sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

AS MAIS BELAS FLORES DO PLANETA



Durante alguns anos, quando morei em casa térrea, fui um apaixonado colecionador de orquídeas. Montei um espaço apropriado em meu quintal ao qual dei o nome de “Orquidário Dedo Verde” em homenagem ao livro “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon. Li tudo que podia sobre essas fascinantes plantas, visitei orquidários e exposições, frequentei sociedades orquidófilas, comprei, colhi, plantei, reproduzi, importei e cuidei dessas que são as mais belas flores que a natureza já produziu. Confesso que, por um bom tempo, mergulhei de corpo e alma no hobby, fui um orquidófilo dedicado e imerso até o pescoço na botânica e, especialmente, na família Orchidae, que é onde estão classificadas as orquídeas.
A Orchidae é, provavelmente, a maior família das angiosperma. Lembrando que angiospermas são plantas que produzem sementes em um ovário, como as rosas, por exemplo. A ciência já descreveu, até o momento, 25 mil espécies de orquídeas, sendo atribuída aos orquidófilos a produção da metade desse número, por hibridização.

Vanilla subindo na hospedeira

Mas, o que é uma orquídea? É uma planta superior – que possui raízes, caule, folhas, flores e sementes – distribuída por todos os continentes à exceção da Antártida. Possui flores que além de três pétalas geralmente separadas e coloridas, têm três sépalas, também coloridas, que fazem parte do conjunto. E é essa flor, geralmente muito atraente, que define a planta, TODAS as orquídeas têm flores com estas características.

Flores da Vanilla

A variedade de tamanho da planta, as formas e as cores das flores e os habitats onde elas são encontradas, fascinam o homem desde que este descobriu a existência de tão bela criatura. Existem plantas de mais de três metros de altura como a Selenipedium; com vinte metros ou mais como a Vanilla, – de cujas sementes se extrai o produto baunilha usado na culinária e fabricação de doces - a qual forma uma espécie de cipó que se agarra às arvores; e a Ornithocephalus, por exemplo, que não passa de 5 centímetros a planta, com flores de seis milímetros. Em relação ao ambiente que as orquídeas vivem, pode-se classificá-las em três grupos, embora algumas espécies apareçam em mais de um grupo, às vezes: epífitas ou dendrobatas, são as que nascem em árvores; terrestres, no chão, que pode ser areia, humus ou terra; e as rupestres que se desenvolvem em pedras. Todas são necrófitas, ou seja, suas raízes alimentam-se de matéria morta, não procedendo, portanto, o hábito popular de chamá-las “parasitas”, pois estas são uma família de plantas que prejudicam seu hospedeiro alimentando-se de sua seiva.
Dentro desse universo magnífico e grandioso, fiquei fascinado pelas orquídeas exóticas e pelas mini-orquídeas, e a elas dediquei meus estudos mais profundos, meu tempo mais precioso e minhas buscas mais tenazes.


Dockrillia cucumerina, a jóia da corôa de qualquer orquidário
Nas minhas pesquisas livrescas descobri aquela que a maioria dos orquidófilos considera a mais estranha do mundo, e, para meu gáudio, uma das menores também: Dockrillia cucumerina, anteriormente catalogada como Dendobrium cucumerinum, também chamada “orquídea pepino” porque suas “folhas” têm a forma dessa cucurbitácea. Lembrando que as cucurbitáceas são todas as abóboras, melões, melancias, pepinos e semelhantes. Pois bem, essa raridade só vive numa certa porção de floresta tropical no nordeste da Austrália. Que fazer para consegui-la? A solução é viajar para a Austrália, é claro! Foi o que fiz. Aliei visita a meu filho que, por coincidência, morava no nordeste australiano, ao meu desejo de possuir tal excentricidade, viajei para lá e consegui em um orquidário, quatro mudas da cucumerina, foi o ápice de minha busca, foi como encontrar a pedra filosofal para os alquimistas.


A delicadíssima Ornithocephalus iridifolius
Ainda bem que não é só viajando para o outro lado do mundo que se consegue essas rarezas. Uma das mais fascinantes e estrambóticas orquídeas é a que tem o estranho nome de Ornithocephalus iridifolius, porque suas pequenas flores de seis milímetros têm semelhança extraordinária com a cabeça de um passarinho, daí o ornithocephalus do nome. Pois é, a literatura coloca algumas espécies dessa fugidia criatura no sul do Brasil, sem especificar o tipo de floresta, a preferência climática ou a altitude que as plantas são encontradas. Acontece que eu morava no norte da ilha de Santa Catarina onde existe um trecho bem conservado de mata atlântica, local no qual eu fazia caminhadas ecológicas, buscava material para esculturas e apreciava as inúmeras orquídeas que lá abundam. Numa dessas incursões encontrei a iridifolius em toda sua pequenez e beleza, em um galho caído, praticamente no quintal de minha casa. Trouxe para minha coleção duas mudas e deixei lá mais de uma dúzia de exemplares. Colecionar sim, depredar a natureza não.
Como nem tudo acontece como a gente planeja ou deseja, um dia mudei de casa térrea para apartamento e minhas orquídeas tiveram que ser realocadas para o sítio de uma amiga, onde ora se encontram felizes e saudáveis como merecem estar. JAIR, Floripa, 25/02/10.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O DICIONÁRIO


Acabo de ler a história do maior e mais completo dicionário do idioma inglês, o “Oxford English Dictionary”, conhecido como OED, o qual levou setenta anos, de 1858 a 1928, para ser confeccionado e registra absolutamente todas as palavras da língua. Contém 414.825 termos definidos, cada um com pelo menos um exemplo de utilização retirado da literatura publicada em língua inglesa. Consumiu o esforço intelectual de milhares de pessoas, a maioria, voluntárias anônimas, que participaram da criação conjunta desse monumento.
O conceito que norteou a feitura de algo tão grandioso, tão fundamental e tão impressionante deveria ser o mesmo para qualquer língua de qualquer país: Não há termos bons ou ruins; não deve haver preconceito para com estas ou aquelas palavras; um dicionário deve ser o registro de todos os vocábulos que desfrutam qualquer tempo de vida reconhecível num idioma padrão. No Brasil temos grandes e importantes dicionários, como o Houaiss, por exemplo. Contudo, ainda não nos foi apresentado um que se compare ao OED, e me fascina a ideia que venha a existir um compêndio definitivo que só necessite de atualizações de tempos em tempos para manter sempre o registro preciso, a referência última da Flor do Lácio.
O coração desse hipotético livro, que poderia chamar-se Dicionário Definitivo de Português, o qual possivelmente chamaríamos de DDP, seria a história do período de vida desde o nascimento, passando pela evolução, de toda e qualquer palavra. Lembrando que o nascimento da palavra seria seu uso em qualquer texto desde que a língua iniciou a ser escrita.
Algumas palavras são antigas e ainda existem; outras são novas e desaparecem, têm vida efêmera; outras, ainda, surgem durante um período em que seu emprego se justificou, desaparecem, para surgir mais tarde, às vezes com conotação diferente. Mas todas as palavras constituem partes válidas da língua portuguesa, todas merecem ser conservadas num dicionário. A questão a ser considerada é: Se alguém precisa verificar uma palavra, ela deve estar lá, não importando quando existiu ou se sua vida foi efêmera como a de uma mosca.
É importante saber o momento exato em que o vocábulo apareceu, ter um registro de seu nascimento. Não quando foi pronunciado pela primeira vez, que isso é impossível, mas sim quando foi escrito pela primeira vez. Impraticável? Não. Muito trabalhoso e difícil, sim. O Houaiss já registra com grande sucesso a história de seus verbetes. A exemplo do OED, nosso DDP teria que contar com a adesão de milhares de mentes dispostas a ler e coletar, desde os primeiros registros em Portugal talvez, todas as palavras, com seus significados originais, derivações de uso em locais diferentes, evolução com o tempo e emprego diferenciado de autores. Trabalho ciclópico só possível com um planejamento minucioso, sério e comprometido de autoridades, filólogos, especialistas nas mais diversas áreas, bibliotecas públicas e particulares, escritores, editoras, universidades e, talvez mais importante, colaboração maciça da Academia Brasileira de Letras a qual centralizaria a coordenação e o comando dos trabalhos.

Claro que, o trabalho de pesquisa, coleta, cotejo e registro não se restringiria ao Brasil e Portugal, haveria necessidade de garimpar em todos os países que falam português, seja como língua principal, a exemplo de Angola e Moçambique ou como secundária, como o Timor Leste e a antiga colônia de Goa na Ásia. O Dicionário de Oxford se preocupou em coletar termos em todas as colônias e ex colônias do antigo Império inglês. Assim, desde Austrália e Nova Zelândia como Guiana e Quênia, passando pelo Canadá e Trinidad e Tobago contribuíram com sua cota de garimpo.

Obviamente, nos tempos atuais será muito mais fácil organizar a estrutura de coleta de termos do que foi para os ingleses, a internet está aí para isso. Não haverá necessidade de disponibilizar os livros antigos e raros para os possíveis leitores, basta escaneá-los e colocar em bibliotecas virtuais onde os leitores poderão consultá-los. Assim, muito tempo será poupado e, ao invés dos setenta anos gastos pelos ingleses, que tal aventarmos a hipótese de apenas sete anos?

Na minha concepção, haveria a versão em papel, em CD e virtual on line, de modo a oferecer um leque de opções para os usuários, sejam conservadores apegados ao papel, sejam mais internéticos acostumados à informática e suas facilidades.

Acredito, inclusive, não ser original esta minha ideia, que não sou o primeiro a pensar esse projeto, contudo, mesmo sendo assim, quero cutucar os formadores de opinião e a intelectualidade deste País para tomarem a iniciativa, para que iniciem esse ambicioso empreendimento que, sem dúvida, será a ferramenta máxima a qual tornará possível, enfim, a unificação da Última Flor do Lácio. JAIR, Floripa, 14/02/10.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

ZÉ DIABO, VÍTIMA DA INDIFERENÇA E DO TEMPO

Zé Diabo esculpindo o Paredão
José Fernandes, o Zé Diabo, é um destacado escultor da cidade de Orleans, Santa Catarina. Hoje com 80 anos, já aposentado, afastou-se da escultura, mas curte escrever como atividade lúdica. Zé Diabo ainda vive na pequena cidade e é simpático e acolhedor com turistas que, quase diariamente, o procuram para estabelecer contato com o artista afamado. Os visitantes se extasiam com a obra que Zé confeccionou: mais de 160 metros quadrados de área esculpida em pedra viva, em painéis os quais mostram desde a criação do homem até os últimos profetas do Antigo Testamento. Tive a honra ver a obra e conhecê-lo, bater papo e até ganhei um livro com sua biografia, autografado.
A arte de Zé Diabo também está registrada nas igrejas. Na capela de São Bom Jesus de Iguape, na localidade de Rio Belo, está a mais recente obra: o painel central com a crucificação, morte e ressurreição de Cristo e o altar da igreja. Detalhista, o artista mostra com orgulho as expressões do rosto de cada um de seus personagens.


Interior da igreja de Santo Antonio decorada por Zé Diabo.
Interessante é que o escultor que se dedica à arte sacra seja conhecido por um tão pouco santo apelido, Zé Diabo. Segundo ele mesmo, seu apelido nasceu depois de um de seus trabalhos no qual aparece São Miguel Arcanjo lutando contra Lúcifer, numa antiga capela onde ele criou um diabo hiper realista assustador com chifres, tridente e tudo mais. Para os paroquianos, Zé só podia ter algum acordo com o Demônio para criar obras tão belas e, ainda, colocar o próprio dentro da casa de Deus. O apelido pegou, e Zé sente certo orgulho dele, embora seja um homem temente a Deus e caridoso.


Nascimento de Jesus
A história artística de Zé Diabo começou quando ele, filho de cortador de pedra, auxiliava seu pai numa pedreira próxima ao rio Tubarão. Desenhista intuitivo exímio e religioso praticante, Zé olhava para o paredão de arenito à margem esquerda do rio e imaginava esculturas colossais, como as do Egito antigo, que contassem a história bíblica. Depois de terminar o ginasial, Zé foi contratado para pintar paredes e cenas sacras nas igrejas e capelas da região, coisa que fazia com prazer, mas sempre pensando nas esculturas que queria criar.
Na década de oitenta, Zé recebeu subsídios de industriais da região e pode começar sua obra máxima. Primeiramente, pensava-se que o trabalho do Zé pudesse levar um ano e, para isso, os custos foram calculados. Demorou oito anos.


Os Profetas
Zé, hoje, está meio desiludido pelo pouco caso que a comunidade Orleanense dá a sua obra prima, as esculturas estão sendo tomadas pela natureza e não recebem a menor manutenção, lamentavelmente.
Bromélias, samambaias, líquens e trepadeiras se imiscuem e brotam sobre as figuras bíblicas dando-lhes uma aparência antiga como as ruínas maias do México e da América Central.


A Arca da Aliança
Essa retomada da natureza sobre aquilo que já foi selvagem, embora seja normal, em nada contribui para melhorar a criação humana, pelo contrário, o que o homem criou um dia reverterá para o meio de onde se originou. É uma lei que não pode ser revogada, apenas retardada sua aplicação. Zé, conformado, reconhece que sua obra maior um dia será apenas lembrança, um dia a natureza recuperará o espaço que dela foi roubado.


Passagem do Mar Vermelho
Autodidata, Zé desenvolveu suas técnicas de desenho, pintura e escultura em duas dimensões, como ele mesmo diz, mas agora se dedica apenas a escrever algum conto, alguma crônica e “causos” ouvidos, mas, dentro do que ele escreve, às vezes, vislumbra-se a definição de sua busca pelo meio de expressão que mais usou e que o consagrou como artista: “Tentei escrever na areia, não deu certo, a onda apagou tudo. Tentei na água ela não aceitou, engoliu todas as vírgulas e pontos de interrogação. Experimentei no papel, mas ele se recusou dizendo que nele só escreviam pessoas letradas, e eu não era. Pensei então em escrever no ar, mas este é invisível, logo não se veriam as letras. Então recorri ao fogo, mas ele foi cruel e queimou tudo. Comecei a ficar desesperado, eu tinha que escrever algum recado para o povo, eu sentia que era preciso.
Foi então, que me lembrei da pedra. Deu certo, ela aceitou”.


Zé Diabo e eu na sua casa em fevereiro de 2010.

O que mais entristece quem vê as obras de Zé, não é somente o fato que elas um dia desaparecerão no meio do mato, mas, sobretudo, a realidade que ele não deixou seguidores, discípulos ou imitadores, seu legado morrerá com ele. Nascido numa pequena cidade onde manifestações artísticas de qualquer natureza são como excentricidades ou aberrações, nenhum movimento de esculturismo surgiu a partir de suas obras, ele é único e ninguém o seguirá. O tempo cobrará a indiferença daquela comunidade. JAIR, Floripa, 21/02/10.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A EPIFANIA DE DANTE

Dante Castelani, o qual tenho a honra de considerar amigo, é um artista muito talentoso. Com mais de 20 anos como escultor criando obras com suavidade e movimentos de sensualidade marcante, ele está entre os grandes escultores do País. Radicado em Floripa, onde, numa oficina bem montada executa suas obras, vive exclusivamente de seu trabalho. Dedica-se a memorizar com criatividade e técnica apuradas, principalmente formas femininas, em pedra, madeira e terracota. Suas esculturas em pedra sabão e alabastro são cotadas em dólares e muitas delas encontram-se em casas particulares e órgãos públicos na Europa e nos EUA. Hoje, pode-se dizer, Castelani é homem e artista realizado, mas nem sempre foi assim. Nascido e criado em Porto Alegre, Castelani, de origem modesta, trabalhou desde muito jovem sem escolher onde nem em quê, visto que o trabalho fazia parte da vida e esta só era possível através daquele. Nem de longe tinha qualquer contato com criação e arte.
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Já adulto, de espírito empreendedor que era, montou uma modesta indústria de conservas onde, depois de anos de labuta pesada, já empregava quinze operários. Sua empresa estava andando bem, até que um desses malfadados planos econômicos de “salvadores da Pátria”, a colocou a nocaute. Mais precisamente o Plano Sarney, que congelou preços das mercadorias, confiscou bois no pasto e emitiu moeda em profusão acelerando a inflação, foi o perverso algoz que quebrou as pernas de sua indústria e o colocou na lista dos perdedores.


Sem dinheiro, com dívidas insaldáveis e sem perspectivas, ele caiu em depressão profunda; recolheu-se a sua casa onde vegetou por alguns meses, sem ver pessoas, sem ver televisão, sem ler jornais, sem qualquer atividade. Depois de algum tempo, como terapia ocupacional auto imposta, muniu-se de formão e martelo e, trabalhando pedaços de madeira de demolição, começou a dar formas a esse material. Esculpia figuras, principalmente de mulheres nuas. Por um desses casuais encontros que a vida promove, um colecionador de arte de São Paulo deparou-se com as obras de Castelani e comprou-as todas, com entusiasmo de quem encontrou uma mina de ouro. Foi aí que Castelani teve sua epifania: Ele nunca fora industrial ou comerciante, ele era um ESCULTOR NATO!


Consciente de sua recém descoberta virtude, partiu para aperfeiçoar sua técnica, diversificar o material a ser usado e colocar suas criações “na vitrine”, em exposições coletivas e individuais. Um grande talento, até então insuspeitado que se escondia embaixo do enganoso verniz de empresário, aflorou com toda força.
Igual a um conto de final feliz, a sociedade perdeu o empreendedor frustrado e ganhou o escultor que retira da matéria bruta formas glamurosas e sensuais que lá se escondem.
Para felicidade de Floripa, foi aqui que o Dante encontrou um nicho artístico vago e para onde se mudou com a família, cinzéis, formões, martelos, cabeça cheia de ideias e formas e mãos prontas para a criação. Como estamos carecas de saber, esses planos econômicos malucos normalmente trazem caos e insegurança, mas, excepcionalmente, podem trazer algumas ótimas surpresas. O profícuo escultor Castelani é prova disso. JAIR, Floripa, 13/02/10.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A QUESTÃO CHRISTIE, ou COMO O IMPÉRIO BRASILEIRO ENGOLIU UM SAPO BRETÃO


Em 1860 as relações entre o Império brasileiro e o inglês não eram assim tão cordiais, os ingleses, por puro interesse comercial, exerciam pressão política para que o Brasil abolisse a escravidão no país. Inclusive, o “Império onde o sol nunca se põe” não hesitava em usar sua extraordinária armada que cobria “os sete mares” para exercer pressão do mais forte sobre o mais fraco, esperando manter e até ampliar seu mercado consumidor no território brasileiro com a criação de uma classe de trabalhadores assalariados. Além disso, com o capitalismo industrial se expandindo pela Europa, havia agora concorrentes que abocanhavam fatias de mercado antes pertencentes aos ingleses, e estes lutavam com todos os meios para não perderem consumidores. Até na América do Sul, o Paraguai com suas indústrias de tecidos era visto como uma ameaça ao comércio inglês, e isto era imperdoável, segundo a visão mercantilista do império dono dos mares.
A tensão entre os dois países aumentou quando, em abril de 1861, um navio britânico, o Prince of Wales, encalhou em Albardão, localidade no sul do Rio Grande do Sul. A região de Albardão é conhecida com cemitério de navios porque possui litoral em forma de rampa, traiçoeiros bancos de areia e fortes ventos que empurram os navios para a costa, onde encalham. E, barcos encalhados, passam a ser objeto de saque por parte dos habitantes da região, conhecidos como piratas de terra, que, à noite, costumavam fazer sinais de luzes para atrair os navios. Provavelmente foi assim que o Prince of Wales encalhou. O barco inglês foi depenado de sua carga e dezesseis de seus tripulantes foram trucidados. Os sobreviventes procuraram o cônsul inglês que residia na cidade de Rio Grande, e este se deslocou até o local do encalhe onde encontrou os corpos do capitão, sua esposa e dois filhos.
O incidente era gravíssimo, e a Rainha Vitória que não estava propensa a levar desaforo para casa, ameaçou com sua poderosa marinha se o Brasil não pedisse desculpas e indenizasse o navio saqueado. Mas o Imperador Don Pedro II, com arrogância de monarca ofendido se recusou a qualquer atitude que, remotamente, desse a impressão de submissão. Disse, lá com seus botões, que não pagaria coisa alguma e não pediria desculpas.
No ano seguinte, a situação agravou-se ainda mais. Marinheiros ingleses bêbados, de folga na zona portuário do Rio de Janeiro, entraram em luta corporal armada com cidadãos brasileiros por causa de prostitutas e foram presos. O embaixador inglês, William Dougal Christie, cheio de empáfia que lhe impunha o cargo de embaixador da maior potência marítima do Planeta, exigiu a soltura de seus marinheiros e insistiu na indenização do navio saqueado, no pedido de desculpas oficial e na punição dos policiais envolvidos na prisão. Don Pedro, como seu homólogo bíblico, negou pela segunda vez reconhecer as reivindicações inglesas.
Acontece que a Inglaterra se sentia (e era) tão poderosa que se recusava até a que seus cidadãos se submetessem à justiça brasileira, e, para isso, havia instituído um tribunal no Rio de Janeiro para julgar os britânicos que infligissem as nossas leis.

Em 1863, numa retaliação às inadmissíveis atitudes do Brasil, a poderosa esquadra britânica abordou e arrestou vários navios da nossa frota em alto mar, além de ameaçar bombardear a capital do Império, o Rio de Janeiro.
Diante dessa agressão, o Imperador brasileiro se viu ofendido e rompeu relações diplomáticas com a Inglaterra, bem como solicitou intermediação do rei Leopoldo da Bélgica, sobre a “Questão Christie” que já se arrastava por dois anos. O surpreendente é que, mesmo sendo tio da rainha Vitória, o rei Leopoldo deu ganho de causa para o Brasil, mas, a essa altura, o embaixador Christie já havia obrigado o Monarca a pagar a indenização exigida pela potência maior. Ficou no prejuízo o Imperador que havia, por duas vezes, se negado a reconhecer a exigência dos ingleses.
O insólito desse quid pro quo é que as relações entre o Brasil imperial e seus vizinhos paraguaios se deterioravam dia a dia insuflados pela Inglaterra, de modo que Don Pedro, deglutindo o batráquio, se viu obrigado a reatar relações com os ingleses, sem as quais não poderia adquirir armas para a guerra que se avizinhava. E, a Albion, que não prega prego sem estopa, forneceu armas para as quatro nações beligerantes e ficou assistindo de camarote o desfecho que, qualquer que fosse, lhe seria favorável. E tudo continuou com dantes no quartel d’Abrantes. JAIR, Floripa, 12/02/10.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O SUPER-HOMEM VEM AÍ

Está nascendo um super ser humano. Mas, ao contrário do super-homem de Nietzsche, este novo ser não é uno, não é uma unidade viva isolada, trata-se de um organismo coletivo mais complexo e mais forte que seus componentes. Também, ao contrário do que Arthur C. Clark escreveu em “2001, uma odisséia no espaço”, onde mostra astronautas travando uma luta mortal contra o computador - a versão moderna do confronto entre criador e criatura, que já inspirara clássicos como Frankenstein, - o super-homem que se avizinha é mais uma interação homem-máquina que qualquer outra coisa.
Este conjunto animado e consciente não é composto apenas de pessoas, mas de combinações que interagem, ligam, comunicam e somam homens e sistemas de transportes de energia, de comunicação, de informações e de interesses globais. A super-humanidade está longe de ser apenas um monte de gente e seus recursos. Sistemas de túneis, estradas, condutos de água, fios elétricos, chips, próteses, tubulações de gás e de ar condicionado, fios telefônicos e de fibra ótica, raios laser, aviões, satélites, trens bala, internet, computadores, GPS, e outros elementos de ligação vão encerrando os seres humanos numa teia de extrema complexidade e agregada de valores cada vez mais altos. Essa soma de coisas, cada vez mais, aumenta a sinergia do conjunto homem-máquina, tornando o homem-ser-isolado dependente, beneficiário e peça capital do todo.
Acreditemos ou não que as convergências da super-humanidade tendem a se tornar conscientes além de nós, da nossa consciência individual, não será surpresa se esse novo organismo vier a mostrar comportamento inesperado, diverso do comportamento do homem comum. É lícito presumir que o comportamento do todo seja diferente do comportamento das partes, assim como um conjunto complexo age diferente de cada uma de suas peças. Se até seres microscópicos se unem e comportam-se como organismos sensíveis agindo de forma diferente de seus componentes isolados, mais razão terá a super-humanidade de adquirir conduta própria.
Negar a existência dessa tendência do homem somar-se a seus recursos cada vez mais sofisticados e poderosos e tornar-se um novo ser, um super-homem, é como dizer que uma pessoa é a mera soma de suas células e órgãos. Entre os seres vivos mais bem sucedidos do planeta – isto é, os mais abundantes – estão aqueles que se associam para formar comunidades mais fortes que a soma
de todos, como as bactérias, por exemplo. Uma bactéria é nada, duas bactérias são dois nadas, mas bilhões de bactérias matam um elefante.
Nenhum ser humano sozinho é capaz de falar com outro, em tempo real, a milhares de quilômetros de distância. Nenhum ser humano sozinho poderia chegar à Lua. Essas são aptidões resultantes da super-humanidade.
Nossas habilidades globais e mais espetaculares fazem lembrar a dos insetos sociais como as formigas, com a diferença que nosso formigueiro é a biosfera inteira.


Embora pareça que a associação do Homo sapiens com os instrumentos e meios (leia-se tecnologia) seja coisa recente, não é. As culturas da humanidade vão da idade da pedra à idade do ferro passando pela idade do bronze, e há quem diga que estamos na idade do silício, assim, somos uma humanidade “de ponta” na acepção da palavra.
Desde o momento que o homem usou a lança e se associou a outros para matar o animal mais forte e mais rápido que ele, estava criando os alicerces da proto super-humanidade, estava projetando o super-homem do futuro. Se o homem vier a residir no espaço e viajar para além do sistema solar, será obra da super-humanidade.
As máquinas não são ameaças à existência humana, são sua extensão natural e necessária. Com certeza, para que haja condições do homem colonizar o espaço, será necessária uma integração cada vez maior entre o homem e a máquina através de softwares sofisticados, como neurônios de um cérebro planetal ligados por bilhões de sinapses.
A despeito do tom apocalíptico dos ambientalistas (confesso, incluo-me entre eles às vezes), nossa espécie caminha para uma integração cada vez maior com o meio ambiente. Entendendo-se que o meio ambiente vai sendo modificado e adaptado às necessidades e aspirações humanas, de tal modo que, dentro de milênios não mais parecerá com o que é hoje ou o que foi no passado.
Se algum cataclismo global não encerrar a carreira do Homo sapiens prematuramente, dentro de alguns milênios, uma nova variedade primata, o Homo machina sapiens será o mamífero predominante no Planeta Azul. JAIR, Floripa, 07/02/10.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

OUTRO BICHO MUITO ESTRANHO


O peixe pescador Lophius piscatorius vive em mares abissais, costuma assentar-se no fundo e aguardar com paciência as presas, em geral peixes famintos. Como a maioria dos peixes de regiões profundas o piscatorius não é um campeão de beleza pelos nossos critérios. Aliás, talvez também o não seja pelos padrões dos outros peixes, contudo, isso não deve ter importância, pois lá nas profundezas, onde ele vive, impera uma escuridão tal que nada se enxerga. Como outros habitantes da escuridão, as fêmeas dessas espécies produzem sua própria luz – ou melhor, elas possuem um receptáculo especial onde abrigam bactérias Vibrio Fischeri produtoras de luz. A “bioluminescência” não gera claridade suficiente para iluminar detalhes de objetos, mas brilha o bastante para atrair peixes incautos.
Uma espinha que, em um peixe normal, seria apenas um dos raios de uma barbatana, tornou-se no pescador alongada e rígida como um caniço de pesca. Em algumas espécies essa “vara” é tão longa que se assemelha a uma linha. E na ponta dessa vara ou linha de pesca há uma atraente isca. Essa isca varia conforme a espécie, mas todas lembram comida: um verme rebolante, um peixinho ou um petisco indefinível, mas de aspecto apetitoso e tentador. Estas iscas, luminosas por causa das bactérias Vibrio, são como um cartaz de neon numa lanchonete anunciando: Aqui, o seu delicioso lanche é bom e barato! Os peixes famintos, como adolescentes humanos num “Mac Donald”, ficam fissurados pelas iscas tentadoras. Aproximam-se do engodo e é a última coisa que fazem na vida, pois, nesse momento, o peixe pescador abre a bocarra e engole a presa num átimo. Ao invés de abastecerem o próprio estômago de comida, alimentam a barriga da fêmea pescadora.
Além dessa, digamos esdrúxula técnica apurada de pesca, esse peixe apresenta, ainda, algo mais bizarro no seu comportamento reprodutivo. Quem pesca é a fêmea, já o macho é tão menor que a fêmea que adere a ela como um parasito, fornecendo o esperma para fecundação dos ovos em troca de fluidos - dos quais se alimenta como um carrapato - e da proteção contra predadores que o tamanho da parceira representa. Uma vez agarrado à fêmea, o macho jamais se separa, morre quando esta vier a morrer. É um típico caso de amor romeujulietano com viés trágico de dependência parasitária determinística, algo muito estranho para nós humanos. JAIR, Floripa, 10/02/10.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

UM BICHO MUITO ESTRANHO


Em outras ocasiões já publiquei aqui argumentos que mostram como o bicho homem é fisicamente frágil e meio tolo, e que, sua predominância no Planeta se deve apenas ao sacrifício do ambiente e de todos os outros seres para sua exclusiva vantagem. As estratégias de sobrevivência do Homo sapiens funcionam no curto prazo, mas são no mínimo danosas, para não dizer fatais, a prazo mais longo. Já, bactérias, por exemplo, têm estratégias extremamente bem sucedidas e, supõem-se, pouco perversas ao ambiente, pois elas aqui estão há pelo menos três bilhões de anos e não há indícios que estejam em vias de extinção. Não se pode dizer o mesmo do frágil primata sem pelos. Calcula-se que o peso total da biomassa das bactérias é superior a de todos os seres vivos do Planeta e, naturalmente, isso se deve a “inteligência” de sobrevivência desses organismos tão desprezados.
É de minha autoria a frase: “
No homem, maior que a ignorância só a presunção”. Comparei, inclusive, o homem a um vírus cuja única maneira de sobreviver é dentro de uma célula viva, e que, no entanto, mata a célula em que vive. O homem mata o Planeta que é o meio necessário para perpetuar sua espécie, e também costuma “criar” monstros ficcionais, tipo “Allien, o oitavo passageiro”, que são indestrutíveis, são animais definitivos.
Agora vou mostrar um desses bichos extremos não ficcionais, um animal muito pequeno que é um sobrevivente na acepção da palavra.
Trata-se do tardígrado. Identificado pelo cientista alemão J. A. E. Goeze, em 1773, é até hoje considerado o organismo multicelular mais estranho jamais encontrado. Geralmente chamado de “urso-d’água”, bichinho o qual não é maior que um ponto no final do parágrafo, - provando que o menor nem sempre é o menos complexo - tem cinco segmentos corporais, quatro pares de pernas com garras e uma única gônada, lembrando: gônadas é o nome que se dá as glândulas produtoras de gametas: ovário nas mulheres e testículos nos homens, produtores de óvulos e espermatozóides.
Como se vê pela foto, o animal não é nem de longe um campeão de beleza. Também tem um cérebro multilobado, sistema digestivo e nervoso e sexos separados. Foram descobertas centenas de espécies distintas de tardígrados, mas devem existir centenas de outras a serem, ainda, descobertas. Eles já foram encontrados fossilizados em âmbar de 100 milhões de anos, portanto podem ser considerados uma das formas de vida mais antigas e bem sucedidas da Terra. Talvez só mãe possa amar esse artrópode de aspecto meio sinistro e intimidador, mas ele merece todo nosso respeito e admiração por causa de sua inigualável capacidade de adaptação.

Os tardígrados sobrevivem em todas as zonas climáticas, do ártico às florestas de -185 a 150°C e pressões desde o vácuo até mil atmosferas. Estas variações são maiores que as mais radicais temperaturas da Terra, desde o dia mais frio de inverno na Antártida até o mais quente dos dias no Vale da Morte; maiores que variações de pressão da montanha mais alta até a parte mais profunda do leito do oceano. E mais, os tardígrados são capazes de suportar mil vezes a dose de radiação que mataria um ser humano.

Em condições extremas, os tardígrados são conhecidos por entrarem em estado de vida suspensa seca, por congelamento, chamada criptobiose. O bichinho forma um exterior ceroso e duro chamado tonel, que o torna impermeável aos elementos. Ele sobrevive dessa maneira por décadas depois se reanima. Os tonéis são tão leves que, com o animal dentro, podem ser transportados pelo vento por longas distâncias, permitindo que o tardígrado colonize praticamente todo o globo terrestre.
Na acepção da palavra, os tardígrados não são considerados extremófilos – animais que só se desenvolvem em condições extremas e não sobrevivem em ambientes ditos normais – porque não se desenvolvem de modo natural em condições impossíveis: eles simplesmente são capazes de sobreviver nesses ambientes por algum tempo. O tardígrado é um bicho otimista, está sempre esperando por algo melhor. Os cientistas estão estudando o mecanismo da criptobiose porque ele pode levar a estratégias para postergarmos a nossa morte. Também, a vida suspensa deve ser pensada a sério se queremos, um dia, viajar para mundos distantes. JAIR, Floripa, 04/02/10.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

MICRÓBIOS VERSUS HUMANOS


Na luta pelo domínio do planeta, o Homo sapiens se vê frente a adversários os mais diversos, mas, talvez as batalhas mais renhidas dessa guerra sejam contra os microorganismos, em especial contra as bactérias. Nossa chance de vencê-las é diminuta pelo fato de lutarmos contra organismos que evoluem em poucas gerações, de tal forma que armas antes eficazes se tornam obsoletas em pouco tempo. Esses organismos desenvolveram uma técnica de passar seus genes lateralmente de modo a transmitir adaptações adquiridas por um indivíduo a outro. Tecnicamente, qualquer bactéria do Planeta pode, em princípio, cruzar com outra, e isso torna as bactérias uma única espécie global, com implicações quase impossíveis de imaginar em decorrência. Como vemos, estamos em luta com uma espécie de Allien, o oitavo passageiro. E, até aqui, embora bilhões de dólares tenham sido gastos, a luta permanece indefinida. Nosso consolo, e esperança de vitória, é que essas pestinhas não conseguem comunicar-se umas com outras, certo? Errado, afirmam alguns biólogos. Durante muitos anos, os cientistas pensaram que as bactérias não passavam de unidades isoladas, máquinas eficientes para a própria reprodução, apenas. O geneticista François Jacob chegou a dizer que a única ambição de uma bactéria é produzir duas bactérias. No entanto, a lula havaiana da cauda ondulada nos fornece uma indicação totalmente diferente. Esse molusco vive em águas costeiras que não alcançam o joelho de um homem, e costumar caçar depois que o sol se põe. Em noites de lua cheia, quando sua sombra pode denunciá-la para suas presas e predadores, ela acende uma “lâmpada” num órgão que emite um brilho azul, que se confunde com a luz da lua, tornando-a virtualmente invisível. O que torna possível esse artifício é uma bactéria conhecida por Vibrio Fischeri, que a lula ingere da água do mar e guarda numa câmara oca no seu abdômen. O estranho nessa bactéria é que, embora sua reprodução seja de tal ordem que o número de indivíduos numa comunidade dobre a cada vinte minutos, as células que produzem a luminescência permanecem inativas por quatro ou cinco horas. Daí, a partir dum ponto determinado por alguma matemática biológica programada, todas acendem suas luzes ao mesmo tempo. Algo comandou o acendimento coletivo das luzes. Entende-se que apenas um indivíduo ou até um grupo grande deles, não teria potência luminosa para fazer-se notar quando acesos, só uma comunidade de certo tamanho faz a diferença, consegue iluminar alguma coisa, mas como a multidão de Vibrios sabe quando atingiu esse quorum? Quem dá o comando de acender ao mesmo tempo? Como se comunicam os indivíduos para sincronizarem suas células luminosas? O fato é que a comunidade científica se vê estupefata frente essa percepção de quorum num organismo tão primitivo.
Admite-se que a comunicação entre bactérias lhes oferece vantagens na luta contra inimigos sabidamente superiores. Um pequeno grupo de bactérias pode permanecer inativo, sem ser percebido, evitando que os anticorpos reajam. É uma espécie de camuflagem. Assim que o número for suficientemente grande, elas agem em conjunto com a vantagem numérica a favor delas. É meio assustador, mas embora pareça que esses seres minúsculos a maior parte das vezes não se comunicam, o comportamento das Vibrio Fischeri mostra o contrário, para nossa insegurança e terror na hora de combatê-las. Assim, homens e bactérias sempre em luta, continuarão os combates até que um prevaleça sobre o outro, com a consciência que elas já estão no Planeta a bilhões de anos, enquanto nós mal colocamos o pé na soleira da porta. JAIR, Floripa, 04/02/10.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O MAL DO MILÊNIO SERÁ A BARRIGA



Segundo a OMS, pela primeira vez na história, a morte por excesso superou a morte por falta. Explico, hoje oitocentos milhões de pessoas passam fome, enquanto um bilhão estão acima do peso. O que significa que nunca houve tanta gente barriguda no Planeta.
Por milênios, as tribos caçaram e coletaram sementes, como o homem o fizera por toda sua história. Cerca de treze mil anos atrás, o clima no planeta tornou-se frio e seco durante vários séculos. O frio levou as pessoas a plantarem e selecionarem melhor os grãos ao invés de apenas coletá-los. Quando o termômetro subiu novamente, os grãos tiveram mais facilidade de germinar e a agricultura recrudesceu de modo exponencial. O chamado Crescente Fértil passou a abrigar inumeráveis tribos de lavradores. Uma quantidade maior de grãos passou a significar maior disponibilidade de comida e um tempo maior para variar a dieta com caça e pesca e domesticação de animais. A variedade e a quantidade de alimentos vegetais e animais permitiu que pessoas produzissem mais filhos e que tribos se tornassem núcleos de vilarejos e futuras cidades. A civilização cresce o quanto come.
As técnicas de cultivo e seleção genética das espécies vegetais e animais mais produtivas e nutritivas, praticadas pelos lavradores e criadores antigos, foram substituídas por técnicas científicas, agora desenvolvidas em laboratórios. Esse novo enfoque produziu muitas variedades de plantas e animais que, pela primeira vez na história, cresceram mais que o crescimento populacional. A biologia moderna transformou a criação de animais e a agricultura. A procriação planejada – ou cruzamento seletivo – levou a um enorme retraimento no esforço necessário para obtenção de alimentos.
Para a maioria das pessoas, a escassez cedeu lugar à fartura e, especialmente para cidadãos do primeiro mundo, a comida é virtualmente gratuita, - dado o peso relativo de seu custo no orçamento doméstico de famílias abastadas e de classe média. Os benefícios dessa combinação de relativa abundância e preço baixo são questionáveis. O preço real do açúcar, do amido e da gordura – comestíveis altamente energéticos e de qualidades nutritivas discutíveis – de fato, despencou, não tendo ocorrido o mesmo com as proteínas. Resultado, a fome com cara de fartura se espalhou pelo Planeta. É fácil observar que a faixa mais pobre da população urbana tem aspecto obeso. As pessoas estão comendo mais e errado.
Uma evolução na agricultura permitiu, há dez mil anos, que a sociedade se desenvolvesse, agora a evolução tecnológica está fazendo com que essa mesma sociedade se deteriore, regrida. Uma nova onda globalizada, uma combinação perversa de junk food (Mac Donald e congêneres) com preços baixos, está fazendo o império da obesidade se expandir. Ainda, segundo estudos da OMS, desde 1980 o estômago das sociedades ocidentais começou a se dilatar e não demonstra sinal algum de retrocesso. Há indícios que vinte anos antes, ou seja, pelos anos sessenta, apesar dos preços reais da comida terem baixado, não se via sinais de barrigas salientes que se aproximavam. Hoje, o mundo foi acometido por uma explosão de gordura, e seus habitantes estão pagando o tributo em forma de barrigão.
Cientistas afirmam que não é preciso muito para aumentar o diâmetro da cintura de uma nação. Segundo estudos, o aumento da barriga dos americanos pode ser atribuído a uma garrafa a mais de refrigerante por dia. Calcula-se que, no ritmo atual, dois terços dos americanos e quase metade dos ingleses estarão acima do peso em 2025. Desta equação, obviamente, estão fora muitos países da África e da América Latina como o Haiti. No Reino Unido, 30 mil mortes prematuras por ano se devem a um diâmetro aumentado da cintura e, nos EUA – onde, em 2005, a obesidade ultrapassou o fumo como principal causa de mortalidade passível de prevenção, - esse número é dez vezes maior. Estarrecedor mas verdade: Nos Estados Unidos enquanto o gasto com comida em relação à receita nacional caiu pela metade, no mesmo período as despesas com saúde foram multiplicadas por três. Na Europa oriental, onde o consumismo substituiu o comunismo, perde-se mais anos de vida em virtude da obesidade mórbida que na Inglaterra. Há fortes indicações que a atual geração mais velha – a qual não consumiu o lixo comestível durante seu crescimento – será a mais longeva da história. Seus (nossos também) filhos, geração hambúrguer, batata frita e coca-cola, têm expectativa de vida diminuída em relação aos pais.
A medicina há muito sabe o quão perigoso é esse aumento da cintura. Até Hipócrates já dizia: “A corpulência (parece que ele gostava de eufemismos) não é apenas uma doença em si mesma, mas a precursora de outras”. Milhares de pessoas morrem precocemente de doença cardíaca, AVC, diabetes e câncer, as quatro pragas que mais atacam os obesos. Muitas outras sofrem de gota, artrite, problemas da bexiga, fertilidade e outras patologias que afetam mais gordos que magros.
O que preocupa as autoridades médicas é que o efeito mais grave da comilança é o corpo adquirir forma de maçã ao invés de pêra, pois alguns centímetros adicionais na cintura são mais prejudiciais que uma bunda grande. Até as mulheres que, tradicionalmente tem mais gordura nas nádegas, estão se tornando maçãs. Um mundo de homens e mulheres maçãs é um mundo cuja civilização está em decadência, um mundo com um futuro que não queremos e o qual devemos evitar enquanto é tempo. JAIR, Floripa, 01/02/10.