William L. Shirer,
no livro “A queda da França”, no qual ele mostra com minudências os motivos que
levaram a França cair frente à invasão de Hitler em 1940, faz uma análise
profunda de como os Estado francês se comportava no entre guerras. Shirer,
historiador fecundo e testemunha presencial do status francês, consegue passar
ao leitor com grande acurácia como a máquina estatal francesa e os funcionários
públicos conduziam a organização interna das repartições responsáveis pelos
serviços estatais, prestados tanto aos cidadãos como às empresas privadas e
outros órgãos.
A burocracia
francesa era algo pesado e cheio de caminhos tortuosos, antiquados,
irredutíveis e onipresentes, mas extremamente séria e eficaz. Mostra Shirer que
a burocracia estava a serviço do Estado e do cidadão e não do governo, qualquer
que fosse; estava seriamente comprometida com resultados e com a normatização
dos trâmites de tal modo que era impossível que um administrador (presidente,
primeiro ministro ou outra autoridade de primeiro escalão) de maus bofes
conseguisse desviar os objetivos aprovados por uma administração anterior, por
exemplo. A burocracia seguia os planejamentos traçados e o Estado estava sempre
em funcionamento “faça sol ou faça chuva”, isto é, independente de ideologias
ou desvios na condução das políticas internas. Um orçamento aprovado para uma
determinada obra (construções de aviões de guerra, por exemplo) não era
desviado de sua destinação e não se exauria em desvãos de órgãos públicos.
O historiador demonstra
cabalmente que a máquina militar francesa estava azeitada e pronta para o combate
quando da invasão nazista, o que tornou a vitória alemã possível e até inevitável
foi a falta de crença e de motivação dos militares franceses na vitória.
Pois bem, no Brasil
atual burocracia é quase um palavrão, o cidadão comum quase sempre culpa a
“burocracia” (aspas pejorativas neste caso) em tudo que não lhe é favorável
quando tem que tratar assuntos que envolvem órgãos estatais. A maioria dos cidadãos comuns acha que burocracia são
normas criadas para controle, mas que na prática acabam interferindo na
agilidade dos processos porque criam certas restrições e procedimentos
incabíveis e anômalos. Na verdade o que toca o cidadão são as necessidades de
carimbos, de assinaturas, de aprovação de alguém que nem sempre está presente,
de liberação do chefe do setor e aprovação da diretoria. Precisamos estabelecer
o que é essa tal burocracia e para que serve.
Até os anos trinta,
antes da revolução que levou Vargas ao poder, não existia burocracia no país.
Isso significava que não havia normas, não havia diretrizes, não havia regras,
nada orientava o cidadão ou a empresa que queria regularizar uma situação
qualquer. Aos órgãos públicos, ministérios, autarquias e empresas públicas, não
eram atribuídas funções específicas que determinavam o que cada um devia fazer
para a máquina estatal funcionar, as funções se sobrepunham, misturavam ou
inexistiam, era o caos que fazia do Estado regulador, legislador e executivo
uma entidade fictícia. De forma que certidões, atestados, certificados,
declarações, ofícios e papéis necessários ao trâmite da vida empresarial ou
pessoal não estavam definidos nem na forma nem no conteúdo, muito menos na
responsabilidade de qual órgão devia emiti-lo e qual o processo a ser usado.
Por exemplo, quem emitia um passaporte? Como era a forma e conteúdo de uma
certidão de nascimento? Qual a validade de um certificado de conclusão de
curso? Como seriam as escrituras de imóveis? Uma cédula de identidade emitida em
um estado da Federação valia em outro estado? Como os órgãos públicos deviam
receber os documentos para validação de um ato cível? Quais eram os órgãos que
deviam ser procurados no caso de emplacamento de veículos? Quais órgãos
resguardavam o cumprimento das leis? Até onde ia a obrigação e responsabilidade
de cada órgão público? Pois é, no Brasil varonil daqueles anos, não havia
respostas simples para a maioria dessas perguntas e para muitas outras que
surgissem em função das atividades corriqueiras do dia-a-dia.
Foi a partir da
vontade política do ditador Vargas que nos anos 30 o Estado passou a intervir
na economia, na organização da sociedade civil e recriou a máquina estatal,
além de centralizar o poder, transformando-se numa administração burocrática –
e aqui burocrática nada tinha de pejorativo. O Estado tornou-se o principal
interventor no setor produtivo de bens e serviços do país, tornou-se um estado
normativo dos trâmites civis.
O governo,
travestido de zelador das normas estatais, instituiu atividades para
autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, bem
como normatizou tudo aquilo que o cidadão e as empresas não sabiam ou não
tinham como saber como funcionava. Por exemplo, as certidões de nascimento
passaram a ter cartórios responsáveis pela sua emissão; passaram a ter uma
forma e um conteúdo definidos; tiveram sua validade estendida a todo território
nacional, coisa que anteriormente não existia. As empresas passaram a conhecer
e ter acesso aos documentos necessários e indispensáveis ao seu funcionamento.
A ABNT só seria criada em 1940, mas as normas já existiam então.
Podemos afirmar sem falar
necedade que o processo de formação e desenvolvimento do Estado brasileiro teve
começo ainda no período colonial, onde existia uma relação tutelar entre o
Estado comanditário e os empresários. Entretanto, nos anos 30 que se dá o
nascimento do Estado Burocrático, fortemente centralizador e intervencionista
e, ao mesmo tempo, de uma classe empresarial altamente dependente de autorizações,
proteções e favores oficiais. E daí podemos tomar a liberdade de inferir que
essa burocracia estatal cresceu tanto que comeu o dono, isto é, a burocracia
criou mais burocracia, de forma que as normas, regulamentos e papéis
tornaram-se mais importantes que o fim a que se destinavam. Vou dar um exemplo
pessoal. Estacionei o carro em vaga para
idosos numa via pública e o guarda me multou na hora. Mostrei meus
documentos provando que era idoso, mas alegação do guarda é que eu não possuía
uma identificação emitida pela Prefeitura, a qual eu devia dar entrada no
pedido, acompanhado de fotografia e atestado de residência. Neste caso o
importante era o papel (burocracia) e não o status e a condição do
contribuinte, ou seja, se você tem um papel emitido por um órgão público, você é idoso, do contrário não importa
sua aparência e até sua identidade. Esta exigência vale também para
deficientes, não basta ser e usar cadeira e rodas, por exemplo, tem que provar
através de papel assinado por autoridade.
Então, embora a
burocracia fosse criada para azeitar a relação do estado com o cidadão, a
burocracia do estado brasileiro é um arremedo do que deveria ser, tornou-se um
monstro multifacetado e voraz que se alimenta tanto de papéis e carimbos como
da alma do povo, e ainda custa bilhões para os cofres públicos. Tenho dito.
JAIR, Floripa, 16/06/12.
8 comentários:
Olá,
Desde setembro de 2011 estou em processo de abertura de uma importadora aqui no Brasil. Iludida com a facilidade que tive nos EUA em abrir meu negócio, o que foi feito em um dia, havia me esquecido da morosidade da máquina estatal brasileira. Não fosse por minha vontade que ultrapassa qualquer barreira, já tinha desistido no meio do caminho. São tantos órgãos que precisam dar anuências, etc... O que quero é pagar imposto e trabalhar. Mas o pior vilão do empresário é o próprio governo. Além da preocupação em prosperar o negócio, o empresário tem que se esmerar para começar o negócio. Hoje, depois de nove meses estou terminando o processo de abertura. Depois de tanta BUROCRACIA para apenas começar meu negócio, terei que amargar mais BUROCRACIA para levá-lo adiante. O governo tem que abrir mais os braços e deixar o povo crescer. Desamarrar os nós, gerar mais empregos, arrecadar mais impostos e fazer um bom uso deles também. E principalmente: NOS DEIXEM TRABALHAR!
Beijos
A burocracia tem a idade da civilização. E tem a cara da cultura de cada povo. Alhures, facilitando o empreendedor; aqui, alimentando o ego de agentes públicos ao dar-lhes poderes sobre o cidadão comum. Pobre cidadão...
Abraços, amigão.
Bela postagem , meu amigo! Sempre aprendo aqui em seu espaço.
P.S.: Acurácia. Mais uma palavra para meu vocabulário!
Muita paz!
Acho que você foi extremamente educado ao falar desse assunto... Mas não tem quem não se revolte com essa burocracia travada. É tudo muito difícil, você leva um documento solicitado, chega lá pedem o outro que tem de vir não sei de onde e carimbado por não sei quem. Então você leva e espera mais um bom tempo até ser encaminhado para o devido lugar lugar. Volta para pegar e ainda não chegou. E ficamos todos pra lá e pra cá. Dias, semanas.
Entendo o caso da Camila, pois também há anos abri uma firma. É aquela coisa...deixaram o monstro crescer e agora não sabem o que fazer com ele. Mas um dia talvez a coisa se desburocratize um pouco. Aleluia, quando acontecer. Gostaria de estar viva!!
Abraços, Jair
Tais
O problema da burocracia brasileira é que tudo tem que ser comprovado em papel e mais papel! Em nada se confia se não estiver escrito e confirmado em um pedaço de papel!! Hoje mesmo passei por isso... sou funcionária pública, e um outro órgão me enviou uma solicitação pedindo uma determinada liberação, e eu pedi que me enviasse via e-mail mesmo um parecer favorável para que houvesse a tal liberação, só para 'constar' que está de acordo. Entretanto, minutos depois, a pessoa me liga dizendo que o chefe dele pediu para eu enviar um Ofício pedindo esse parecer (com o anexo da própria solicitação dele), para aí depois me mandar novamente... não sei se consegui explicar direito. Mas é algo que só bastaria vir com um 'ok' deles, e ele queria que chegasse a mim, e eu fizesse voltar nele, para aí depois ele me mandar novamente, eu confirmar, e autorizar, com mais um papel d volta para a pessoa!! Pra quê? Só pra não agilizar as coisas, as coisas simples desta vida!! Não é complicado, o Brasil que complica TUDO!
Muito boa sua aula, mostrando como o que era uma virtude num país bem organizado se tornou uma aberração no Brasil!
Como dizem as más línguas, aqui, nem a máfia deu certo!
Assino embaixo de tudo o que escrevestes!
Abraços, Jair!
Valeu Jair,
parece que senso comum tem razão: "A burocracia é um mal necessário". No blogue desta sexta-feira, dia 15, abri uma campanha para qual se pede adesão de pesquisadores: protestar contra absurdos que se faz nos CEPs — Comitês de Ética na Pesquisa. O mote é: "Ajude a sermos éticos sem burocracia!"
Com admiração pela oportuna exposição,
attico chassot
Muito bom!
Eu particularmente 'detesto' burocracia ...
Parabéns pela postagem...
Abraços!
Postar um comentário