Em 1928, Henry Ford, como parte de um sonho utópico de formar um novo homem livre que adotasse a tecnologia, mas amasse as coisas simples e gostasse de agricultura, intentou criar na margem direita do Tapajós, no Pará, a cidade de Fordlândia, adjacente a uma plantação de seringueiras que dariam a Ford a tão sonhada autonomia na fabricação de pneus e outros artefatos de borracha, então dependentes de látex produzido na Malásia sob o domínio inglês.
Desde que Henry Wickham, em 1876, contrabandeou 70 mil sementes de Hevea brasiliensis (seringueira) da Amazônia para os Reais Jardins Botânicos de Londres, onde foram transformadas em mudas e usadas em plantações na Ásia, o chamado “ciclo da borracha” havia definhado e entrado em franca extinção de modo que noventa por cento da borracha do mundo, agora vinha de plantações organizadas na Malásia e Indonésia. O ciclo da borracha havia proporcionado à região amazônica o mais espetacular surto de desenvolvimento já observado; ruas de Manaus e Belém foram pavimentadas com pedras vindas da Europa; O monumental Teatro Amazonas, além de ter sido construído segundo desenho arquitetônico do velho mundo, apresentava espetáculos com troupes vindas de Paris, Roma e Viena. A vida chique nas capitais da borracha rivalizava com as mais chiques da Europa. A Amazônia começou sua longa queda para a estagnação econômica quando as primeiras árvores de Hevea começaram produzir látex de boa qualidade no Oriente. Registre-se que para nós, vilão, Wickham foi nomeado cavalheiro pela Rainha Vitória, garantindo seu lugar na história como herói imperial britânico.
O bilionário Ford havia enriquecido com a fabricação de carros, no caso o ford modelo “T”, e diversificado seu império industrial. Por volta dos anos vinte detinha o monopólio de quase todas as matérias primas utilizadas nas suas indústrias que incluíam além da fabricação de carros, tratores, barcos, grupos geradores, locomotivas, aviões e implementos agrícolas; havia adquirido também a Lincoln Continental, produtora de carros de luxo. Suas fontes de matérias primas e insumos provinham de minas de ferro, de níquel e estanho, florestas e madeireiras, fazendas, fundições, represas e usinas, tudo propriedade do grupo Ford, empresa de capital fechado que não negociava suas ações na bolsa. HF, como era tratado pela imprensa, não acreditava em intervenção de governos ou protecionismos fiscais, achava que as leis de mercado eram soberanas e regulariam as relações da indústria com o consumidor por si só.
A depressão que teve início em 1929, a qual desorganizou a economia do mundo, pouco afetou suas indústrias, partidário de colocar o dinheiro “debaixo do colchão”, ou seja, não costumava especular, suas fábricas apenas passaram a fabricar menos e diminuíram um pouco os salários, no mais, continuaram sólidas. Ford era anti-semita e acusava os banqueiros (judeus, segundo ele) de construírem riqueza ilusória, de que seus lucros não provinham de atividade producente, eram apenas montes de papel escrito sem qualquer conteúdo. Costumava dizer que a depressão foi a melhor coisa que aconteceu à economia americana. Self made man típico e assumido, Ford, tinha que comer na mão dos ingleses e holandeses que detinham o monopólio na produção de borracha, e esse quadro ele estava determinado a mudar. Thomas Edson, amigo íntimo de Ford e grande inventor, estava incumbido de descobrir uma fórmula de fabricar borracha através da transformação química de qualquer coisa, até de legumes se fosse preciso. Aliás, numa ocasião Ford comprou um caminhão de cenouras e o descarregou no laboratório de Edson para que ele tentasse alguma coisa com esses tubérculos. O inventor nada conseguiu. Havia boatos que os russos tinham conseguido borracha sintética a partir de derivados de petróleo, mas Edson disse que isso não era possível e Ford acatou. Então, as indústrias Ford só estariam a salvo dos ingleses e holandeses se plantassem seus próprios seringais. Inicialmente cogitou-se de plantar as Hevea na Libéria, mas segundo assessores, lá os cidadãos não eram da cor certa, eram ex-escravos e não eram confiáveis. Falou-se em América Central, mas não era garantido que as seringueiras conseguissem ser produtivas naquele pedaço do mundo. Por último e com certa obviedade, optou-se pelo Brasil, a Amazônia era o berço das seringueiras e existia muita terra para plantá-las.
O magnata era adepto de Emerson e acreditava que a prosperidade era o caminho da felicidade, seu mundo ideal incluía trabalhadores ganhando bem e comprando os produtos que eles próprios ajudavam a produzir. Além disso, a agricultura era a raiz da civilização e todos deveriam dedicar-se ao cultivo doméstico como forma de bem alimentar-se e terem uma vida saudável. É ocioso lembrar que Ford era contra bebidas e admitia carne como alimento só se não houvesse opção vegetariana, não gostava de vacas e de leite, só admitia leite de soja. Também acreditava em pequenas cidades auto-suficientes nas quais seus habitantes trabalhariam para ele e, nas horas de folga, cultivariam a terra para si. Ford havia fundado muitas vilas de empregados às margens do rio Tennessee, mesmo a revelia do poder central, vilas que eram seus laboratórios práticos para experimentação de suas ideias libertadoras.
Então, quando surgiu a ideia da plantação de seringais no Brasil, por que não usar a oportunidade para implantar sua utopia empresarial humanitária? Depois de marchas e contra marchas, prepostos de Ford acertaram com o governo paraense a aquisição de 400 mil hectares de terras na margem direita do Tapajós, berço dos maiores seringais naturais do Planeta. Assim estava aberta a porta para a utopia do fordismo.
Bem, adquiridas as terras, surgiram os verdadeiros problemas: logística extremamente dificultada pelas condições da selva; administração de pessoal para o trabalho de desmatamento; adaptação da visão fordiana ao meio; choque cultural entre administradores americanos e ribeirinhos brasileiros pouco afeitos a trabalhos com relógio de ponto; adaptação dos trabalhadores brasileiros à comida fordiana que ele insistia que consistisse de mingau de aveia, vegetais e leite de soja; adaptação dos agentes americanos ao clima e meios disponíveis para o trabalho. Nada dava certo, contudo, o que mais errado deu foi a plantação de seringueiras. Existe uma razão pela qual as seringueiras na Amazônia não crescem umas pertos das outras, crescem espalhadas entre árvores de outras espécies, os predadores têm mais dificuldade em se proliferar. A plantação monocultural facilitou a vida dos predadores que atacaram as árvores e não deixaram folha sobre folha. No oriente onde não existiam predadores naturais, as seringueiras podiam ser plantadas de maneira adensada e se tornaram muito produtivas, na Amazônia isso era impossível. Como Ford não acreditava em peritos, achava que só se conseguia alguma coisa fazendo e depois vendo o resultado, deixou de contratar botânicos que teriam selecionado mudas de árvores resistentes às pragas e, com isso, o biliardário deixou alguns milhões de dólares enterrados para sempre nas selvas brasileiras. Mas isso merece outro texto, até lá. JAIR, Floripa, 19/12/10.
5 comentários:
- O idealismo de Ford é inegável, assim como sua ingenuidade em pensar que "o que dá certo no Tenessee dá certo no Tapajós". Mas pelo menos, ele tentou. É um dos poucos milionários do capitalismo que eu admiro pelo caráter.
- Quanto à rapinagem da nossa biodiversidade, sempre existiu e sempre existirá. Poderemos, tavez, reduzir ou compensar seus efeitos, mas eliminá-la está além do limite do possível - pelo menos enquanto o mundo girar em torno do dólar.
- Abraços.
Carinha, eu sempre quis saber alguma coisa a respeito dessa experiência do Henry Ford no Brasil. Bastante interessante essa abordagem humanitária utópica do teu texto. A matéria merece, na minha opinião, outro texto neste mesmo teor. Parabéns.
Que ótima matéria, Jair!
Eu vi uma vez um documentário sobre esta incrível aventura fordiana na amazônia, onde mais uma vez vemos a dificuldade que a gente do hemisfério norte encontra para entender as coisas que se passam ao sul do equador.
Isso me fez lembrar também a saga do projeto JARI, que eu espero também será objeto para outra postagem sua.
Parabéns pelo texto!
Leonel,
Sem dúvida, o Projeto Jari já está sob meu colimador, resta apenas encontrar literatura séria sobre o assunto, não gosto de pesquisar na internet, parece tudo muito superficial.
Tem dois livros recentementes lançados sobre o tema: The thief at the end of the world de Joe Jackson e Thre rise and fall of Hnery Ford's forgotten jungle town de Greg Grandin.
Muito massa o post
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