sexta-feira, 19 de abril de 2013

O escravo

Caricatura feita através de fotografia por Cícero, grande cartunista de Brasília. 

Quaisquer definições que se deem à escravidão e escravo, estarão sempre se referindo a falta de liberdade de agir, ir e vir ou pensar, o trabalho sem ou com escassa remuneração ou aquelas condições políticas nas quais um déspota, sob qualquer linha ideológica, impõe sua vontade sobre outro(s) ser(es) humano(s). O regime da Coreia do Norte sob o jugo de Kim Jong-um é um exemplo típico de escravidão e seus cidadãos de escravos.
Pois bem, feito o prolegômeno, quero contar é que já fui escravo. Sim, é isso mesmo já fui escravo.
Nasci e vivi os primeiros dezessete anos de minha vida na cidade de Palmeira no Paraná. Como já escrevi antes, aquela cidade a partir dos anos quarenta até os anos setenta era eminentemente madeireira, isto é, empresários do ramo das madeireiras se travestiam de gigolôs de floresta e exploravam as abundantes matas de Araucárias existentes naquelas paragens. Palmeira, depois de ter passado por uma fase de algum progresso econômico com exploração da erva-mate, agora havia optado pelo desmatamento desmesurado dos pinheiros para que alguns enriquecessem ao preço do empobrecimento da região e a escravidão de gente pobre como meu pai e seus contemporâneos.
Todas as famílias de operários das madeireiras criavam um vínculo de dependência com seus patrões, de modo que não só os pais, mas os filhos quando atingiam quatorze anos também passavam a trabalhar naquelas empresas. Não foi diferente comigo. Quando completei quatorze anos meu pai incontinenti – sem se importar se eu queria ou não – inscreveu-me para me tornar operário braçal na Emilio Malucelli & Irmãos, madeireira na qual ele era empregado há mais de vinte anos. Trabalhei dos 14 aos 18 anos, quando então saí para servir na FAB e lá fiquei.
Até ai tudo bem, afinal como diz o ditado: ninguém morre de trabalhar. Ainda que se aceite isso como verdade verdadeira, talvez não seja bem assim. Operários das fábricas alemãs morriam de tanto trabalho escravo durante o regime nazista.
Bem, no meu caso foi um pouco diferente. Quando, muitos anos mais tarde precisei levantar meu anos de trabalho para fins de aposentadoria, descobri que não havia absolutamente nada provando que algum dia trabalhei na Madeireira Malucelli. Meus quatro anos lá trabalhados jamais foram registrados para fins de previdência, imagino que o produto $$$ do meu trabalho foi destinado a um caixa dois que aumentou os lucros daqueles patrões tiranos. Acresça-se a isso que minhas atividades no labor eram exatamente as mesmas que os adultos faziam, mas eu ganhava apenas metade do salário mínimo porque era de menor. Ainda mais, nunca me foram concedidas férias remuneradas. As possíveis horas extras que, por lei, deveriam ser pagas para trabalho noturno, nunca o foram, podia-se trabalhar a noite inteira – o que costumava acontecer com frequência – mas pagava-se horas normais. Além de tudo trabalhei em local insalubre onde o nível de ruído era algo terrível sem qualquer dispositivo de segurança – tampões de ouvido, por exemplo. Hoje tenho uma deficiência auditiva por traumatismo acústico que devo atribuir àquela maldita fábrica e seus ruídos ensurdecedores. O ambiente de trabalho além de insalubre era perigoso, todos os anos dezenas de menores se mutilavam nas máquinas mal projetadas e mal operadas por falta de segurança.
Resumindo. Trabalhar como adulto e receber metade de salário mínimo; trabalhar sem registro em carteira; trabalhar em local insalubre; não ter direito a férias. É ou não é trabalho escravo? Hoje sei o que sentem os cidadãos coreanos do norte. Hoje sei que aqueles algozes que se diziam empresários das madeiras ficaram ainda mais ricos com meu suor, meu tempo de vida e minha saúde. E eles ainda posavam de altruístas, pois que, segundo seu modo de ver as coisas, se eles não nos empregassem nós não teríamos onde trabalhar e possivelmente nos tornaríamos mendigos.
Como ilustração, coloquei uma caricatura de uma foto minha para lembrar que vivi uma caricatura de vida por alguns anos. Se houver justiça neste país, vou invocar a Lei Áurea e pedir indenização pelos danos a mim impingidos na minha adolescência. JAIR, Floripa, 14/01/2013. 

7 comentários:

Suzy Luz disse...

Jair,

Tenho a dizer que de fato você foi um escravo! Nas condições relatadas, que outro nome seria adequado para a situação?! Mas, felizmente, alcançou por seu próprio mérito a alforria, abrindo um caminho para outros que certamente se guiaram por seu exemplo e fugiram das condições insalubres das madeireiras.

Inacreditável a cobiça e a ganância do ser humano, que não hesita em explorar o seu igual! Texto maravilhoso para refletir e repensar a relação empregado/empregador.

Um abraço.

There disse...

Jair, ri muito lendo e relendo o escravo. Passou um filme na minha cabeça. Revi cenas hilárias, insalubres, tristes e também românticas, no período que fiz parte do"clube", entre Fevereiro/55 a Janeiro/61., quando fui alforriada.
Quanto a estréia da nova máquina, o texto produzido, surpreende com o estranho e gigantesco mundo dos insetos. Alguns bem intrometidos e devastadores como os ISÓPTEROS, meus inimigos.

Leonel disse...

Triste recordação de coisas que ainda ocorrem em rincões distantes do nosso Brasil...
Eu vivi mais de 10 anos na região nordeste, e vi a escravidão aplicada aos cortadores de cana e outros trabalhadores rurais...
Boa denúncia de corpo presente!
Abraços, Jair!

Anônimo disse...

Estimado CB. Ramão, gostei e acho que coisas assim so endurecem o nosso cerne e nos preparam para o mundo que obviamente não é cor de rosa. Quando vejo falarem que certos paizes usam crianças em seus exercitos, eu acho um crime terrivel, ai lembrei-me que incorporei na FAB a 1/7/63, com 16 anos.....so que nunca levei aquilo a serio.
Abração, e como ja escrevi, é muito bom te ter de volta.
Fabio

Tais Luso de Carvalho disse...

Nossa... esse ser que oprime, que coloca apenas suas intenções sujas em cima de algo ou de outros que aliviarão seus instintos mais pobres em vista de lucro, não passam de coisa nenhuma; seres humanos? Sim acredito, pois os únicos que são capazes disso é a nossa espécie.
Seu relato surpreende, comove, e deixa em cada um o desprezo por tão covardes atos.
Você é um dos sobreviventes da ganância dessa gente tão pobre de espírito.

Abraços, amigo!

Unknown disse...

Bacana.

Anônimo disse...

Revoltante, revoltante mesmo, em pleno século XXI ainda há registros de escravidão, e tudo em nome do maldito dinheiro, até onde chega a estupidez humana. Se eu fosse você, arrumaria testemunhas e processaria esses empresários até as calças, mesmo que não dê muito resultado, eu tentaria processar, só assim, que essa gentalha que se acha superior vai se colocar no seu devido lugar.