sábado, 25 de junho de 2011

O gato



Quando eu era garoto, na minha casa havia vários gatos, minha mãe adorava os bichanos, de forma que eles sempre encontravam abrigo principalmente na cozinha onde um fogão a lenha fornecia o calor que os atraía no inverno. Desde que lembro, nunca mais que quatro, desses vira latas sem quaisquer resquícios de raças, viviam em completa liberdade no quintal e na cozinha da nossa moradia, pequena e aconchegante casa de madeira num bairro pobre de Palmeira. Não eram mimados como gatos de madame, nem eram dependentes de qualquer coisa necessária à sobrevivência. Acho que naquele tempo nem existam essas rações de hoje, quando alimentados comiam restos de nossa própria comida. Viviam na nossa casa, mas não dependiam de nós moradores, tinham muita autonomia e eram safos o suficiente para se alimentarem, namorar e buscar companhia fora de casa. Eram afeiçoados ao lugar, mansos, conviviam em paz com nosso sempre presente cachorro, eram muito higiênicos, - enterravam com cuidado seus dejetos - gostavam de cafuné e atendiam minha mãe que os chamava por nomes como gato, gatinho, gatucho e outros, todos relacionados com a palavra gato.
Durante os invernos rigorosos como soem ser naquele planalto sulino, costumavam dormir ao pé do fogão a lenha, onde, uma vez, um bichano amarelo de nome gato foi atingido por uma brasa que lhe queimou a pelagem e a pele e ficou com uma cicatriz vitalícia. Esse mesmo bichano gostava de caçar roedores e outros animais de pequeno porte nos campos lindeiros donde morávamos. Não raro ele aparecia em nossa sala com um camundongo ou lagartixa viva na boca e, parecia, vinha mostrar como era exímio caçador. Brincava com a presa até cansar e depois a comia sem pejo, era um gato muito esperto. Certa vez apareceu com uma cobra viva na boca, um pequeno ofídio de cor esverdeada que foi objeto de brincadeiras e depois deglutido com aparente prazer.
Como os gatos apareciam lá em casa? Não sei, mas desconfio que minha mãe tinha algum jeito especial de atraí-los, talvez ela os visse perdidos pelas proximidades e os chamasse para nosso quintal, onde uns encontravam outros, faziam amizade e iam ficando. Só sei que os gatos não incomodavam os vizinhos, não miavam à noite, não ficavam doentes, nunca tomavam banho, mas aparentavam sempre estar limpos, e, não sei por que, eram todos machos, jamais alguma fêmea transpôs a soleira de nossa porta.
Como escrevi no início, eles eram representantes legítimos de animais SRD (Sem Raça Definida) e, como tal, apresentavam variadas cores. Lembro especialmente de um amarelo, um branco, um mourisco, ou seja, variegado com listras pretas e cinzas, e, o mais estranho de todos: um gato azul, isso mesmo azul! Imaginem, se hoje parece esquisito pensar num gato azul, naquele tempo, 1957, então, nem se fala! Um dia de verão, cheguei da escola ao meio dia e lá estava aquele gato bem novo, bem saudável e bem normal, a não ser pela cor. Perguntei a minha mãe a que devia aquela cor e como ele veio parar lá em casa. Como os gatos iam morar lá em casa era um segredo que minha mãe jamais contara, então não seria agora que ela ia abrir o jogo. Mas, azul? Peguei o bichinho no colo e pude verificar que o pêlo não fora tingido ou pintado, era azulão mesmo! Como era possível? Minha mãe não se abalou, disse que pelo fato de jamais termos visto gatos azuis não significava que eles não existissem. Era um bichano azul e pronto! Realmente, diante desse argumento não houve como discordar, o gato azul se incorporou a gataria doméstica e, depois de algum tempo, não dava nem para reparar que ele era diferente dos demais. O bichano gostava de comer mariposas, essas borboletas noturnas que são atraídas por lâmpadas à noite. Para alcançá-las o bicho costumava subir num armário, ficava em pé e as pegava com as patas dianteiras quando pousavam no teto da cozinha. Ele viveu muitos anos na nossa companhia e tornou-se um dos meus prediletos, era um felino dócil e inteligente. O curioso dessa história é que ninguém, absolutamente ninguém, sejam meus irmãos, vizinhos, parentes ou visitas, jamais se referiu a cor estranha do animal, parecia que só minha mãe e eu conseguíamos enxergar aquela pelagem de coloração anil. Também nós, na presença de outras pessoas, deixávamos de falar na cor do bicho, estávamos cientes que os outros não a notavam.
Como os demais, ao ficar velho e alquebrado, o gato azul passou a ser caseiro e dependente alimentar durante um período, depois, um belo dia, partiu em direção aos campos gerais onde se perdeu e nunca mais foi visto. Todos procediam assim, eram por demais orgulhosos para definhar a vista de nós humanos.
Claro que, considerando o que minha mãe havia dito e o conhecimento parco sobre animais e o total desconhecimento sobre genética que eu tinha, nunca contestei a cor do felino e, tampouco me passou pela cabeça procurar saber o porquê daquela excentricidade. Agora, muitos anos depois, ao ler o livro “O urso azul”, veio-me à lembrança aquele gato e uma certeza de como explicar sua exótica coloração. O livro conta a aventura e a trajetória de vida do americano Lynn Schooler que mora no Alasca onde é guia de expedições científicas e fotográficas da fauna daquele estado. Conta ele que havia avistado de longe um urso azul, animal meio lendário que povoa há muitos anos o imaginário de povos nativos e visitantes daquela inóspita região. Pois bem, em todas as oportunidades, Lynn procede a busca do animal exótico até que o encontra e fotografa de perto (as fotos estão no livro). A explicação para a cor azulada se deve a uma mutação do urso cinzento o qual deu origem a esse raro animal.
Então, minha gente, hoje estou feliz porque finalmente posso entender a origem da cor do meu gato. Provavelmente ele era uma mutação desses gatos cinzas, chamados egípcios se não me engano, e saiu com aquela belíssima pelagem que o tornou o bichano mais bonito da gataria de minha casa. Um gato azul com origem agora plenamente desvendada! JAIR, Floripa, 22/06/11.

14 comentários:

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
por razões opostas às tuas nunca gostei de gatos. Minha mãe os detestava. Isso determinou que na casa de minha infância os bichanos não tivessem vez.
Meus filhos quebraram normas. Uma vez, um que achávamos que era um gato – o jeropiga – pariu uma ninhada em uma gaveta de um roupeiro.
Assim, teu texto me trouxe evocações que vês nada ortodoxas.
Um bom sábado colorindo evocações
attico chassot

J. Muraro disse...

Puxa, nunca imaginei que existissem gatos azuis. Você foi privilegiado em ter uma felino assim! Parabéns pelo interessante texto.

Leonel disse...

Esse gato era fabiano!
Mas, naquele tempo, acho que a farda ainda era cáqui!
Depois que apareceu uma gatinha aqui, que invadiu minha casa e ocupou seu espaço, andei me informando sobre esses felinos e hoje sei bastante sobre eles e as coisas que fazem.
Buenos recuerdos!
Abraços, Jair!

Trasnportador Individual de Passageiros - Taxista disse...

"O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba receber." (Artur da Távola)

R. R. Barcellos disse...

- Prefiro as gatas cor-de-rosa...
- Abraços.

Graça Lacerda disse...

Jair,

tua história funde-se com a minha, amigo!
Adoro os felinos porque também minha mãe nos ensinou a apreciá-los, e chegamos a ter, certa vez, 24 gatos em casa!
Com direito a nome, sobrenome e tudo:
Bolinha Baer,
Billy Flux,
Yanka Doodle...

que delícia de recordação!

Acho que muitos dos sobrenomes nós tirávamos de remédios, sei lá...mas que hoje ao recordar eu me alegrei, disto não me restam dúvidas. Obrigada por esse nobre felino momento!
Bom saber também sobre o bichano azul aí. Gostei, mestre!
Parabéns!!
Graça Lacerda

*Em tempo: Maravilhosa postagem sobre as orquídeas, meu caro!

Daniela disse...

Sem palavras para descrever a preciosidade desse texto!! Estou enormemente admirada!! Tenho certeza que os gatos da sua casa foram extremamente felizes, ainda mais por continuarem com seus hábitos naturais e podendo dividí-los com seres humanos tão especiais quanto a sua família, em especial a sua mãe. Dizem que os gatos que escolhem seus donos, então tenho certeza que sua mãe era uma mulher incrível e evoluída por atraí-los assim... Quanto ao gato azul, realmente, é novidade pra mim, mesmo sendo veterinária! O que sabia é que 'Azul' é considerado cor, mas dos animais de pelagem cinza. A minha persa, Marie, é considerada 'azul', mas não é... os criadores consideram uma diluição das cores básicas, mas a denominam assim... mas o seu era realmente AZUL!!! Que raridade, e que sorte a sua ter presenciado e convivido com esse ser especial! Delicioso texto!!

Antenor Sturtz disse...

Grande Jajá.
Ainda bem que o gato azul não cruzou a minha frente .....................................

Camila Paulinelli disse...

Olá
Me recordo ter tido uma ligação pobre com gatos pelo fato de minha família sempre ter optado por criar cachorrinhos. Era opção somente por um animal. O felino nunca teve vez, nao por minha causa, mas por decisao maioritaria. Gostaria de ter tido um gato azul. Parabéns pela história. Beijos da nora,

Gisa disse...

Dentre os inúmeros gatos que povoam minha casa há um cinza, da pelagem que denominam azul (apesar de ser inza mesmo!) É um SRD, vindo das ruas, como quase todos por aqui. Gatos são seres muito especiais, que sempre geram sentimentos extremos: amor ou ódio. Eu amo!
Cheguei a teu blog pelo comentário no Gatinhos de Toda a Parte e adorei a história do teu gatinho azul.

celso gomes disse...

Jaireybire,

Que bom te reencontrar e ter o prazer de ler teus textos e contos.

Gato sempre foi a minha praia e os tive de diversas cores, mas azul, só para iluminados que nem você meu caro. Pessoas especiais é que podem desfrutar da companhia de felinos especiais.

Saudades de te ver fazendo palavras cruzadas nos intervalos das malucas panes do valoroso, porém tinhoso, 707.

Prazer imenso em revê-lo e saúde sempre meu caro!

1 grande abraço

Celsão

Otávia Pequeno disse...

Me deliciei com esta história. Na minha infância tive cachorro, minha irmã teve um gato, mas eu quase nem morei com ela. Só agora, mais madura, tive a sorte de conhecer melhor esses seres incríveis. Desde do final de 2008 tenho gatos, seis precisamente, e como eles tem a nos ensinar. É uma pena que exista tanto preconceito das pessoas com eles.
Sobre seu gato azul, é curioso, no mínimo, que apenas vc e sua mãe falavam sobre a tal cor do gato. Fiquei me perguntando: será que era um dom apenas de vcs dois? E isso me fez lembrar daquela história "A Nova Roupa do Rei" (Hans Christian Andersen), só que as avessas. Hahahahaaha...
Jair, não ligue muitos para meus comentários, eu tenho uma imaginação igual ao Bob (personagem do desenho "O mundo encantado de Bob").
Adorei sua história, principalmente o jeito como a contou.

Abraços,

Otávia

P.S.: Todos os gatos daqui de casa tem nome e sobrenome, e eu falo de forma diferente com cada um deles. Pronto, falei. Ihihihihihih.

Daniela disse...

Tio, ja tinha achado e lido no teu blog. Tambem tive um gato azul. Muito linda a historia deles. Eles realmente fogem na hora de morrer, e sao companheiros tambem. Mas a questao de cores é um pouco subjetiva, cada pessoa ve uma cor de um tom, e diz se que ninguem percebe as cores do mesmo modo... interessante,ne?
Quero um texto sobre as Tanajuras!
Beijos!

Unknown disse...

Tenho um siamês azul, o Scott. Que de acinzentado e companheiro tem muito. De azul, só os olhos a raça.