sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ovelhas




(E os guarás que distinguiam cores)

Gosto de comer carne de ovelha e acho que esse hábito devo debitá-lo na conta de meu pai que era um apreciador dessa fonte de proteínas. Sempre que orçamento doméstico permitia, quando das datas festivas como natal, páscoa e passagem de ano, meu pai comprava um pernil ou uma banda dessa carne, algumas vezes chamada de ovelha, outras de carneiro. Não importa o nome, o animal era sempre o mesmo: Ovelha (Ovis aries) que pode ser chamado no masculino por carneiro e quando pequeno como cordeiro, anho ou borrego, é um mamífero ruminante bovídeo da sub-família Caprinae, primo da cabra e de seu marido bode.

Pois é, nas cercanias de Palmeira existia uma série de criadores desse bicho, criadores familiares com plantéis pequenos ou médios cuja finalidade era prover as famílias tanto de lã para cobertores tão necessários nos invernos rigorosos do planalto, quanto da saborosa carne que era vendida aos açougues da região de tempos em tempos. Numa vila rural um tanto afastada do núcleo urbano onde morávamos, um desses criadores, seu Pedro, era amigo de meu pai e tinha um rebanho de umas vinte ou trinta ovelhas e carneiros todos da raça sufolk, bons de carne e apenas razoáveis como fornecedores de lã. Aliás, meu pai fazia questão de comprar a deliciosa carne apenas do seu Pedro, numa deferência especial. Eram tão chegados que quando meu pai o visitava sempre levava alguns gêneros não encontráveis no campo, tipo enlatados, café, açúcar e cerveja e, em troca, ganhava bonitas e suculentas peras, maçãs e laranjas.

Morávamos então numa casinha de madeira construída para seus empregados pela Indústria Malucelli, onde meu pai trabalhava. O pátio da casa era enorme onde minha mãe mantinha uma criação de galinhas e eu havia construído um pombal, além disso, havia um pé de pêssegos, um caquizeiro, dois limoeiros e um pé de ameixas, todos bem produtivos. Foi para essa casa que, um belo dia, meu pai trouxe uma ovelha que havia ganho numa rifa. Pode parecer estranho, mas naquele tempo rifas eram comuns e até sapatos, guarda-chuvas e sanfonas eu presenciei sendo rifados. Pois então, chegou seu Ananias com uma jovem ovelha meio assustada, muito branca, que logo batizamos de Neve, e a recolhemos a um ovil feito as pressas, mas bem funcional. As galinhas perderam um pouco de espaço, mas a Neve ficou bem confortável.

A ovelha cresceu, tornou-se adulta e continuou sendo considerada apenas um animal de estimação, não nos passava pela cabeça vê-la assada com uma maçã na boca sobre a mesa arrumada para a ceia do natal. Então, meu pai com vistas a dar uma finalidade para aquele animal, que não fosse apenas ornamental, levou-a a um criador bem próximo de casa e cruzou-a com um carneiro de boa linhagem. Feito o cruzamento, a ovelha ficou prenhe e deu à luz um belo anho que se tornou outro animal de estimação, mas ocupou mais espaço antes destinado às galinhas. Logo no ano seguinte ouve novo cruzamento da ovelha com o mesmo macho, mas antes que o “rebanho” se tornasse impraticável por falta de espaço, meu pai fez um acerto para deixar seus animais na chácara junto aos ovinos de seu Pedro. Diga-se, ele marcava suas ovelhas com tinta vermelha e marcou as três de meu pai com tinta azul. Como os animais viviam soltos e não recebiam qualquer tratamento ou alimentação especial, só comiam a relva natural do lugar, não haveria despesas extras para o criador, e o acerto incluía a divisão pela metade de toda carne e lã que as ovelhas de meu pai viessem a produzir.

Feito isso as galinhas voltaram a ganhar seu antigo espaço e as ovelhas tiveram um campo imenso para comer e procriar. E procriaram, em dois anos já tínhamos cinco animais porque uma das filhas de Neve também teve filho. Como de hábito, meu pai, nas datas festivas, ia à chácara matar uma ovelha para nossa mesa, metade da lã e da carne ficava com o chacareiro conforme o combinado. Na segunda ou terceira vez que meu pai foi à propriedade matar mais um animal, a coisa começou a ficar engraçada, seu Pedro comunicou a ele que algum lobo (entenda-se guará, bastante comum naquela época e local) havia devorado uma ovelha, e não deixara restos, sequer partes do velo. Na vez seguinte outra ovelha tinha sido atacada e saboreada pelo guará, e mais uma ou duas vezes que meu pai lá foi, o lobo havia acabado com as demais. O “rebanho” de meu pai se extinguiu, os lobos haviam comido todas. Na época achei engraçado e estranho o ataque seletivo dos guarás apenas aos animais nossos, os que se distinguiam dos outros por manchas azuis pintadas em suas ancas. Hoje vejo a coisa sob o seguinte ângulo: os guarás que lá viviam conheciam cores, sabiam distinguir o azul do vermelho, e não só isso, eram gourmets exigentes que preferiam o azul, pois só comiam ovelhas marcadas com essa cor. Nunca tivemos notícia que eles tenham atacado os ovinos do seu Pedro, marcados de vermelho. JAIR, Floripa, 25/01/11.

7 comentários:

J. Muraro disse...

Gostei desse texto, pelo comportamento dos guarás podemos dizer que eles estão longe de ser daltônicos, ou seu Pedro não era tão honesto assim. Espero que continue com esses escritos autobiográficos, eles são supimpas.

R. R. Barcellos disse...

- "Seu" Pedro, ah, "seu" Pedro...
- Dúvida de um leigo: ovil e redil são a mesma coisa?
- E tá crescendo o próximo livro... Parabéns, amigão!

JAIRCLOPES disse...

Barcellos,
Ovil, redil, aprisco e curral de ovelhas é tudo a mesma coisa. A última flor do Lácio é fecunda. Abraços, JAIR.

Marly disse...

Delícia de texto,Jair!
Me diverti com suas colocações(não acho a cedilha nem til nesse teclado alemão) e ainda esclareci minhas dúvidas quanto aos vários nomes dados às ovelhas...Mais uma vez,parabéns!
Meu carinho,

Leonel disse...

Jair, lá no Rio Grande do Sul,o bicho andando era ovelha, mas no prato, virava carneiro.
Tinha uns parentes do meu pai que criavam gado e plantavam arroz, e tinha algumas novilhas que. por herança, eram da nossa família. Mas, quando dava alguma doença, só morriam as nossas, e as vacas acho que eram estéreis!
Esse "guará" de Palmeira andava em duas pernas e era muito esperto, o filho-da-mãe!
Boa estória, Jair!

Bibiana disse...

Olá Jair, adorei o texto, muito bem elaborado!

Anônimo disse...

Creio que este lobo era colorado, e queria se vingar dos gremistas!!
Ramona - SMarcos -RS11/02/2012