quinta-feira, 12 de julho de 2012

Os gafanhotos


Na Bíblia, Êxodo 10, fala-se da praga de gafanhotos que teria assolado o Egito. Então, hoje quando grandes plantações são assaltadas por milhões desses insetos famintos, os quais em poucos dias conseguem devastar milhares de hectares de cultivo, ao imaginário popular é quase compulsório associar essas catástrofes com aquela da passagem bíblica. Quase todos os anos são veiculadas notícias de hordas gafanhotais, ora na África, ora na Austrália ou até nas Américas, porém, quase não se compara essas pragas com o desmatamento. Aquele desmatamento sistemático, continuado e nocivo que, em muitos lugares, detonam as florestas para sempre.
Nasci e vivi até aos dezessete anos em Palmeira, cidade do Paraná que naquele tempo era cercada de pinheirais por todos os lados. A Araucaria angustifolia, mais conhecida como pinheiro do Paraná é, talvez, a árvore mais bonita de nossa flora.  É uma sobrevivente, há provas fósseis que já existia há mais de 200 milhões de anos, quando sua população se disseminava do sul até o nordeste brasileiro. Essa bela conífera pode atingir até 50 metros de altura, com um diâmetro de tronco à altura do peito de 2,5 metros. Sua forma é única na paisagem brasileira, parecendo uma taça de champanhe com um longo e delgado cabo. Ocupando uma área original de 200 mil quilômetros quadrados, a partir do século dezenove foi intensamente explorada pelo alto valor econômico da madeira que produz. Também suas sementes são altamente nutritivas, e hoje seu território está reduzido a uma fração mínima, o que, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), coloca a araucária em perigo crítico de extinção.
Pois bem, uma notável concentração de árvores de grande valor comercial é natural que, como cultivares atraem gafanhotos, atraia pessoas, madeireiras e corporações interessadas na exploração de tal tesouro a céu aberto. Em Palmeira não foi diferente, nos anos quarenta do século passado atraiu gafanhotos famintos na forma de madeireiras administradas por gente tão gananciosa por lucros quanto estúpida. Por uma injunção maléfica do destino, os pinheiros de minha terra natal atraíram famílias de madeireiros descendentes de italianos: Malucelli, Cherubim (pronuncia-se Querubim) e Mansani, sobrenomes que podem lembrar aquelas famiglias mafiosas da Cecília e da península italiana.
A Araucária é uma espécie exclusiva da floresta ombrófila mista, isto significa que ela cresce em consórcio com outras tantas árvores desse tipo de floresta, daí, além de seu valor comercial intrínseco, as demais árvores também representam ganhos para os madeireiros. Imbuias, cedros, canelas e outras madeiras usadas na fabricação de móveis encontram-se em abundância entre os pinheiros. Os gafanhotos carcamanos que exploravam os pinheirais tinham como “bônus” as outras espécies a sua disposição, era mamão com açúcar.
Particularmente a Madeireira Malucelli começou suas atividades se estabelecendo na localidade de Três Morros, distante alguns quilômetros do centro urbano de Palmeira, que naquele tempo não passava de um aglomerado de casas de cinco mil habitantes, cuja economia baseava-se na extração de erva mate (Ilex paraguariensis) muito abundante na região. Pois tão logo os pinheiros escasseavam em Três Morros, os gafanhotos, digo, os Malucelli, mudaram sua madeireira para Pinheiral de Baixo, onde nasci. Claro que, também em Pinheiral, a abundância de Araucárias não foi suficiente para manter ocupadas as mandíbulas famintas das máquinas por muito tempo. Lá foram eles com suas serras, machados, tornos, caminhões e prensas para a sede do município. Com essa mudança da indústria vieram meus pais, meus dois irmãos e eu que era um bebê de dois anos.
Morávamos numa casinha de madeira à entrada principal da fábrica como a chamávamos, e de nossas janelas víamos o trânsito dos caminhões que traziam as toras brutas das florestas. Podíamos acompanhar todos os dias os carregamentos dos cadáveres das Araucárias e de outras árvores que adentravam a fábrica para saciar a fome das máquinas e encher os bolsos dos Malucelli. Qualquer pessoa minimamente esclarecida ou que quisesse enxergar, podia perceber que ao ritmo que se devastava, aquelas matas em pouco tempo deixariam de existir. Mas a fome de lucros fáceis era muito grande, as florestas que se explodam. Acrescente-se que os operários que labutavam na fábrica eram mal pagos e seus salários em decorrência de suas jornadas de trabalho traduziam quase trabalho escravo, em total desacordo com as Leis Trabalhistas. Sou testemunha de tal regime porque trabalhei lá. Em virtude de ser menor de idade ganhava metade de um salário mínimo mensal, mas a jornada e a brutalidade do trabalho eram iguais aos de adultos, minha audição está comprometida até hoje por ter trabalhado naquelas serras elétricas de ruído altíssimo sem qualquer proteção.
Bem, então lá estavam os Mansani, Cherubim e Malucelli devastando toda a mata ombrófila das cercanias de Palmeira sem qualquer preocupação com o futuro, talvez incapazes de perceber que estavam comprometendo o futuro de suas indústrias e deles próprios pelo desmatamento irracional. Há quem diga que aquelas atitudes anti ambientais eram necessárias e corretas para o “desenvolvimento” da região. Eu digo que não. Então qual é a solução? Simples demais: plantar. Se os mafiosos, digo, Malucellis e demais empresários, tivessem plantado mudas nos locais que retiravam a madeira, dali a alguns anos as florestas estariam recompostas, as terras continuariam valorizadas e as madeireiras funcionariam com as árvores replantadas, todos ganhariam. Como foi feito todos perderam. Os gafanhotos, digo, os mafiosos, ou melhor, os madeireiros hoje são pobres, indistinguíveis daqueles que eles exploraram, os que para eles trabalharam continuam paupérrimos e a cidade além de pobre não possui mais matas ombrófilas. Mas, como os insetos, os gafanhotos humanos se mudaram para outros locais onde possivelmente tentam explorar outros recursos não renováveis. JAIR, Floripa, 09/06/12. 

10 comentários:

Leonel disse...

Lamentável a ignorância dos que praticam certas atividades extrativas de forma predatória, esquecendo que os recursos se irão esvaindo, inviabilizando até seu próprio meio de vida...
Acho que hoje as madeireiras são obrigadas por lei a plantar árvores...
Mas, não sei se todos estão cumprindo esta lei...
Infelizmente, o que aconteceu na tua terra é irreparável...
Abraços!

R. R. Barcellos disse...

Gozado... gafanhotos e saúvas - que nunca provocaram desequilíbrios ecológicos com suas incursões - são vilipendiados como "pragas". E nós, humanos?
Somos verdadeiros "Querubins"!
Abraços.

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
realmente por ser uma das pragas bíblicas do Êxodo, os gafanhotos são amaldiçoados, qual a serpente no Gênesis. Tenho duas lembranças de minha infância, que podem ser fantasias. Na metade da década de 40, do nosso século 20, uma praga de gafanhotos assaltou Estação Jacuí, onde nasci. Lembro de um mato de eucalipto que ficou qual palitos e também de dois ferroviários que ficavam com vassouras assentados no limpa-trilhos das locomotivas, para evitar que o trem não descarrilhasse ao passar sobre os rechonchudos predadores. Talvez, isso seja imaginação minha. Gostaria de saber disso.
Também lembro dos agricultores batendo latas de querosenes vazias para espantar papadores das folhas.
Esta trazida de tua Palmeira (lateralmente, hoje remeti o A ciência através dos tempos a um leitor de Colônia Francesa Palmeira PR) nos mostra a semelhança do fazer dos humanos com a praga do Êxodo.
Obrigado por avivares minha infância.

attico chassot

Ruy disse...

Jair, excelente a tua postagem de hoje (eu li hoje!). Acho que vc pegou na veia dessa corja de çaphadões que gafanhotaram as araucárias (e outras belas árvores como imbuia, cedro et auauau), e que hoje — felizmente para as matas paranaenses que ainda restam — vegetam sem o poderio político e econômico que detinham em priscas eras.
Percebo que com essa tua linha de crítica social, vc via teu blogue, cumpre uma função supimpa nesse universo blogal, qual seja levantar esses casos onde a comunidade e a sociedade, como um todo, sempre saem perdendo para a ação inescrupulosa de uns tantos facinorosos, que se locupletam com a riqueza que seria da comunidade, ou das futuras gerações.

Grande abraço,
Ruy.

Unknown disse...

Enciclopédico amigo,

ainda fazendo menção aos textos bíblicos, haveria de surgir um José interpretando os sonhos de algum amaldiçoado "gafanhoto" e lhe dizer que ele próprio é uma praga!

Muita paz!

Joel disse...

SAGA DA AMAZôNIA
(Vital Farias)

Era uma vez na amazônia, a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
No fundo d'água as iaras, caboclo lendas e mágoas
E os rios puxando as águas

Papagaios, periquitos, cuidavam das suas cores
Os peixes singrando os rios, Curumins cheios de amores
Sorria o jurupari,uirapuru, seu porvir
Era fauna, flora, frutos e flores
Toda mata tem caipora para a mata vigiar
Veio um caipora de fora para a mata definhar
E trouxe dragão de ferro, prá comer muita madeira
E trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira.

Fizeram logo um projeto sem ninguém testemunhar
Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar
Se a floresta meu amigo tivesse pé prá andar
Eu garanto meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá.

O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar
E o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar?
Depois tem passarinho, tem o ninho, tem o ar
Igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar.

Mas o dragão continua a floresta devorar
E quem habita essa mata prá onde vai se mudar?
Corre indio, seringueiro, preguiça, tamanduá
Tartaruga pé ligeiro, corre-corre Tribo dos camaiurá

No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave de arribação
Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão

Pois mataram o índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar

Foi então que um violeiro chegando na região
Ficou tão penalizado e escreveu essa canção
E talvez desesperado com tanta devastação
Pegou a primeira estrada sem rumo, sem direção
Com os olhos cheios de água sumiu levando essa mágoa
Dentro do seu coração.

Aqui termina essa história para gente de valor
Prá gente que tem memória muito crença muito amor
Prá defender o que ainda resta sem rodeio, sem aresta
Era uma vez uma floresta na Linha do Equador.


Grande abraço,
Joel

Professor AlexandrE disse...

É uma pena, é triste e o pior de tudo, infelizmente é verdade!
Parabéns pela postagem!

Luci disse...

Tem remanescentes destes sobrenomes em Ponta Grossa,Curitiba...Por aqui andam derrubando pinheiros ainda,com pretestos banais...Colhi alguns pinhões na área do "Buraco do Padre", aqui nos Campos Gerais, enterrei-os ,tal e qual uma gralha azul...Nasceram dois pés,um vou levar para você, para plantar perto daquela árvore "gordona".Ela
está crescendo na beira-mar CONTINENTAL?Luci.

Carlos Cezar disse...

Os gafanhotos, no Brasil, criam_se no Congresso Nacional e na Esplanada dos Ministerios e se espalham... Se multiplicam... C.Cezar

Antonio Nunes Rocha disse...

Li o comentário do Sr. Attico Chassot. Não foi fantasia, isso aconteceu. Meu pai era Agente da Estação de Guaraúna (ou Valinhos), Município de Teixeira Soares. Creio que foi em 1946/1947. Os trens que vinham do sul (União da Vitória),as suas locomotivas chegavam com os "limpa-trilhos", engordurados de carcaças de gafanhotos. Uns dois ou três dias depois, veio, no fim da tarde, uma nuvem que cobriu o céu. Diziam que tinha 100 quilômetros de extensão por 50 de largura. Desceram lá (diziam que eles não voavam à noite). Acabaram com tudo que era vegetal, desde as lavouras,macegas, gramados e, até, árvores de erva-mate ( os galhos ficaram sem folhas e sem cascas, bem como os troncos). Eu tinha 11 anos. No carnaval seguinte saiu uma marchinha sobre eles. Acho que foi aúnica coisa que se aproveitou desse fato. Atte