Descartes,
matemático, físico e pensador francês, em suas obras instituiu o conceito que
mente e cérebro são coisas separadas, constituídos de matérias distintas e
regidos por leis distintas. Sendo o cérebro uma espécie de hardware, um disco rígido que contém toda a memória e os circuitos
que permitem processar os sinais externos e transformá-los em ações ou outros
pensamentos, e regido pelas leis da física. Já a mente seria algo etéreo que
não ocupa espaço nem obedece as leis da física. Ou seja, algo não tocável, algo
impossível de ser contactado pela ciência ou algo que possa ser localizado no
cérebro. E essas “leis” da separação entre cérebro e mente vigiram por quatrocentos anos enquanto a ciência,
pacificamente, aceitou o conceito proposto por Descartes.
Já no século
dezenove, a medicina mapeou toscamente o cérebro e determinou categoricamente
que ele era composto por “zonas” funcionais e que estas correspondiam
rigidamente a partes, órgãos ou membros do corpo, esse conceito foi chamado de
localizacionismo. Assim, se houvesse lesão na zona correspondente à mão
direita, por exemplo, esta deixava de funcionar. Ainda mais, definiu-se que o
cérebro era uma “caixa preta” que não se regenera, sendo que depois que
completa seu crescimento aos seis anos de idade, torna-se uno e acabado de
forma a não sofrer transformações e adições, e passando a perder massa depois
dos quarenta anos.
Corroborando o que
já se aventara no século dezenove, no início do século vinte, o neuroanatomista
e prêmio Nobel Santiago Ramón y Cajal aderiu à tese que o cérebro, ao
contrário, de tecidos e órgãos, era incapaz de se regenerar. Dado a
proeminência de quem falava ficou patente que essa era uma verdade
incontestável. Sabia-se que milhões de neurônios morrem à medida que
envelhecemos, enquanto outros órgãos constroem novos tecidos a partir de
células tronco, e que essas células não eram encontráveis no cérebro. Segundo
supunha-se, a explicação para essa ausência de células tronco se devia ao fato
que o cérebro era ultra especializado e extremamente complexo de forma que
perdeu a capacidade de produzir células de reposição. Supunham os cientistas
que um “neurônio novo” não poderia assumir a função de outro já degradado em
razão deste ter milhões de conexões com seus pares e constituir uma “peça” especializada
que levou anos para se formar, daí ser impossível substituí-la, a “peça nova”
ficaria sem função, algo assim como substituir um cientista falecido por uma
criança sem qualquer noção. Ramón afirmou que num cérebro adulto as vias
nervosas são fixas, concluídas e imutáveis. Os neurônios que morrem não podem
ser substituídos e nada se regenera.
Só que em 1965,
cientistas do MIT (Massachussetts
Institute of Technology) descobriram células troncos nos cérebros de ratos.
Chamaram sua descoberta de células tronco neuronais. Em 1980, ornitólogo
Fernando Nottebohm, notou que certas aves canoras mudavam ou melhoravam seu
repertório de cantos a cada primavera, e isso era intrigante. Feito a
dissecação dos cérebros dessas aves ele notou que haviam adquirido novas
células neuronais responsáveis pelo canto. Daí, outros cientistas, considerando
que cérebros são cérebros, independente se são de aves ou de humanos,
puseram-se a examinar cérebros de primatas e, como era esperado, encontraram as
células-tronco neuronais já encontradas em ratos.
Com a continuação
das pesquisas foram encontradas células-tronco neuronais ativas no bulbo
olfativo, no septo e medula espinhal humanas. Essas descobertas estabeleceram
que, ao contrário do que se admitia antes, o cérebro é plástico, ele tem
capacidade de recuperação e reposição de massa perdida. A plasticidade
substituiu, portanto, a rigidez até então admitida. Dissecações de cadáveres
humanos recentes mostraram neurônios novos mesmo em doentes terminais de idade
avançada. Era a prova definitiva que o cérebro tem capacidade de reposição de
massa perdida.
Estudos mais
recentes também derrubaram o localizacionismo, quando o cérebro perde alguma
parte por acidente ou doença, outra zona, geralmente localizada nas
proximidades, assume a função da área perdida. Existe um caso excepcional de
uma mulher de Falls Church, Virginia, EUA, que nasceu só com a metade direita
do cérebro e esta “assumiu” as funções do lóbulo esquerdo de forma que
Michelle, esse é seu nome verdadeiro, hoje com quarenta anos, é uma pessoa
quase normal com relação à inteligência, capacidade de ganhar a vida com seu
trabalho e atividades do dia-a-dia, conseguiu até formar-se num curso superior.
Além dessas
constatações, a ciência descobriu que nosso cérebro também se modifica a partir
do uso, quanto mais o usamos mais ligações se constroem entre os neurônios.
Isso quer dizer que, mesmo adultos e até idosos, têm seus cérebros modificados
pela utilização. Nossa cultura modifica o cérebro tanto quanto este modifica a
cultura. Homens de tempos anteriores à era industrial que não conheciam carros,
aviões, foguetes espaciais e informática tinham um cérebro muito diferente
(fisicamente) do nosso que somos obrigados a lidar com essas informações virtualmente
novas. Em consequências dessas descobertas fica, portanto, abolido para sempre
o conceito cartesiano da separação entre cérebro e mente. JAIR, Floripa,
26/05/12.
9 comentários:
Sempre acreditei que meu cérebro era o orgão mais importante do meu corpo... até o dia que percebi quem estava me dizendo isso!
Ótimo texto!!!
Abraços Fraternos...
"...fica, portanto, abolido para sempre o conceito cartesiano da separação entre cérebro e mente."
Ôpa! Radical demais, amigo! Você dissecou o hardware mas deu pouca atenção ao Sistema Operacional...
Abraços.
Bercellos,
Você tem razão. Ousei um pouco demais, tentei uma síntese de “Bem vindo ao seu cérebro”, “Sangue e entranhas” e “O cérebro que se transforma” em oitocentas palavras. Para se conseguir um texto enxuto como eu queria, claro e sucinto como os leitores merecem, haveria necessidade de um pouco mais de poder de síntese e um pouco mais de extensão, ainda que essas duas proposições pareçam contraponteais. Se eu me estendesse um pouco e desse chance aos “Sistemas Operacionais” do cérebro, certamente o texto ficaria melhor. Mas, consolo-me, o tempo corre em meu favor na medida em que aprendo e meu cérebro plástico muda em conformidade com o aprendizado me fornecendo mais controle sobre aquilo que abordo. Abraços e obrigado pela excelente observação, JAIR.
Para mim, o fato de cérebro e mente interagirem não significa que sejam a mesma coisa...
Se a mente encontra no cérebro sua interface ideal, e até influencia na sua configuração, isto não significa que esteja limitada a ele.
(Mas, pode estar limitada por ele!)
Acho um tanto arriscada a afirmação de que algo pode ser considerado definitivo, principalmente na área do organismo que a ciência menos conhece...
De qualquer forma, um tema interessante para se refletir...
Abraços, Jair!
É vivendo e se apreendendo!
O blog que pensa é sempre intrigante. Um dos poucos que não me causam lobotomia cultural!!!!
Primoroso texto.
Julio Verne é fonte no estilo.
Abraço.
Muito bom, está explícita aqui uma nova visão a respeito de nosso mai importante órgão. De massa intocável e caixa preta passa a ser algo maleável e modificável, seja pelo pensamento puro e simples ou pelo acúmulo de saberes que chamamos de c cultura. Parabéns, é por isso que esse blogue pensa.
Bravo polimata Jair, permito-me aditar a o preludio cartesiano uma homenagem a Rene Descartes como aquele que ofereceu base teórica para a criação do GPS.
Com continuada admiração,
Attico Chassot
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