quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sobre cobras



Vou repetir aqui trecho do que escrevi sobre medo: “Medos acompanham a humanidade desde que o Homo surgiu no Planeta. Não há e nem poderia haver evidências diretas que nossos ancestrais eram acometidos pelo medo estressante que tolhe iniciativas, causa sudorese e taquicardia. Mas é razoável supor que o homem, fisicamente frágil como é, tenha adquirido medo ao longo de sua história porque os elementos, os animais e até outros homens lhes poderiam ser hostis na luta pela sobrevivência”. Pois é, animais ameaçavam as pessoas e estas, por todos os indícios que existem, nutriam um medo racional dos bichos em geral, além de medo da escuridão. Mas, parece, o medo do escuro foi enxotado da mente humana quando o fogo passou a ser utilizado, contudo, existiam medos que se incorporaram ao modus vivendi do homem para sempre.

Por algum motivo apenas suspeitado, as cobras mexem com o imaginário do Homo sapiens. Este mostra uma espécie de fascínio e repulsa como reação instintiva diante da aparência lisa de escamas brilhantes e a língua bífida desses animais, muitas vezes peçonhentos e mortais. Talvez seja uma lembrança atávica ecoando no nosso subconsciente: gerações e gerações de filhotes fofos e felpudinhos, nossos ancestrais primatas, foram devorados por esses répteis durante milhões de anos. Alguns experimentos com bebês humanos e filhotes de símios revelam que estes ficam apavorados diante de cobras e de qualquer coisa que pareça, se mexa ou se comporte como ofídio. Há quem diga que o autor bíblico do Gênesis escolheu a cobra como vilã primeva do paraíso porque ela já estava incorporada aos “medos basilares” do homem e, por isso, seria atriz perfeita para o papel.

O que o oportunista autor não suspeitava, contudo, é que sua vilã tem uma história bizarra atrás de si, é um bicho muito mais interessante do que parece. A ironia da estória é que, enquanto a serpente literária do Gênesis foi amaldiçoada com o destino de rastejar e comer poeira para todo o sempre, suas irmãs de carne e ossos, por um capricho dos caminhos evolutivos, parecem ter surgido justamente da necessidade de se esconderem em buracos no solo, ou seja, são lagartos que perderam as pernas. Vestígios ósseos residuais em várias espécies como anacondas, jibóias e najas atestam que esses animais evoluíram de Lacertílios (lagartos) os quais se adaptaram a vãos, fendas e buracos onde buscavam seu alimento e se escondiam dos predadores.

É claro que, quando se trata de evolução, devemos lembrar-nos que esta não é uma ciência exata, há algumas verdades pétreas, e muitas hipóteses, suposições e teorias provisórias aguardando dados novos para serem comprovadas ou deletadas.

A verdade é que as serpentes pertencem àquela categoria de seres que despertam os mais recônditos sentimentos nos humanos. Todo mundo sente emoções referentes às cobras, ninguém lhes é indiferente. Existe mais de duas mil espécies desse réptil, a maioria bichos tímidos, tranqüilos que só querem viver em paz comendo pequenos pássaros, roedores e insetos ou, as de maior porte, se alimentando de mamíferos maiores. Só umas quarenta espécies são realmente venenosas e podem causar males ao ser humano, desde que molestadas.

Um dos fenômenos mais interessantes a respeito desses ofídios é a maneira como o homem trata a relação ser humano-cobra. Todas as culturas antigas deixaram registros pictóricos desses répteis, desde o Egito, até os Incas e Maias, passando pelos Mesopotâmicos, Hebreus e Gregos, parece que o ofídio sempre fez parte do imaginário dos povos. Seja porque o desafio de enfrentar o suposto perigo merece respeito e confere status de coragem ao desafiante, ou porque o bicho “atrai” o homem pelo seu comportamento frio e misterioso, o Homo gosta de realizar coisas com serpentes. É evento milenar na cultura da Índia e de outros países do oriente, aquele espetáculo em que um faquir ou coisa que o valha, “encanta” através de música de flauta a naja que sai de um cesto. Existem por lá até seitas que adoram os bichos e os criam em templos erigidos especialmente para esse fim. Já no ocidente, o que vemos são dezenas de biólogos, zoólogos e aventureiros, todos especialistas em répteis, sair pelo mundo selvagem catando cobras, o mais das vezes venenosas, e mostrando os desafios em programas de televisão. Mesmo que o programa seja “cultural” e transmita informações interessantes sobre animais selvagens, as cobras sempre são o hit das paradas, o apresentador faz questão de manuseá-las, falar sobre o perigo que elas representam e, geralmente com voz velada e olhos arregalados, falar com admiração e êxtase da sua beleza.

Para finalizar quero falar sobre o medo que elas infundem nas pessoas da idade moderna. Tenho uma amiga que por todas suas atividades, estilo citadino de vida e lugares que frequenta nunca cruzou e provavelmente nunca cruzará com uma cobra em seu caminho. Ela reside no centro de uma cidade grande em edifício alto, tem suas atividades e lazer restritos a ambientes urbanos e não inclui o campo ou espaços rurais em qualquer coisa que faça. Pois bem, do que ela tem medo? De cobras! Perguntada por que, a resposta é porque são muito perigosas. Perguntada sobre quantas pessoas conhece que já foram mordidas por cobras, ela responde, nenhuma. Fazendo um gancho, perguntei a ela se tem medo de atravessar as ruas movimentadas de sua cidade, ela responde que não. E você conhece ou ouviu falar de pessoas atropeladas? Sim, muitas, todos os dias leio nos jornais e vejo na televisão casos de atropelamento. Tenho duas amigas que foram atropeladas.

Informação: No Brasil, por ano, morrem mais de quarenta mil pessoas em acidentes de trânsito, cerca de mil pessoas são picadas por ofídios todos os anos, das quais umas cem morrem, mais por falta de recursos nas matas distantes, que por outro motivo. JAIR, Floripa, 01/12/10.

6 comentários:

Leonel disse...

Pois é, Jair, na cidade onde moro, estatísticas mostram um grande número de vítimas fatais do maior predador do planeta: o homem! É desse animal, e não das cobras, que eu tenho muito medo!
Mas as cobras são mesmo animais polêmicos. Você lembra daquele nosso colega lá em Curitiba, cognominado SNAKE?

JAIRCLOPES disse...

O Snake era versão antropológica e grotesca desses animais fascinantes. Como sempre, o homem ao imitar a natureza só faz caca.

R. R. Barcellos disse...

- Gozado, nunca tive medo de cobra. Tive, na juventude uma cobrinha de estimação (a Catarina), que costumava levar no bolso ao ginásio - perdi uma namorada por causa disso...
- Cobras são bichinhos mimosos... pena que só tenham cabeça e rabo.

Serena disse...

Acabo de ter uma "aula" sobre cobras! Interessante a sua proposta; concluí sobre nossos medos infundados. Vejo o lado positivo também do medo: não seria auto-preservação? É sempre prazeroso estar aqui visitando seu blog. Vc é de uma perspicácia. Muito bom! Um abraço! (E agora vamos à luta para que o comentário siga seu caminho. Rs).

J. Muraro disse...

Confesso que sou fissurado por esses programas de animais em que cobras são estrelas. Assisto todos. Também me borro todo de medo ao atravessar ruas movimentadas, acho que ando contra o fluxos dos medos humanos. Abraços e parabéns pelos textos, são os melhores da blogsfera.

Camila Paulinelli disse...

Olá,

Analiso o fato (cobra + minha pessoa) da seguinte maneira: podemos até ser amigas, mas nunca visitaremos a casa uma da outra para tomar um chá da tarde.

Quando era pequena ia muito para fazenda com meu pai e vez ou outra íamos pescar. Inevitavelmente víamos alguma cobra passando por nós. Hoje em dia ainda continuo em contato com a natureza, fazendo as mais diversas trilhas também vejo alguma cobra de vez enquando. Durante todos estes anos nunca consegui me acostumar e me sentir confortável com este ser. Um medo inconsciente, fobia. Semelhante ao relato de sua amiga, a qual tem medo de cobra sem mesmo ter visto uma, acontece comigo com relação ao tubarão. Nunca trocamos olhares, mas penso que se um dia isto ocorrer, serei uma refeição do dia! Nossa mente é um antro de maluquice! Beijos da nora,