sábado, 7 de maio de 2011

Sobre dinheiro


Desde que o homem se organizou em cidades passou a necessitar, para o bom funcionamento da sociedade já agora um tanto complexa, de vários serviços especializados como artesãos de couro, metalúrgicos, madeireiros, canteiros, agricultores, pescadores, criadores de animais de abate e outros prestadores que facilitavam a vida comunitária. No princípio, trocas ou escambos se faziam necessários para a permuta de bens e serviços para satisfazer as demandas. Só que trocas eram complicadas pelo fato de ser difícil estabelecer valores relativos: quanto valia uma cabra em relação à panela que o metalúrgico fabricava? Era justo trocar dois arreios completos pela madeira suficiente para construir um celeiro? O escambo mais complicava que facilitava a vida dos nossos antepassados. Numa decorrência natural surgiu o dinheiro, cuja finalidade era estabelecer um fator comum que “lubrificasse” as ações comerciais entre produtos de naturezas diferentes.

Segundo a história, o dinheiro nasceu na Lídia há três mil anos. No começo eram simples artigos de cobre, prata, ouro, as vezes gado ou sal, mas hoje inclui moedas e notas, cheques e contas bancárias, números em livros-razão e relevo em cartões plásticos, informações eletrônicas em telas de computadores e dígitos armazenados em chips de silício. O cidadão comum, envolvido no ganhar numerário para colocar comida na mesa, parece confuso em como definir esse dinheiro que não é aquele que ele carrega na carteira, que dirá medi-lo.

Desde a invenção do dinheiro, as pessoas disputaram-no e lutaram para consegui-lo ao máximo na forma que ele viesse assumir: barras de ouro ou de prata, moedas de cobre, cédulas de papel ou conchas. O dinheiro nunca foi uma ferramenta passiva, sua tendência não é permanecer no mesmo lugar ou nas mesmas mãos. Durante séculos, a literatura e a mitologia ocidental retrataram os prazeres e os sofrimentos das pessoas nos processos de ganho ou perda de quantias de dinheiro, mas paralela a essas histórias havia outra história ainda mais importante de esforços formidáveis entre nações poderosas, grandes instituições e personalidades para controlar a produção e distribuição do dinheiro e determinar até a definição do que é dinheiro. Ao longo da história, várias facções e instituições controlaram a produção e regulamentação do dinheiro – o estado e suas subdivisões, a Igreja ou ordens religiosas, associações de comerciantes e artesãos, famílias do setor bancário, bancos nacionais e operadores de câmbio. Os humanos lutaram pelo dinheiro, não apenas porque ele traz riqueza e luxo, mas, principalmente, porque confere poder para aquele que o detém. É o segredo para financiar exércitos e remover montanhas (literalmente), construir castelos e cidades, controlar a terra, a água e o ar, construir canais (Suez e Panamá, por exemplo) e lançar frotas marítimas, lançar foguetes ao espaço, ganhar e perder poder de todos os tipos nas relações com outros humanos.

O sistema comercial inter-nações começou com as grandes navegações. Pela primeira vez na história, navios cruzaram mares e ancoraram em portos em quase todos os continentes em uma rede global. As ousadas viagens abriram a grande era mercantil de comércio internacional que nunca mais se fechou. O caminho para o poder era, claramente, o comércio em nível global, o ganhar dinheiro se fazia, essencialmente, através do comércio, mas suas implicações acabaram atingindo o homem comum.

Depois de dois séculos desse comércio milionário, as rotas se firmaram e muitos concorrentes passaram a disputá-lo. O controle do comércio passou de Portugal e Espanha para a Inglaterra, Holanda e outros países europeus. Com o surgimento do que se convencionou chamar de era industrial, gradualmente a acumulação de riquezas passou do comércio para a indústria, um foco que durou até o final do século vinte.

Durante o século vinte a produção concentrou-se nos bens de consumo, de automóveis no início do século para computadores no final, bem como o constante suprimento de armamentos para as freqüentes guerras que se sucederam. Contudo, nas décadas finais do século vinte, ficou claro que não só a produção industrial controlava a produção de riqueza como havia controlado no início. Os proprietários dos meios de produção raramente eram pessoas, indivíduos ou classes como foram no passado, raramente eram discerníveis, identificáveis como pessoas, passaram a entes abstratos, na maioria dos casos chamados de pessoas jurídicas que apostavam nas bolsas, não investiam direto na produção das fábricas. As empresas, entidades quase virtuais, pertenciam a milhões de acionistas, desde aposentados vivendo de rendas fixas e limitadas até bilionários detentores de milhões de ações em centenas de empresas.

Concomitante, à medida que o dinheiro cresceu em importância, tornou-se um produto em si e não meio de financiar outros produtos, uma nova luta começou pelo controle dele no século vinte e um. Provavelmente está nascendo uma era de concorrência durante a qual muitos tipos de dinheiro surgirão. Na busca pelo controle do novo dinheiro, muitos concorrentes estão lutando para se tornar a principal instituição monetária da nova era. Visa, Mastercard, American Express, Dinners e outros facilitadores de compras construirão universos de dinheiro virtual ainda mais sofisticados, intrincados e envolventes, ninguém conseguirá se ver livre deles, embora, dinheiro fique cada vez mais difícil de definir, quanto mais de ser visto, deixou de ser coisa física, palpável, sólida, mas sua função permanece inalterada.

A vista disso, lembro que tenho um amigo que costuma dizer: “Dinheiro só serve para duas coisas: gastar e dar de troco”. Sou numismata e dinheiro para mim também serve para colecionar, contudo, vejo na assertiva de meu amigo uma verdade inescapável, parece não haver outras utilidades para o dinheiro a não ser usá-lo em “troca” de bens e serviços. Ora, se tivermos dinheiro e não o convertermos em bens materiais ou serviços que nos sejam úteis, não sobra praticamente nada para fazer com ele. Façamos um exercício mental. Coloquemos um milhão de reais em uma mala e o tomemos como nosso. A regra do exercício é que não podemos gastá-lo nem dá-lo de troco, então, o que nos resta? Sinceramente, não consigo imaginar alguma coisa útil que se possa fazer com essa grana. Lembremos que ao aplicá-lo em qualquer negócio ou empréstimo para fazê-lo render juros ou dividendos, estamos empregando o dinheiro que em outras palavras quer dizer que estamos “comprando” serviços e, desse modo, contrariamos o contrato inicial que era não usá-lo em aquisição de qualquer coisa, e, de qualquer modo, usar os rendimentos também contraria o “não gastar” que nos propomos. Portanto, a magia do dinheiro desaparece se ele não está sendo utilizado, ou seja, possuí-lo sem uso é uma forma de mostrar a exata inutilidade de algo que foi feito apenas para “gastar e dar de troco”, nada mais. JAIR, Floripa, 30/04/11.

4 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Verdade. Tanto é assim que o entesourador é visto como o maior vilão social, por ricos, pobres e remediados... cada um por motivos diferentes.
- O "Toque de Midas" só é eficaz para pessoas jurídicas, que transformam produtos e serviços em dinheiro; na outra ponta da linha estão as pessoas físicas, que transformam dinheiro em produtos e serviços. E para a maioria dos mortais, o dinheiro vem das pessoas jurídicas como salário - às vezes disfarçado sob outras formas.
- Quanto aos meios de transportá-lo, além da carteira comum cuecas e meias também são às vezes usadas.
- Assunto extenso... melhor parar por aqui.
- Parabéns pela bela abordagem. Um abraço.

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
mais uma aula onde o numismata nos aguça a reflexões monetárias. Isto me leva a um querido/odiado economista que lidava muito mal com seu próprio dinheiro, mas sabia mostrar nos sindicatos quanto os operários que fabricavam, por exemplo, calçados tinham que trabalhar para poder comprar um par de sapatos.
Quando lemos o monumental ‘O capital’ de Marx verificamos como vendemos (pelo dinheiro que tu nos ensina nesta aula sabática de hoje) a nossa força de trabalho.
Uma vez mais obrigado

attico chassot

Leonel disse...

O tal vil metal está presente com tanta intensidade na nossa cultura humana que me é praticamente impossível imaginar uma organização social sem a sua presença!
A forma como lidamos com a economia em nível nacional infelizmente pode transformar nossos bens em água, quando a gestão é incompetente!
É isto o que me preocupa!
Se fizerem m...lá em cima, nós afundamos na m...aqui embaixo!
Excelente matéria, Jair!

J. Muraro disse...

Embora sob o risco de usar um lugar-comum, digo que o dinheiro é um mal necessário. não ha como viver sem ele, não é mesmo? Parabéns pelo texto.