Havia sido concebido
em Israel, num Kibutz fundado por deslocados de guerra oriundos da Bucovina.
Seus pais fugiram do país quando tropas nazistas, que já haviam batido os
restos do exército romeno que lutara bravamente, mas sem eficácia, resolveram
aplicar as leis do extermínio sobre os poucos judeus que ainda restavam nas
aldeias pobres e arrasadas. Com auxílio de cidadãos bucovinos cristãos, Yacov Stein e Marta Stein conseguiram embarcar num transporte que os levou até
Stambul e de lá, depois de muita emoção e perigo, conseguiram chegar a Benghasi
na Líbia, onde após de alguns meses saíram para Londres. Viveram em Londres até
o fim da guerra, donde saíram para Israel e o Kibutz, e, quase de imediato,
para o Brasil, país escolhido aleatoriamente num mapa mundi. Até hoje é um
mistério como aqueles dois judeus deslocados vieram parar em Palmeira, cidade
onde não havia ninguém que professasse o judaísmo.
O filho do casal
nasceu logo depois da chegada deles, Marta já estava grávida quando vieram para
a cidade clima. Porque lhe colocaram o nome de Oblivo nunca perguntei, embora fosse
nome um tanto exótico, não me parecia correto ficar xeretando o assunto. Até
porque existiam muitos nomes pouco usuais no círculo de meus conhecidos de
forma que Oblivo era apenas mais um.
Minha família
morava, desde o fim dos anos quarenta, numa propriedade da empresa madeireira
dos Malucelli na qual meu pai trabalhava. A casa se situava do outro lado da
rua em que se situava a fábrica, aliás todo o lado oposto à fábrica era uma
“vila” de casinhas iguais onde moravam os operários. Lá passei minha infância.
Seu Jacó, como
chamávamos o pai de Oblivo, também era operário na madeireira. Humilde,
discreto, bastante inteligente, seu Jacó tinha um forte sotaque que nós
costumávamos nomear como “de polaco”. Os polacos eram abundantes na zona rural
da cidade e muitos viviam e trabalhavam nas indústrias madeireiras, mas a
maioria era composta por pequenos colonos que costumavam vender seus produtos
nas feiras, por isso conhecíamos bem a maneira como eles falavam. Os poloneses
e seus descendentes tinham dificuldade de pronunciar o “r” forte de “carro”,
por exemplo, neste caso diziam “caro”, e em todas as pronúncias fortes do erre
era a mesma coisa. Pois bem, seu Jacó falava com sotaque peculiar, desse modo,
dona Marta e Oblivo também, embora este tivesse adquirido o sotaque por
exposição e não de nascença.
Oblivo e eu éramos
(ainda somos) amigos, daquele tipo que as pessoas costumam chamar de
inseparáveis. Desde que me lembro sempre fomos vizinhos de rua, brincávamos
juntos e costumávamos estar sintonizados em tudo que fazíamos. Não havia
necessidade de combinar, “amanhã, as tantas horas!”, sempre um ia à casa do
outro ou os dois se encontravam na rua sem ter previamente combinado. Ele era
em tudo um garoto normal, alegre, ativo e muito companheiro para todas as
horas. Só tinha uma particularidade, era
incendiário. Tinha fixação por atear fogo em coisas. Para esse fim
carregava uma caixa de fósforos que surrupiara da cozinha de sua casa. A caixa
era o “instrumento” que alimentava a fantasia de pôr fogo nas coisas. Ao
brincarmos nos terrenos baldios ou no campo, lá ia o Oblivo colocar fogo nos
montes de lixo, nos restos de tábuas velhas ou no capim seco do campo. Onde
houvesse fumaça, havia Oblivo por perto. Além isso, ele costumava “pensar
grande”, sonhava que um dia provocaria um incêndio de proporções românicas (de
Roma, naturalmente), algo que marcasse a história da cidade, um fogaréu, costumava dizer.
Corria o mês de
janeiro de 1953, lembro com muita clareza, por que foi o penúltimo mês de minha
infância antes de entrar na escola primária, cujo ano letivo iniciaria nos
primeiros dias de março. Numa sexta feira à tarde Oblivo estava mais
compenetrado e chamou-me para brincar num terreno próximo às nossas casas. Lá
sentamos e ele, com ar grave, confessou que havia tomado a decisão de sua vida.
Eu meio cismado nada disse, aguardei que falasse. Oblivo, em breves palavras
disse que ia tocar fogo numa coisa muito grande nessa mesma noite, o incêndio
do século iria iluminar a cidade e agitaria todas as pessoas. Eu não perguntei
onde seria o incêndio nem ele falou mais nada, fomos para nossas casas.
Já à noite, depois
da janta, nem lembrava mais daquela confidência, minhas prioridades eram outras
e fui dormir cedo como sempre, sem maiores preocupações. Lembro que fui
acordado por meu pai de madrugada, depois eu soube que eram duas horas da manhã,
e todo o céu estava avermelhado pelo fogaréu. A madeireira do outro lado da rua
havia pegado fogo, era um incêndio monumental como nunca a cidade tinha visto e
certamente nunca mais veria. O fogo era uma coisa viva que se alimentava dos
materiais combustíveis da fábrica. De proporções épicas, pois, para uma cidade de
pouco mais de cinco mil habitantes, estava devorando instalações com cinquenta
mil metros quadrados. Os barracões de madeira e todas as máquinas e material
inflamável que havia dentro ardia em vórtices de fogo vermelho alaranjado, com
explosões ocasionais de tambores de materiais combustíveis. O calor vulcânico
faria inveja às fornalhas do inferno de Dante. Fomos levados para o campo que
havia trás da vila por precaução, caso nossas moradas fossem atingidas pelas
labaredas que não distavam nem dez metros. Roma sentiria inveja das proporções
daquele inferno. O fogo durou mais de vinte e quatro horas, ficamos comovidos,
amedrontados e maravilhados, coisa única na vida de qualquer um.
O incêndio não
ceifou vidas, mas destruiu tudo, da madeireira só restaram cinzas e alguns
esqueletos das máquinas que antes produziam os móveis e compensados. Não me
lembro de ter visto Oblivo nos dias seguintes, mesmo porque os restos do
incêndio ali tão pertinhos e tão interessantes não deixavam a gente desgrudar
os olhos daquelas curiosidades inusitadas. Depois de cinco ou seis dias, calhou
que nos encontramos, Oblivo e eu, conversamos como se nada suspeito houvesse
naquele acontecimento. Eu nada perguntei e ele nada disse, apenas observei que
ele estava sem a sempre presente caixa de fósforos. Oblivo, sem qualquer expressão
no rosto, disse: - Não a carrego mais
comigo, já não gosto. Parece que havia abandonado a piromania que o
acompanhara até ali.
O incêndio acabou
não trazendo grandes prejuízos para ninguém. A perícia efetuada pelos bombeiros
exarou laudo culpando um curto circuito pela deflagração das faíscas que
causaram o sinistro. Os Malucelli tinham seguro dos imóveis, das máquinas e do
estoque, de modo que, dizem, receberam mais do que valia aquele patrimônio. Os
operários foram convocados para limpar os escombros, tirar todo aquele entulho,
depois foram incorporados à construção de uma nova fábrica, agora toda de
tijolos. Não perderam seus empregos e acabaram trabalhando em instalações
melhores, com máquinas novas e mais modernas. A cidade teve assunto para falar
por meses ou anos, até hoje alguém ainda se lembra do INCÊNDIO, assim com
letras maiúsculas. Oblivo e eu entramos na escola no mesmo ano, estudamos na
mesma sala e continuamos amigos, embora nossas escolhas tenham nos conduzido
por caminhos diferentes ainda nos vemos de tempos em tempos. Agora ele, aposentado,
mora em Irati com suas filhas e netos, e quando nos encontramos, jamais tocamos
no assunto incêndio. Diz um provérbio que “não se fala em corda na casa de
enforcado”. JAIR, Floripa, 24/04/12.
10 comentários:
Mais uma ótima narrativa do Mark Twain de Palmeira!
Mas, pô, fala só aqui pra mim: foi ele mesmo quem tacou fogo na madeireira?
Essa suspense é que ficou pesando no ar...
Mas, prefiro acreditar que foi mesmo um curto, ou então alguém esperto querendo receber o seguro...
Belo recuerdo!
Mas, por via das dúvidas, eu não quero morar muito perto desse óbvio...quero dizer Oblivo incendiário!
Abraços, Jair!
Adorei a narrativa!! E a curiosidade permanece... será que foi o Oblivo mesmo?? Acho que ele se traumatizou com o poder de destruição do fogo ao ver o 'acidente', e não quis mais saber da caixinha de fósforos!!
Jair,
uma leitura mais cuidadosa do texto. talvez permita inferir, que o Nero de tua Palmeira, foi algum cristão querendo, mais uma vez, culpar um judeu inocente.
Saudações piromaníacas,
attico chassot
Adorei seu relato!
Parabéns!
Texto de primeira, Senhor Jair. Diz só o suficiente. Apresenta elementos psicológicos de maneira soberba.
Augusto
Olá Jair,
Vi seu link no blog amigo e entrei pra conhecer.
Adorei o seu relato, e fiquei super curiosa. O suspense sempre deixa esse sabor.
Voltarei novamente.
Grande abraço!
Ótimo fim de semana!
Hummmm, sei não!
Joel.
18 Maio ... Terrível ! O homem-lava (ou o antecessor do " Tocha
Humana" ??) era danado !
O amigo - com um "louco manso" desses por perto - teve muita sorte (e
os seus amigos diletos, de Turma igualmente, não é ?) de nunca ter
saido "chamuscado" das brincadeiras que efetuavam juntos !!
Uma indagação se faz necessária, dada à vetustez do tema, quando,
provavelmente, tal ditado estava em moda ("quem brinca com fogo
amanhece mijado"), o famigerado citado sofria/ou aparentava estar
acometido de "diurese" (hehehehe) ?
Há mais nomes estranhos entre o fogo e a água do que sonha nossa vã filosofia.
Dê meus parabéns à Brandina... é amanhã, né?
Abraços.
Este episódio trouxe à minha lembrança, meu sobrinho,garoto de dois anos ,teve um sumiço;todos da casa o procuravam,chamavam pelo seu nome e, eis que pela sombra atrás do box do banheiro,ele havia queimado todos os palitos da caixa de fósforos e ria. Mais tarde num churrasco em sua casa, ele já com 4 anos, o fogo ao lado do muro,em galhos secos, assustou o pessoal...Lá estava ele com a caixa de fósforo na mão, rindo com a cara suja de carvão! Parou por ai,hoje beirando os 30 anos,superou
o insano desejo.Mas, esta do Seu Oblivo,tem no seu nome as letras de óbvio,literalmente.Entre mortos e feridos...salvaram-se todos.Rsss...Luci
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