segunda-feira, 16 de maio de 2011

Morte de um idioma


Um amigo meu, colecionador de antiguidades, mostrou-me um documento original datado de 1499 escrito em português da época. Tratava-se de uma espécie de escritura de imóvel na qual uma autoridade certificava que determinada gleba era propriedade legítima de certo cidadão que a havia comprado de outro cidadão ali nomeado. Escrito a tinta sobre pergaminho (pele de cabra tratada), apesar do estilo gongórico, chamou-me atenção porque era perfeitamente entendível, o idioma era o português, não como o conhecemos, mas, ainda assim, qualquer indivíduo alfabetizado poderia compreendê-lo. Naquele momento veio-me à mente a maravilha que é a última flor do Lácio: apesar de longeva, permanece íntegra e consegue comunicar-se através dos séculos.

Mas, parece que agora as coisas não mais serão assim, porque o Ministério da Cultura (MEC) decretou a morte do idioma português. Desde sempre, ouvi dizer que o Brasil tinha duas características notáveis: continuidade territorial e unicidade de idioma, ou seja, não tínhamos regiões dissidentes ou separatistas e a língua falada no país era única de uma ponta a outra. Ainda que o território se mantenha íntegro, parece que a última flor do Lácio é um cadáver insepulto.

Um livro didático distribuído pelo MEC a 4.236 escolas do país estipula que a língua não tem regras, não há o certo e o errado, qualquer que seja a maneira que o indivíduo fala está correta, por exemplo: “todas as escola do Brasil não precisa mais ensiná o portugueis, pois podemo falá de quarquer manera que tá certo”. Sabemos que a língua é dinâmica, que vive de incorporações, novos vocábulos e conotações novas para termos antigos, mas daí a ensinar na escola que não existe uma maneira consagrada de escrever o idioma e podemos transgredi-lo à vontade, é uma diferença cavalar. Para podermos transgredi-lo, como fazia Guimarães Rosa, devemos pelo menos conhecer as regras, devemos pelo menos dominar um mínimo de gramática como nos ensinavam na escola. Mas, como “não há regras” não há também qualquer transgressão a elas, portanto, poderão existir tantos idiomas quantos habitantes do país. Cada um poderá adotar sua forma particular de escrever e falar, vestibulares, provas de seleção e testes quaisquer que sejam, não mais poderão ter provas de português, o MEC diz que esse idioma não existe, o que existe é a maneira que cada um fala ou escreve: uma tal de “variedade linguística popular”.

Vejamos o que um trecho do livro diz: "Você pode estar se perguntando: 'Mas eu posso falar os livro?'. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico". Veja bem, além do liberou geral que o livro apregoa, ainda alerta para um possível patrulhamento gramatical na forma de preconceito linguístico que poderá existir contra o indivíduo que acabou de dizer: “Nóis falemo assim porque nóis gosta e o tar de MEC diz que ta certo”! Pasquale Cipro Neto, além de ter perdido o emprego ainda corre o risco de ser enquadrado como perigoso discricionário linguístico. Que país é esse, Domingos Paschoal Cegalla?

Vejamos esta jóia: “A escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma 'certa' de falar, a que parece com a escrita; e o de que a escrita é o espelho da fala", afirma o texto dos PCNs. Veja bem, MITOS, o MEC afirma que é mito uma forma correta de escrever e falar, e que escrever e falar são formas distintas de expressão, uma não é espelho da outra! Então, me corrijo, não haverá tantos idiomas quantos habitantes do país, haverá o dobro. Cada um de nós poderá ter um idioma para falar e outro para escrever, daí teremos atingido a perfeição!

E o livro do MEC continua: "Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos". Mutilação cultural, cara pálida? Vejamos o que diz o Huaiss sobre cultura: conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social. Talvez o MEC não tenha percebido, mas os conhecimentos ministrados pela escola também são cultura, e não apenas as crenças e costumes que o aluno trouxe de sua comunidade. Então, ensinar uma forma consagrada e formal de escrever e falar não é mutilação cultural nem aqui nem na China, caros jumentos! Pode-se dizer, sem medo de cometer uma estultice, que é contribuição cultural, seus quadrúpedes parvos! Além disso, considerar dialetos os regionalismos, as expressões idiomáticas, as conotações vulgares, as gírias e os neologismos, é forçar a barra num sentido obscuro que não justifica o que se quer impor. Dialetos no Brasil são aquelas variações dos idiomas indígenas, nada a ver com o português que é único e perfeitamente compreensível em todas as regiões do país. O que existe são maneiras regionais de expressão, sonoridades diferentes e termos assimilados pelas diversas regiões, nada mais.

O linguista Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, critica os PCNs: "Há uma confusão entre o que se espera da pesquisa de um cientista e a tarefa de um professor. Se o professor diz que o aluno pode continuar falando 'nós vai' porque isso não está errado, então esse é o pior tipo de pedagogia, a da mesmice cultural", diz com elegância. Eu, deselegante, completo: “Professores de português, rasguem seus diplomas! A última flor do Lácio está morta! Vão se especializar em educação física, agora a estultice é obrigatória e sancionada pelo MEC no Patropi!”

Sempre reclamei que os internautas estavam matando o idioma, mas agora o crime está sendo cometido por um órgão que, explicitamente, tem a finalidade de cuidar dele, então não há escapatória, atingimos o fundo poço. Minha professora, Maria Jamur, a qual me ensinou os rudimentos da gramática deve estar se virando no túmulo, para minha tristeza e pesar. JAIR, Floripa, 14/05/11.

12 comentários:

shan-Tinha disse...

pois é, fico triste também, sempre ensinei aos meus alunos o correto,era muito exigente e na pós o prof disse que não falar o correto não é "errado" porque houve o entendimento se houve, para ele então, o povo fala "diferente", não errado, o pior é que até letrados falam e escrevem errado e ganham altos cargos aí me pergunto: qual a vantagem de se falar e escrever correto? o contraditório é que nos concursos se exige e se cobra o certo da língua ensinada na sala de aula, sempre falava pros meus alunos que o que se aprendia nas aulas era para ser usado sempre dentro e fora e não só pras provas, massss
abraços corretíssimos!

Leonel disse...

Jair, ainda hoje estou postando minha opinião a respeito da ditadura da burrice!
Isto tem que ter um objetivo!
A quem interessa incentivar a ignorância do povo?
Está chegando a hora em que quem for alfabetizado e honesto (para não falar de outra coisa) vai ter que sair deste país!
Feliz é você, que vai tomar outros ares!
Abraços!

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
realmente polêmico isto de aceitar o argumento do ‘nóis podi tudo’. Por outro lado discordo do que chamas unicidade linguistica. Tinhamos mesmo entre nós vizinhos os ‘modos’ catarina e gaúcho de falar, como havia o manaoara, maranhense, o carioca. A Rede Globo foi/é hoje a unificadora do idioma.
Concordo com Guimaraes Rosa e contigo que a língua é dinâmica. Todavia nada justifica o aval do MEC ao livro que levas ‘com justeza’ a inquisição.
Já prelibando os nararares estadunidenses = e por fafor não as batizes de amercanos ou norteamaricanos – desejo uma boa viagem.
Com admiração
achassot

R. R. Barcellos disse...

- Mai nékosomi tasserto, meu? Os fessô, os cademico, kem ker ke foce já divia ditertido eça idehia ginial, cumpadi! brassão pati!

R. R. Barcellos disse...

- Agora, falando sério: os falares coloquiais diferem de região para região e modificam-se no correr do tempo. Quando se quer representar fielmente esses falares na língua escrita nem sempre é suficiente o uso correto do vernáculo, e é preciso, portanto, considerar cada caso em particular.
- Mas daí a soltar a franga, como fez o MEC... vai uma distância. Pobre flor, cujo jardineiro mostra tal incúria e despreparo.
- Abraço.

Unknown disse...

Olá S.Jair?

Como vai?

Saudades de vocês.

Isso é mto revoltante mesmo, agora sim que a educação das escola termina de vez.

Estudamos tanto, nos esforçamos tanto para acabar nisso...

Bjos

Mundo Editorial disse...

Parabéns pelo blog. E pela postagem necessária, urgente e que mostra o descalabro da educação brasileira.
Valeu mesmo!

Anônimo disse...

Caro Beocio

Compartilho contiga desta idignação, acho que alem desta estupidez proposta neste tal livro didático ( eu por muito tempo fui gozado e por como bom gaucho falar MEUS PÉ)temos tambem que lutar conta o inglesismo que tambem toma conta da nossa querida Pindorama.
Abração
Fabio

Léia disse...

Olá, caro Jair. Parabéns novamente pela excelente postagem. O assunto é interessantíssimo e vale a pena "gritar". Sou professora e estou indignada. Por que a educação rigorosa da Coreia e do Japão dão excelentes resultados? A educação no Brasil foi deixada de lado há muito tempo. Realmente, a quem interessa um cidadão consciente, que sabe discutir, pensar, entender e defender seu país? Para os governantes não interessa esse tipo de cidadão... eles querem o analfabeto, os mano, as mina, os que pedem na lanchonete dois pastel e um chops.
Terminei em 2007 a graduação para professora do ensino fundamental, fiquei indignada nos três anos de curso, pois moro em Santa Rita do Sapucaí-MG e alguns professores da faculdade defendiam um tal de "regionalismo" existente (bicicreta, crube, chicrete, etc), ensinando a nós, futuros docentes, que não podemos corrigir o falar e o escrever da criança, pois isso poderá gerar preconceito e diminuição da auto estima. Sempre "bati de frente" com esses professores e, para mostrar meu protesto, minha monografia foi sobre o ensino da gramática desde os anos iniciais , uma das professoras que defendia o "regionalismo" era a supervisora do curso e estava na banca avaliadora. Minha monografia levou nota 7 (o mínimo para passar). Fiz (e vendi) outras duas monografias para colegas da faculdade e o resultado foi nota 10!
Terminei a faculdade e lecionei apenas 1 ano. Hoje dou aulas de reforço em minha casa para alunos carentes que querem realmente aprender o que é correto. As escolas não dão autonomia para o professor ensinar, corrigir ou educar, além de ter um salário de "M" (aqui em Santa Rita o salário de professor de ensino fundamental gera em torno de R$ 1.000,00 - em 2007 era R$ 750,00 por mês, uma vergonha!). Amo lecionar, mas agora, com essa nova cartilha do MEC, nem pensar em pisar numa sala de aula. Daqui a pouco as escolas não precisarão mais dos professores!
Hoje trabalho com festas infantis e tiro muito mais que isso em um único final de semana de decorações.
Triste fim da língua portuguesa!

Renato Folhadela disse...

É meu amigo, obrigado por de forma brilhante traduzir nossa indignação! Esta semana assistí na tv uma reportagem que abordava este assunto e embora eu não seja um expert em língua portuguesa falada ou escrita, fiquei perplexo em saber que a oportunidade que temos de aprender alguma coisa está sendo considerado uma perseguição. Se não for na escola, onde mais nossos jovens poderão aprender nossa língua?

Camila Paulinelli disse...

Olá,
Sempre bati na mesma tecla que o problema do Brasil é a falta de educação. Triste esta informação deplorável de que ao invés de incentivar a cultura, a aprendizagem correta de nosso idioma, o governo está incubando com enorme falha o semi-analfabetismo brasileiro. Esta é uma maneira do governo dizer: o brasileiro é ignorante mesmo, então vamos dar um jeito de fazer isso soar como “legal”. Vergonhoso! Mais uma vez, excelente texto!
Beijos da nora,

RILDO disse...

Diante desse fato, vou estudar cada vez mais a língua portuguesa até a ponto de ser taxado de purista, preciosista ou qualquer outro termo. O que importa para mim é que enquanto eu viver ninguém me roubará o direito de falar, ler e escrever corretamente o meu idioma. Essa é a atitude mais forte que podemos ter como resposta a esses falsos defensores do povo.