Shelley, conta a história de um cientista que constrói um homem a partir de partes de pessoas mortas. A intenção do construtor era fazer um ser com as melhores características: bondoso, inteligente, forte e generoso. Contudo, o ser estranho foge do controle do criador e passa a distribuir morte e destruição a sua volta. Brasília é o Frankenstein de Juscelino, fugiu do controle e se tornou uma excrescência no Planalto Central. Aglomerado urbano todo remendado e disforme, com avenidas congestionadas, gente superlotando os pontos de ônibus mal concebidos e depredados, metrô de superfície ruim e insuficiente, ruas e calçadas esburacadas mesmo no Plano Piloto e endereços engendrados de forma a só os iniciados poderem decifrá-los. Vejamos esta charada de letrinhas que eu deveria desvendar para participar de uma festa de casamento: SMLN MI trecho 5, Lago Norte. Endereço que nem o motorista do táxi auxiliado por GPS conseguiu achá-lo, chegamos ao local por puro acaso. Brasília, além disso, está situada no longínquo Planalto Central, de maneira que nem os administradores possam olhar olho-no-olho do povo, nem este possa se deslocar até lá para fazer suas reivindicações. A Ilha da Fantasia é inalcançável como uma vestal e perfeitamente descartável como capital, se não existisse e a administração do país se fizesse a partir de outra cidade, todos ganhariam, exceto os parasitas que constroem mansões no Lago Sul com dinheiro proveniente dos laços que mantém com o poder. É revoltante, toda opulência que se vê por aqui não é fruto do trabalho produtivo, da geração de bens ou serviços como em qualquer outra cidade, o dinheiro – bilhões de reais - que flui num sentido só: dos cofres do poder para os bolsos dos áulicos, provêm do nosso suor, nós contribuintes que pagamos impostos extorsivos os quais não revertem em benefícios dos cidadãos. O Frankenstein do planalto é um ogro voraz que se alimenta do trabalho e da alma dos brasileiros. Precisamos de um Nero que, num ímpeto insano, ateie fogo e destrua esse monstro e torne o povo liberto de suas fauces devoradoras de riquezas. Vade retro Brasilenstein! JAIR, Brasília, 19/07/11.

8 comentários:

Leonel disse...

Jair, outro dia li no blog da Mariza, uma professora de Joinville (http://marebrisadosaber.blogspot.com/2011/07/respeito-e-fundamental.html),uma menção às "pessoas invisíveis". Teve um universitário que baseou sua tese de mestrado na USP em uma experiência: enquanto cursava, paralelamente trabalhava como gari, às vezes no próprio campus, e nunca foi encarado nem reconhecido por seus professores e colegas, que passavam todos os dias por ele! Um gari simplesmente não existia no universo deles!
A mentalidade imperialista que ainda infesta a "classe" governante os impediu de considerar que destino teriam os candangos! Eles eram invisíveis!
Assim, planejaram Brasília, mas não planejaram Núcleo Bandeirante, Tguatinga, Ceilândia, etc...
Ainda estamos longe de ter governantes que encarem a massa de pessoas pobres como candidatos à autosuficiência, e não como eternos dependentes de bolsas-esmolas e eleitores do seu curral paternalista!

JAIRCLOPES disse...

Leonel,
Li o artigo que esse universitário estudante de sociologia fez a respeito da experiência a que se submeteu. Desde então, faço questão de cumprimentar garis, acensoristas e trabalhadores anônimos, vesti a carapuça que nós não somos melhores que eles. Obrigado pelo teu comentário

R. R. Barcellos disse...

Há sonhos que morrem, outros permanecem sonhos, alguns se transformam em realidades e uns poucos viram pesadelos.
Abraços.

J. Muraro disse...

Caro Jair,
Você traduziu bem o que sinto por a Brasília, uma disfunção, um alheamento, uma bem colocada Ilha da fantasia mesmo. Parece que Brasilia faz parte de outro planeta, não está nem aí para nosso mundinho medíocre. Parabéns pela reflexão.

Rafael disse...

Fala Jair, muito bom o texto, literalmente faço suas minhas palavras, o texto explica exatamente o que Brasília é, seus pontos mais podres foram colocados com perfeição por você. Muito show.
Vou começar a ler os mais antigos tb.
Abraço.
Rafael

Camila Paulinelli disse...

Olá,
Morei em Brasília por mais de uma década. Lá me graduei e fiz os melhores amigos que tenho ate hoje. Concordo plenamente quanto ao crescimento desordenado. Há mais ou menos cinco anos atras, quando deixei a nossa capital pra vir morar nos EUA, já se via e previa um caos no trânsito e todas as falhas bem descritas por você no seu artigo. Uma coisa que nao concordo e quanto ao endereço. Sempre defendi que em Brasília era muito fácil de achar endereços por algumas letras e números e nao por nomes extensos como em outras cidades. sempre me perdia nas ruas de BH por exemplo. Outro ponto que gostaria de ressaltar e a mistura de raças dos seus imigrantes que torna Brasília única. No meu círculo de amigos tinha gente de todos os cantos do Brasil, o que eu adorava, pois aprendíamos com nossas diferenças. Para quem viveu em Brasília e particularmente teve uma ótima fase, e muito triste ter que concordar que o tiro saiu pela culatra. Beijos da nora,

Daniela disse...

Concordo também com o texto, e assino embaixo no comentário da Camila! O que sempre também elogiei em Brasília é o fato do endereço... sabendo contar (ordem crescente e decrescente, par e ímpar) e o alfabeto, vc chega em qualquer lugar! Ruas com nomes de pessoas são mto mais difíceis para se localizar! Realmente é uma pena ver Brasília no estado em que se encontra, que se desenvolveu, e a fama que tem! Como a Camila disse, meus melhores amigos também estão lá, porém, diferentes dos dela, são brasilienses mesmo! A maioria, no auge dos seus 30 anos, são a primeira geração de suas famílias nascidos realmente no quadradinho! Porém, seus pais são dos mais diversifciados cantos do país, portanto, Bsb não tem uma cultura própria, e sim um mix de sotaques, de comidas 'típicas', de gostos... porém, acredito que alguns costumes já estão sendo inseridos por essa geração de brasilienses, pois algumas coisas só encontro lá hoje. Mas o que me entristece é ver meus amigos, amigos-irmãos, carregando a fama de uma cidade manchada pela política corrupta, sendo que quem escolhe os que vão para lá somos todos nós do Brasil afora! E é triste quando você diz que é de Brasília e escuta os mais diversos comentários maldosos... mas, é o que Brasília se tornou! Mas não nos esqueçamos que nem tudo é ruim, e que nem todos que moram lá são do 'mal'! E para falar de algo bom de lá, além dos meus amigos, digo que não tem nada como o céu de Brasília!! Que céu, um mar de estrelas!!!

Olegário disse...

"JJ, você foi fundo na avaliação de Brasília. Parabéns. Concordo com você em gênero número e grau, com o respaldo de ser morador desta cidade há 15 anos. Desde a minha chegada aqui em 1996, tenho visto a cidade definhar, ficar cada dia mais suja, esburacada, sem sinalização e sem lei. Hoje aqui todo mundo faz o que quer, sem nada a lhe acontecer, vide construções irregulares, estacionamento de veículos em plena via pública, lixo jogado a esmo e muito mais. Responsáveis? Os políticos demagogos, o judiciário ineficaz e uma população omissa, que tudo vê e cala."