Na Bíblia, Êxodo 10, fala-se da praga de gafanhotos
que teria assolado o Egito. Então, hoje quando grandes plantações são
assaltadas por milhões desses insetos famintos, os quais em poucos dias
conseguem devastar milhares de hectares de cultivo, ao imaginário popular é
quase compulsório associar essas catástrofes com aquela da passagem bíblica.
Quase todos os anos são veiculadas notícias de hordas gafanhotais, ora na
África, ora na Austrália ou até nas Américas, porém, quase não se compara essas
pragas com o desmatamento. Aquele desmatamento sistemático, continuado e nocivo
que, em muitos lugares, detonam as florestas para sempre.
Nasci e vivi até aos
dezessete anos em Palmeira, cidade do Paraná que naquele tempo era cercada de
pinheirais por todos os lados. A Araucaria
angustifolia, mais conhecida como pinheiro do Paraná é, talvez, a árvore
mais bonita de nossa flora. É uma
sobrevivente, há provas fósseis que já existia há mais de 200 milhões de anos,
quando sua população se disseminava do sul até o nordeste brasileiro. Essa bela
conífera pode atingir até 50 metros de altura, com um diâmetro de tronco à
altura do peito de 2,5 metros. Sua forma é única na paisagem brasileira,
parecendo uma taça de champanhe com um longo e delgado cabo. Ocupando uma área
original de 200 mil quilômetros quadrados, a partir do século dezenove foi
intensamente explorada pelo alto valor econômico da madeira que produz. Também
suas sementes são altamente nutritivas, e hoje seu território está reduzido a
uma fração mínima, o que, segundo a União Internacional para a Conservação da
Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), coloca a araucária em perigo crítico de extinção.
Pois bem, uma
notável concentração de árvores de grande valor comercial é natural que, como
cultivares atraem gafanhotos, atraia pessoas, madeireiras e corporações
interessadas na exploração de tal tesouro a céu aberto. Em Palmeira não foi
diferente, nos anos quarenta do século passado atraiu gafanhotos famintos na
forma de madeireiras administradas por gente tão gananciosa por lucros quanto
estúpida. Por uma injunção maléfica do destino, os pinheiros de minha terra
natal atraíram famílias de madeireiros descendentes de italianos: Malucelli,
Cherubim (pronuncia-se Querubim) e Mansani, sobrenomes que podem lembrar aquelas
famiglias mafiosas da Cecília e da
península italiana.
A Araucária é uma
espécie exclusiva da floresta ombrófila mista, isto significa que ela cresce em
consórcio com outras tantas árvores desse tipo de floresta, daí, além de seu
valor comercial intrínseco, as demais árvores também representam ganhos para os
madeireiros. Imbuias, cedros, canelas e outras madeiras usadas na fabricação de
móveis encontram-se em abundância entre os pinheiros. Os gafanhotos carcamanos
que exploravam os pinheirais tinham como “bônus” as outras espécies a sua
disposição, era mamão com açúcar.
Particularmente a
Madeireira Malucelli começou suas atividades se estabelecendo na localidade de
Três Morros, distante alguns quilômetros do centro urbano de Palmeira, que
naquele tempo não passava de um aglomerado de casas de cinco mil habitantes,
cuja economia baseava-se na extração de erva mate (Ilex paraguariensis) muito abundante na região. Pois tão logo os
pinheiros escasseavam em Três Morros, os gafanhotos, digo, os Malucelli, mudaram
sua madeireira para Pinheiral de Baixo, onde nasci. Claro que, também em
Pinheiral, a abundância de Araucárias não foi suficiente para manter ocupadas
as mandíbulas famintas das máquinas por muito tempo. Lá foram eles com suas
serras, machados, tornos, caminhões e prensas para a sede do município. Com
essa mudança da indústria vieram meus pais, meus dois irmãos e eu que era um
bebê de dois anos.
Morávamos numa
casinha de madeira à entrada principal da fábrica
como a chamávamos, e de nossas janelas víamos o trânsito dos caminhões que
traziam as toras brutas das florestas. Podíamos acompanhar todos os dias os
carregamentos dos cadáveres das Araucárias e de outras árvores que adentravam a
fábrica para saciar a fome das máquinas e encher os bolsos dos Malucelli.
Qualquer pessoa minimamente esclarecida ou que quisesse enxergar, podia
perceber que ao ritmo que se devastava, aquelas matas em pouco tempo deixariam
de existir. Mas a fome de lucros fáceis era muito grande, as florestas que se explodam.
Acrescente-se que os operários que labutavam na fábrica eram mal pagos e seus
salários em decorrência de suas jornadas de trabalho traduziam quase trabalho
escravo, em total desacordo com as Leis Trabalhistas. Sou testemunha de tal
regime porque trabalhei lá. Em virtude de ser menor de idade ganhava metade de
um salário mínimo mensal, mas a jornada e a brutalidade do trabalho eram iguais
aos de adultos, minha audição está comprometida até hoje por ter trabalhado
naquelas serras elétricas de ruído altíssimo sem qualquer proteção.
Bem, então lá
estavam os Mansani, Cherubim e Malucelli devastando toda a mata ombrófila das
cercanias de Palmeira sem qualquer preocupação com o futuro, talvez incapazes
de perceber que estavam comprometendo o futuro de suas indústrias e deles próprios
pelo desmatamento irracional. Há quem diga que aquelas atitudes anti ambientais
eram necessárias e corretas para o “desenvolvimento” da região. Eu digo que
não. Então qual é a solução? Simples demais: plantar. Se os mafiosos, digo,
Malucellis e demais empresários, tivessem plantado mudas nos locais que
retiravam a madeira, dali a alguns anos as florestas estariam recompostas, as
terras continuariam valorizadas e as madeireiras funcionariam com as árvores
replantadas, todos ganhariam. Como foi feito todos perderam. Os gafanhotos,
digo, os mafiosos, ou melhor, os madeireiros hoje são pobres, indistinguíveis
daqueles que eles exploraram, os que para eles trabalharam continuam
paupérrimos e a cidade além de pobre não possui mais matas ombrófilas. Mas, como
os insetos, os gafanhotos humanos se mudaram para outros locais onde
possivelmente tentam explorar outros recursos não renováveis. JAIR, Floripa,
09/06/12.
10 comentários:
Lamentável a ignorância dos que praticam certas atividades extrativas de forma predatória, esquecendo que os recursos se irão esvaindo, inviabilizando até seu próprio meio de vida...
Acho que hoje as madeireiras são obrigadas por lei a plantar árvores...
Mas, não sei se todos estão cumprindo esta lei...
Infelizmente, o que aconteceu na tua terra é irreparável...
Abraços!
Gozado... gafanhotos e saúvas - que nunca provocaram desequilíbrios ecológicos com suas incursões - são vilipendiados como "pragas". E nós, humanos?
Somos verdadeiros "Querubins"!
Abraços.
Meu caro Jair,
realmente por ser uma das pragas bíblicas do Êxodo, os gafanhotos são amaldiçoados, qual a serpente no Gênesis. Tenho duas lembranças de minha infância, que podem ser fantasias. Na metade da década de 40, do nosso século 20, uma praga de gafanhotos assaltou Estação Jacuí, onde nasci. Lembro de um mato de eucalipto que ficou qual palitos e também de dois ferroviários que ficavam com vassouras assentados no limpa-trilhos das locomotivas, para evitar que o trem não descarrilhasse ao passar sobre os rechonchudos predadores. Talvez, isso seja imaginação minha. Gostaria de saber disso.
Também lembro dos agricultores batendo latas de querosenes vazias para espantar papadores das folhas.
Esta trazida de tua Palmeira (lateralmente, hoje remeti o A ciência através dos tempos a um leitor de Colônia Francesa Palmeira PR) nos mostra a semelhança do fazer dos humanos com a praga do Êxodo.
Obrigado por avivares minha infância.
attico chassot
Jair, excelente a tua postagem de hoje (eu li hoje!). Acho que vc pegou na veia dessa corja de çaphadões que gafanhotaram as araucárias (e outras belas árvores como imbuia, cedro et auauau), e que hoje — felizmente para as matas paranaenses que ainda restam — vegetam sem o poderio político e econômico que detinham em priscas eras.
Percebo que com essa tua linha de crítica social, vc via teu blogue, cumpre uma função supimpa nesse universo blogal, qual seja levantar esses casos onde a comunidade e a sociedade, como um todo, sempre saem perdendo para a ação inescrupulosa de uns tantos facinorosos, que se locupletam com a riqueza que seria da comunidade, ou das futuras gerações.
Grande abraço,
Ruy.
Enciclopédico amigo,
ainda fazendo menção aos textos bíblicos, haveria de surgir um José interpretando os sonhos de algum amaldiçoado "gafanhoto" e lhe dizer que ele próprio é uma praga!
Muita paz!
SAGA DA AMAZôNIA
(Vital Farias)
Era uma vez na amazônia, a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
No fundo d'água as iaras, caboclo lendas e mágoas
E os rios puxando as águas
Papagaios, periquitos, cuidavam das suas cores
Os peixes singrando os rios, Curumins cheios de amores
Sorria o jurupari,uirapuru, seu porvir
Era fauna, flora, frutos e flores
Toda mata tem caipora para a mata vigiar
Veio um caipora de fora para a mata definhar
E trouxe dragão de ferro, prá comer muita madeira
E trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira.
Fizeram logo um projeto sem ninguém testemunhar
Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar
Se a floresta meu amigo tivesse pé prá andar
Eu garanto meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá.
O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar
E o fruto que dá no cacho prá gente se alimentar?
Depois tem passarinho, tem o ninho, tem o ar
Igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar.
Mas o dragão continua a floresta devorar
E quem habita essa mata prá onde vai se mudar?
Corre indio, seringueiro, preguiça, tamanduá
Tartaruga pé ligeiro, corre-corre Tribo dos camaiurá
No lugar que havia mata, hoje há perseguição
Grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão
Afora os que já morreram como ave de arribação
Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão
Pois mataram o índio que matou grileiro que matou posseiro
Disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
Roubou seu lugar
Foi então que um violeiro chegando na região
Ficou tão penalizado e escreveu essa canção
E talvez desesperado com tanta devastação
Pegou a primeira estrada sem rumo, sem direção
Com os olhos cheios de água sumiu levando essa mágoa
Dentro do seu coração.
Aqui termina essa história para gente de valor
Prá gente que tem memória muito crença muito amor
Prá defender o que ainda resta sem rodeio, sem aresta
Era uma vez uma floresta na Linha do Equador.
Grande abraço,
Joel
É uma pena, é triste e o pior de tudo, infelizmente é verdade!
Parabéns pela postagem!
Tem remanescentes destes sobrenomes em Ponta Grossa,Curitiba...Por aqui andam derrubando pinheiros ainda,com pretestos banais...Colhi alguns pinhões na área do "Buraco do Padre", aqui nos Campos Gerais, enterrei-os ,tal e qual uma gralha azul...Nasceram dois pés,um vou levar para você, para plantar perto daquela árvore "gordona".Ela
está crescendo na beira-mar CONTINENTAL?Luci.
Os gafanhotos, no Brasil, criam_se no Congresso Nacional e na Esplanada dos Ministerios e se espalham... Se multiplicam... C.Cezar
Li o comentário do Sr. Attico Chassot. Não foi fantasia, isso aconteceu. Meu pai era Agente da Estação de Guaraúna (ou Valinhos), Município de Teixeira Soares. Creio que foi em 1946/1947. Os trens que vinham do sul (União da Vitória),as suas locomotivas chegavam com os "limpa-trilhos", engordurados de carcaças de gafanhotos. Uns dois ou três dias depois, veio, no fim da tarde, uma nuvem que cobriu o céu. Diziam que tinha 100 quilômetros de extensão por 50 de largura. Desceram lá (diziam que eles não voavam à noite). Acabaram com tudo que era vegetal, desde as lavouras,macegas, gramados e, até, árvores de erva-mate ( os galhos ficaram sem folhas e sem cascas, bem como os troncos). Eu tinha 11 anos. No carnaval seguinte saiu uma marchinha sobre eles. Acho que foi aúnica coisa que se aproveitou desse fato. Atte
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