sábado, 5 de maio de 2012

Pipas

Pipa tipo Bidê.
É natural inferir que praticamente todos que foram meninos nos anos cinquenta, sessenta, brincaram com pipas. Os nomes podem variar de região para região, de cidade para cidade ou até de bairro para bairro, mas a diversão é (ou era) a mesma: voar com os pés no chão. Como eu disse, as denominções podem variar, então temos além do nome genérico pipa, as variações: arraia, raia, papagaio, redonda, pandorga, cafifa, bidê, quadrado, piposa, pepeta, (g)jereco, barrilete, foguete e até joeira nos Açores.
Não é minha intenção inaugurar uma seção de saudosismo, contudo, é quase compulsório fazer algumas referências sobre minha infância vivida em Palmeira, cidade que não tinha mais que dez mil habitantes naquele tempo e que, por isso, não tinha grandes opções de lazer tornando o evento de empinar pipas algo saboroso e desfrutado com grande prazer pela maioria da gurizada. Época de pipas coincidia com férias escolares do meio do ano, não por acaso os ventos alísios eram favoráveis e os garotos passavam a dispor de maior tempo para a atividade. A temporada iniciava sem qualquer combinação prévia. Um belo dia, viam-se garotos saindo de casa com suas recém construídas pipas coloridas, havia um encontro informal num campinho desprovido de fios e postes, que em outros dias servia como campo de peladas. A disputa, se é que havia disputa entre os aficcionados, se fazia por exposição de pipas mais criativas, mais coloridas, mais elaboradas, dos artefatos que voassem mais alto ou por mais tempo. Adite-se que as pipas apresentavam uma variedade enorme de formas e tamanhos, fugia-se do mesmismo que impera nas criações de agora. Além disso, pipeiro de respeito jamais adquiria sua pipa no comércio, ele a confeccionava em casa sempre. Um empinador que comprasse uma pipa perdia prestígio e deixava de ser considerado autêntico pipeiro. Fui um pipeiro bem razoável, minha especialidade eram as pipas tipo “bidê”, as quais eu mesmo construía e até ganhava uns trocados vendendo aos menos habilidosos.
Certamente a tradição de soltar pipas mais antiga veio do Oriente, no Japão é mais que um simples hobby produzir e empinar artefatos sofisticados que colorem os ares. Lá há uma tradição que, cultuada por “pipeiros” profissionais, se traduz numa atividade a qual produz verdadeiras obras de arte voantes. Nós brasileiros acabamos conhecendo as pipas através dos colonizadores portugueses por volta de 1596 que, por sua vez, as conheceram através de suas viagens ao Oriente. Acredita-se que a primeira pipa do mundo tenha surgido na China, há cerca de 200 anos a.C. criada por um general chamado Han Hsin. Com o passar do tempo, as pipas que haviam sido criadas para fins militares, tornaram-se uma arte popular naquele país. Aos poucos, foram levadas para países vizinhos como Japão e Coréia.
De qualquer modo, as pipas adornam a atmosfera, disputam espaço com as nuvens, fazem acrobacias cheias de firula, colorem os céus e nos dão prazer. Pipas são a extensão natural dos braços dos aficcionados que, como asas, constroem a ilusão do voo. Ou assim deveria ser.
Infelizmente o que se vê hoje é uma perversa inversão do ludismo puro que devia permear uma atividade em princípio totalmente inocente e voltada ao lazer. Por alguma razão em total desacordo com o espírito esportivo que devia ser o motivador da atividade, empinar pipas passou a ser um evento potencialmente letal, adicionou-se à brincadeira o maldito cerol. Cerol é uma invenção diabólica que mistura vidro em pó com cola, que a maioria dos empinadores de hoje costuma colocar na linha de suas pipas para cortar as linhas das pipas de outros empinadores. Essa opção bélica de um brinquedo em princípio inócuo, já atingiu muitos inocentes causando mortes, principalmente de motociclistas.
As linhas de pipas tratadas com cerol adquirem um gume afiadíssimo que corta linhas e pescoços com a mesma facilidade. Essa atividade que pode ser chamada de criminosa é tão mais perturbadora por que, em caso de acidente com vítima, a responsabilidade, em geral, não pode ser atribuída a ninguém. Pelo fato de que linhas que decepam cabeças serem linhas enroscadas em postes, árvores, casas e muros e já não fazerem parte de uma pipa ativa, não têm como saber quem as deixou ali, até porque, em qualquer lugar que se encontre uma linha abandonada, muitos empinadores por ali estiveram. Além disso, em geral, as pipas cortadas por outras caem longe do pipeiro que as empinava, então a responsabilidade passa a ser difusa, não atribuível a ninguém em particular.
Pobre país que não consegue proibir o comércio de algo tão letal e não possui meios de coibir os que usam tal arma. Pobre país que possui uma legislação tão abrangente, ramificada e macarrônica quanto ineficiente e mal aplicada. Pobre Brasil varonil que vê dezenas de jovens motociclistas serem decapitados por improbidade ou displicência de outros jovens (e adultos também) e nada faz. Que país é esse que permitiu que se transformasse uma atividade lúdica num ato criminoso? Que país é esse no qual não se podem ver pipas no céu sem pensar que dali poderá resultar mortes de inocentes? Que país é esse? JAIR, Floripa, 28/04/12.

11 comentários:

J. Carlos disse...

Brinquei com pipas, mas naquele tempo preferíamos chamá-las de papagaios, e eram muito criativas, grandes, de formatos vários, nada parecido com essas pinhas medíocres de hoje. Boa postagem, fez-me recordar dos tempos de criança, parabéns.

R. R. Barcellos disse...

Morcego e Pião - mas nomes para acrescentar a seu glossário voador.
Abraços.

Unknown disse...

Era a única brincadeira dos tempos de minha infância que eu não dominava de nenhum jeito!

Eu era(sou)muito ruim!

Professor AlexandrE disse...

Adorei essa postagem... Através dela pude regressar por alguns instantes ao meu passado de 'criança soltadora de pipa'!

Parabéns...
Abraços!

Leonel disse...

Infelizmente, as inocentes pandorgas que nos davam tanto prazer foram distorcidas pelo inesgotável espírito de porco de pessoas de mau-caráter, tornando-se coisas letais!
Ainda, como dano extra, as malditas linhas com cerol se enroscam nos fios elétricos e cortam o isolamento pelo atrito, causando curtos-circuitos e falta de luz!
Aqui no Rio, é uma praga!
Texto bem colocado, Jair!
Abraços!

Attico CHASSOT disse...

Obrigado, Jait, por recorder Tempos em que so conhecia PANDORGA empinada com linha corrente ' 16 e o maldito cerol era abominado..
Attico Chassot

Professor AlexandrE disse...

Além da grande qualidade de teus textos... quero elogiar a belissima vista de tua janela!

Parabéns!
Abraços...

Joel disse...

Jair. É verdade vc fazia belos bidês mas o papai aqui não ficava atraz e confeccionava belas arraias. Lembra?
Abraços de com força,
Joel

Luci disse...

Esse menino pandorgueiro,já tinha uma missão especial! Aqui da terra contemplava o céu, as nuvens e contemplava a sua arte esvoaçando-se nos ares...Não é atoa que se tornou um piloto da aeronáutica!
Espero que as criticas cheguem aos comerciantes obstinados e a outros pipeiros para que tripudiem o uso
desta coisa mortífera.Luci.

Daniela disse...

A pipa fez parte da infância de quase todos nós, e traz um brilho aos olhos! Aprendemos um monte com elas nos ares: física, engenharia, artes plásticas. A maior frustração da minha irmã foi quando uma vez meu pai tirou o dia para fazermos pipas, porém na hora de ver o resultado na prática, a obra de arte não subiu, rsrsrs... deve ter tido agluma falha técnica! Mas foi uma experiência única!!

Unknown disse...

só acho que é melhor previnir do que remediar, se existe a p... ta antena cortante, porque nao adquirir pra se protejer de uma possivel condição adversa. e pipas com essa linha é bom soltar em local aberto tipo um cerrado etc...caçar o que fazer é melhor do que implicar com a diversao dos outros fikdik