sábado, 5 de fevereiro de 2011

Dromedários

Os bichos surgiram praticamente do nada, estavam deslocados naquela paisagem. Afinal, aqueles ruminantes (eu havia lido em alguma parte que dromedários são ruminantes como as vacas, bichos que mastigam o bolo alimentar que se encontra no estômago [rúmen] por diversas vezes até se tornarem deglutíveis por completo) são animais que vivem em regiões desérticas da África, da Ásia e até da Oceania, onde, na Austrália, vivem livres em regiões áridas depois de terem sido importados como meio de transporte barato e adequado ao Out Back daquele país. Pois bem, surgiram à nossa frente bem uns quinze dromedários de cor entre o marrom desbotado até o creme bem clarinho, passando pelo café-com-leite. Estávamos o Joel e eu numa pescaria de lambaris lá prás bandas da Turma, para onde tínhamos ido seguindo os trilhos da estrada de ferro que passava por Palmeira quando ligava a Capital a Ponta Grossa. Hoje não mais existe essa ligação, os trens foram relegados ao departamento de memórias esquecidas da história, é uma pena.

Pois é, aquela época, a qual alguns chamam de anos dourados, era um tempo de poucas ambições, cabeças livres de pensamentos perturbadores e muita ingenuidade. Piás saudáveis e imaginosos, nossas vidas se resumiam em estudar no Ginásio, brincar nas horas vagas e explorar as matas e campos circundantes da cidade. A pesca de lambaris, embora sempre rendesse alguns peixinhos que depois seriam saboreados com prazer, era um pretexto válido para trilhar pelas matas e campinas, quase sempre pouco conhecidas ou exploradas. Sentíamos como se fôssemos bandeirantes intrépidos modernos, pura fantasia, é claro!

Então, nesta excursão, estávamos além da localidade chamada Turma, junto à linha do trem. O topônimo Turma tem origem na época da construção da ferrovia RVPSC (Rede Viação Paraná Santa Catarina) por volta dos anos vinte do século XX. Enquanto se elaborava a estrada, os operários que nela trabalhavam se deslocavam no sentido em que ia ficando pronta, de tal modo que a “turma” ou massa de operários, sempre acampava na “ponta” da estrada, por assim dizer. Quando o último trecho ficou pronto e a estrada não mais precisou de construtores, a empresa empregou muitos desses operários como mantenedores e, para isso, construiu uma vila de casinhas modestas ao lado dos trilhos, a essa vila todos chamavam de Turma. A Turma ficava a uns quinze quilômetros da cidade, um lugar muito distante portanto.

Já havíamos lançado os anzóis em várias partes do riacho piscoso, já pescáramos uns tantos lambaris, carás e mandis, mas continuávamos sempre em frente, estávamos há bem uns vinte quilômetros de distância, na margem de “campos gerais” desconhecidos por nós, nunca antes fôramos tão longe. Foi aí que avistamos os dromedários, eles estavam a uns cem metros da gente, pastando tranquilamente e ruminando suas pastagens. Ficamos ali olhando e trocando impressões. Por acaso, na semana anterior, havia passado no cinema uma reportagem sobre xeiques, Arábia e desertos, e os dromedários, como não podia ser diferente, eram o centro da atenção do cinegrafista o qual deu-nos informações interessantes que acabamos comprovando ali. Por exemplo, dizia o repórter que camelos e dromedários são versões diferentes de ruminantes do deserto, camelos tem duas gibas (aquelas corcovas nas costas do animal) e dromedários apenas uma. Então estávamos frente a dromedários, sem dúvida. Os bichos estavam, visivelmente à vontade, não quiseram tomar conhecimento de nossa presença, éramos invisíveis para eles. Já, para nós, aquilo era uma visão extraordinária digna de fazer parte de nossa história, era de se imaginar, daqui algumas dezenas de anos, nós contando para nossos netos o fantástico dia em que dromedários autênticos apareceram em Palmeira.

Agora, depois de tanto tempo, não sei dizer se os animais nos causaram medo ou só curiosidade, mas, tenho certeza, tínhamos consciência plena que estávamos frente a um acontecimento fora do comum, um acontecimento inusitado digno de registro. O que me passou pela cabeça foi o seguinte: meu pai tinha uma máquina fotográfica de baixa qualidade tipo caixão a qual tinha capacidade de operar com um rolo de filme de seis fotos 6 X 6 centímetros. A câmara era modelo “Donald Duck” e fora lançada a preço popular pela Kodak que desejava ver a faixa social de baixo poder aquisitivo comprando seus produtos. O registro fotográfico era essencial, já havíamos perdido oportunidade de registrar o encontro com um Unicórnio e com uma manada de Hipopótamos. Confabulamos um pouco e resolvemos que o melhor seria buscarmos a câmara e fazer novamente o percurso até os ruminantes. Inviável, seriam vinte quilômetros até a cidade, pegar a máquina, mais vinte até estávamos agora e depois uma volta de outros vinte, nem que fôssemos maratonistas! Qual era a alternativa? Voltar em outra ocasião já com a câmara pronta para as fotos, e contar que os bichos ainda permanecessem por ali.

Voltamos para casa e resolvemos que só revelaríamos nosso segredo depois de fotografarmos os bichos. Eu sabia que a “Donald Duck” era raramente usada e ficava guardada na gaveta de bugigangas, portanto, a prioridade seria comprar o filme. Com venda de sucata naquela semana, e privação de alguns picolés e figurinhas foi possível adquirir o filme na loja do seu Mezzadri, fotógrafo oficioso dos eventos sociais, religiosos, políticos e familiares da “Cidade clima do Brasil”.

Semana seguinte lá estávamos Joel e eu, de máquina no pescoço, vencendo os vinte quilômetros que nos separavam dos animais mais exóticos que já tínhamos visto na natureza, tirantes hipopótamos e unicórnios. Cumprida a comprida caminhada chegamos ao local e encontramos novamente os animais, agora uns deitados no capim baixo e outros bobeando por ali. Manejando a câmara com destreza de guris de doze anos que nunca a operaram fizemos a seis fotos possíveis, demos um bordejo pelos arredores e tratamos de retornar. Depois de reveladas, as fotos de baixa qualidade, focagem ruim e exposição ainda pior, mostraram a cáfila (olha as aulas sobre coletivos que tivemos com dona Maria Jamur) de ruminantes babões com alguma fidelidade. Dava para contar quinze entre adultos e crias em vários estágios de crescimento. E daí, o que aconteceu? Aconteceu que muitos palmeirenses se abalaram para lá nos meses seguintes, até que, um belo dia, não mais se viram os bichos naquele pedaço. Parece que, sentindo seu ambiente devassado, os dromedários se mudaram para sempre para lugar distante e não sabido.

Desfecho da história. Em 1992 eu soube que os exóticos animais tinham dono. Tratava-se de um fazendeiro chamado Enéas Silva, que havia recebido três animais, duas fêmeas e um macho, como pagamento de uma dívida que um circo tinha para com ele, também recebeu duas zebras machos, mas estas nunca mais foram vistas. Parece que o fazendeiro deixou os bichos soltos nas pradarias de sua imensa fazenda, nunca se preocupando com o destino que tiveram. Supõe-se que tenham se adaptado ao clima, procriado e o resultado foi aquela cáfila que fotografamos e que nos tornou quase famosos. E, embora não saibamos o destino das zebras, até hoje, no plantel de um criador de jumentos da região nascem filhotes com as ancas zebradas. Filhotes resistentes às doenças, fortes e bem proporcionados, por isso, muito valorizados. JAIR, Floripa, 11/01/11.

6 comentários:

Leonel disse...

Um barato esses arredores de Palmeira, que abrigavam unicórnios, hipovaras, capipótamos e até dromedários!
Romanticas lembranças do tempo em que as máquinas tipo "caixão" só tiravam seis fotos.
E a reafirmação do que eu já citei em uma das minhas matérias: a rede ferroviária brasileira diminuiu!
Uma jóia de postagem, principalmente para os saudosistas como eu!
Abraços!

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá

Maravilhoso texto, adorei ler a sua aventura com dromedarios... parabens continue a escrever e a encantarnos.

Abraço

Joel disse...

Jair. Esses dromedários, que eu chamava de camelos, como bem disse não foram vistos somente por nós dois, e sim, por boa parte dos moradores de Palmeira o que dá crédito e veracidade ao seu texto. Lembro que nessa caminhada passavamos pelo "40" onde nadávamos e dávamos bons mergulhos em suas águas límpidas e quase geladas.
Grande abraço,
Joel.

R. R. Barcellos disse...

- Jair, você e o Joel são os Livingstones brasileiros... e a variedade "zebrada" de jumentos já foi alvo - creio - de uma reportagem na TV... já faz tempo.
- Cada vez melhor. Abraços.

J. Muraro disse...

Esclarecedor. Para justificar a existência desses camelídeos no paraná, só mesmo um texto como este, parabéns.

Camila Paulinelli disse...

Olá,
Estes bichos enormes são de causar impressão para o resto da vida. Êta lugar bom esse seu para encontrar diferentes espécies! Fenomenal!
Beijos da nora,