A placa
Tudo que sei sobre meu avô veio de relatos e “causos” sobre ele que minha mãe e meus tios contaram, porquanto que não tive a ventura de tê-lo conhecido. Meu avô nasceu, por volta de 1880, nas matas Lapeanas, no seio de uma tribo dos orgulhosos índios Kaingangs, os quais, desde tempos pré-colombianos, viviam às margens do Rio Iguaçu, num local de corredeiras piscosas hoje conhecido como Caiacanga, onde existe, nos dias atuais, sub-explorada jazida de diamantes, a qual já foi objeto de texto “Pescarias e diamantes” que publiquei aqui.
O que se sabe com certeza é que em 1890, devido a inconseqüente ocupação, por parte de madeireiros, agricultores e caçadores, das terras onde viviam os Kaingangs, ocorreu um grave surto de gripe que atingiu as populações ribeirinhas, particularmente os índios, sendo que estes - cujos organismos ainda não tocados por bio-invasores alienígenas apresentavam baixa resistência ao vírus - quase foram dizimados. A morte assolou a taba com tal intensidade que os poucos adultos saudáveis se tornaram coveiros diuturnos, quase não lhes restando tempo para proporcionar aos falecidos os tradicionais rituais fúnebres inerentes a seus costumes atávicos.
A história oral conta que meu avô saiu do seu local de nascença e tornou-se nômade indo parar na Lapa. A cidade da Lapa foi fundada em 1731 pelos tropeiros que faziam o caminho do Rio Grande do Sul para Piracicaba onde iam vender seu gado. Os fundadores da cidade haviam participado da Revolução Farroupilha e da Guerra do Paraguai, daí, talvez, o espírito belicoso dos habitantes da Lapa. Consta que David, ao chegar à cidade, foi adotado por certo coronel Pôncio que lhe atribui um nome “cristão”: David Rodrigues Cordeiro, e que foi alfabetizado e tornou-se um membro integrado na família do coronel.
No meu conto biográfico “O pacote” vem o trecho descrevendo o que se convencionou chamar “Cerco da Lapa”, episódio da Revolução federalista que ocorreu no sul do Brasil logo após a Proclamação da República, e teve como causa a instabilidade política gerada pelos federalistas, que pretendiam "libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio Prates de Castilhos", então presidente do Estado. A luta armada atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Veio o ano de 1894 e, com ele, as tropas federalistas comandadas pelo sanguinário Gumercindo Saraiva e seus “castilhanos” que, num ímpeto napoleônico, arrasavam tudo por onde passavam, tendo já derrotado o Coronel Adriano Pimentel em Tijucas do Sul. Havia, no ar, um cheiro de morte e aniquilação, porquanto os boatos davam conta que as tropas invasoras - mais de três mil homens - aos inimigos legalistas não costumavam dar trégua, assim como não a pediam também. Gurmercindo era famoso por degolar os prisioneiros que caíssem em suas mãos.
Meu avô, juntamente com o próprio coronel Pôncio e seus filhos, foi incorporado a tropa defensora do perímetro da cidade, ainda que, por sua pouca idade, não lhe tenha sido fornecido arma, ele passou a ser ajudante de cozinha.
Muitos anos depois, contava ela à minha avó, que tinha lutado deveras, havia empunhado uma manlincher e defendido, juntamente com outros soldados, uma posição crucial no centro da cidade onde a luta era ferrenha. Pois bem, minha avó desdenhava dessa atitude heróica, achava que era fanfarronice dele, e nós acabamos convencidos que a suposta luta armada só existia na imaginação do nosso avô. Estávamos errados.
Há pouco tempo, lendo o depoimento do major Custódio Clemente Pereira, do 17º Batalhão de Infantaria da Lapa, que havia lutado durante o “Cerco”, deparei-me com este trecho bastante interessante do texto dele: “No dia 7 [fevereiro de 1894], logo ao romper da aurora, atacaram-nos por todos os flancos com grande veemência, em número aproximado de três mil homens, entrando pelos quintais das casas da Rua Boa Vista, a qual estava em nosso poder, entrincheirando-se nas casas, fuzilavam nossas tropas a dez metros de distância, o combate tornou-se medonho em todas as frentes, chegando a estabelecer-se a arma branca. Tornou-se terrível principalmente na Rua Boa Vista, onde inimigos em número superior a 60 haviam penetrado na casa de Francisco de Paula, unida a uma trincheira onde se achava um Krupp (canhão de 75 milímetros de fabricação alemã) sob o comando do tenente Gustavo Lebon Régis. Neste momento, saídos das instalações de intendência que se encontravam a trinta metros do canhão, surgiram seis soldados, liderados pelo ajudante de furriel David Cordeiro, armados com manlinchers e, determinados, enfrentaram os invasores com tal ferocidade que estes recuaram com muitas baixas. Dos seis soldados, dois saíram feridos sem muita gravidade. O Krupp e sua guarnição haviam sido salvos pela coragem daqueles seis soldados”
Então ficou esclarecido, avô David realmente “pegou em armas”, e não só isso, a participação dele e de seus companheiros foi fundamental para salvar a vida dos operadores do canhão que estavam em perigo de morte frente aos inimigos. O Exército, reconhecido, deu a meu avô a promoção a sargento, conforme atesta placa com seu nome no Panteão dos Herois da Lapa. Descobri in loco numa planta que existe no monumento aos heróis, que da forma que o canhão estava colocado, sua guarnição ficara de costas para os atacantes na hora que meu avô os salvou. Ainda que a participação de David tenha se resumido àquela investida, sua atuação foi heróica, sem dúvida. Este relato visa resgatar a esquecida figura de David Rodrigues Cordeiro que foi um ser humano admirável, que viveu além e acima de sua época, aliás, de qualquer época. David Lapeano, ainda que não tenha vivido em dias atuais, onde lhe seria aplicado com a maior justiça título de herói da pátria, o foi sem qualquer dúvida. JAIR, Floripa, 01/07/11.
O que se sabe com certeza é que em 1890, devido a inconseqüente ocupação, por parte de madeireiros, agricultores e caçadores, das terras onde viviam os Kaingangs, ocorreu um grave surto de gripe que atingiu as populações ribeirinhas, particularmente os índios, sendo que estes - cujos organismos ainda não tocados por bio-invasores alienígenas apresentavam baixa resistência ao vírus - quase foram dizimados. A morte assolou a taba com tal intensidade que os poucos adultos saudáveis se tornaram coveiros diuturnos, quase não lhes restando tempo para proporcionar aos falecidos os tradicionais rituais fúnebres inerentes a seus costumes atávicos.
A história oral conta que meu avô saiu do seu local de nascença e tornou-se nômade indo parar na Lapa. A cidade da Lapa foi fundada em 1731 pelos tropeiros que faziam o caminho do Rio Grande do Sul para Piracicaba onde iam vender seu gado. Os fundadores da cidade haviam participado da Revolução Farroupilha e da Guerra do Paraguai, daí, talvez, o espírito belicoso dos habitantes da Lapa. Consta que David, ao chegar à cidade, foi adotado por certo coronel Pôncio que lhe atribui um nome “cristão”: David Rodrigues Cordeiro, e que foi alfabetizado e tornou-se um membro integrado na família do coronel.
No meu conto biográfico “O pacote” vem o trecho descrevendo o que se convencionou chamar “Cerco da Lapa”, episódio da Revolução federalista que ocorreu no sul do Brasil logo após a Proclamação da República, e teve como causa a instabilidade política gerada pelos federalistas, que pretendiam "libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio Prates de Castilhos", então presidente do Estado. A luta armada atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Veio o ano de 1894 e, com ele, as tropas federalistas comandadas pelo sanguinário Gumercindo Saraiva e seus “castilhanos” que, num ímpeto napoleônico, arrasavam tudo por onde passavam, tendo já derrotado o Coronel Adriano Pimentel em Tijucas do Sul. Havia, no ar, um cheiro de morte e aniquilação, porquanto os boatos davam conta que as tropas invasoras - mais de três mil homens - aos inimigos legalistas não costumavam dar trégua, assim como não a pediam também. Gurmercindo era famoso por degolar os prisioneiros que caíssem em suas mãos.
Meu avô, juntamente com o próprio coronel Pôncio e seus filhos, foi incorporado a tropa defensora do perímetro da cidade, ainda que, por sua pouca idade, não lhe tenha sido fornecido arma, ele passou a ser ajudante de cozinha.
Muitos anos depois, contava ela à minha avó, que tinha lutado deveras, havia empunhado uma manlincher e defendido, juntamente com outros soldados, uma posição crucial no centro da cidade onde a luta era ferrenha. Pois bem, minha avó desdenhava dessa atitude heróica, achava que era fanfarronice dele, e nós acabamos convencidos que a suposta luta armada só existia na imaginação do nosso avô. Estávamos errados.
Há pouco tempo, lendo o depoimento do major Custódio Clemente Pereira, do 17º Batalhão de Infantaria da Lapa, que havia lutado durante o “Cerco”, deparei-me com este trecho bastante interessante do texto dele: “No dia 7 [fevereiro de 1894], logo ao romper da aurora, atacaram-nos por todos os flancos com grande veemência, em número aproximado de três mil homens, entrando pelos quintais das casas da Rua Boa Vista, a qual estava em nosso poder, entrincheirando-se nas casas, fuzilavam nossas tropas a dez metros de distância, o combate tornou-se medonho em todas as frentes, chegando a estabelecer-se a arma branca. Tornou-se terrível principalmente na Rua Boa Vista, onde inimigos em número superior a 60 haviam penetrado na casa de Francisco de Paula, unida a uma trincheira onde se achava um Krupp (canhão de 75 milímetros de fabricação alemã) sob o comando do tenente Gustavo Lebon Régis. Neste momento, saídos das instalações de intendência que se encontravam a trinta metros do canhão, surgiram seis soldados, liderados pelo ajudante de furriel David Cordeiro, armados com manlinchers e, determinados, enfrentaram os invasores com tal ferocidade que estes recuaram com muitas baixas. Dos seis soldados, dois saíram feridos sem muita gravidade. O Krupp e sua guarnição haviam sido salvos pela coragem daqueles seis soldados”
Então ficou esclarecido, avô David realmente “pegou em armas”, e não só isso, a participação dele e de seus companheiros foi fundamental para salvar a vida dos operadores do canhão que estavam em perigo de morte frente aos inimigos. O Exército, reconhecido, deu a meu avô a promoção a sargento, conforme atesta placa com seu nome no Panteão dos Herois da Lapa. Descobri in loco numa planta que existe no monumento aos heróis, que da forma que o canhão estava colocado, sua guarnição ficara de costas para os atacantes na hora que meu avô os salvou. Ainda que a participação de David tenha se resumido àquela investida, sua atuação foi heróica, sem dúvida. Este relato visa resgatar a esquecida figura de David Rodrigues Cordeiro que foi um ser humano admirável, que viveu além e acima de sua época, aliás, de qualquer época. David Lapeano, ainda que não tenha vivido em dias atuais, onde lhe seria aplicado com a maior justiça título de herói da pátria, o foi sem qualquer dúvida. JAIR, Floripa, 01/07/11.
11 comentários:
Jair,
o DD. David R. Cordeiro irá compreender minha situação, estou certa.
Depois eu volto aqui para comentá-lo, prometo a você!!
VIM DIZER , MEU AMIGO, QUE ESTOU SENTINDO SUA FALTA NO NIVER DOS MEUS BOTÕES!!!!!!!!!
Perdoe se não vim avisá-lo antes, mas ainda temos muito a festejar por lá e estou avisando ainda alguns amigos...
Sua presença É IMPORTANTE!
Venha.
Aconchegue-se no melhor lugar da casa.
Sirva-se à vontade.
E divirta-se muito!!
Te espero, não deixe de vir!
Graça
Jair, empolgante resgatar um fato assim tão indiscutível numa citação de heroísmo clara e decisiva, pois numa ação deste tipo, perder um canhão de 75 mm poderia ter mudado a sorte do combate.
Comparo este ao feito daquele cozinheiro de um navio americano em Pearl Harbor, que assumiu uma metralhadora antiaérea e abateu dois aviões japoneses!
Só que esta ação citada do teu avô provavelmente teve mais peso no resultado final da batalha do que a do americano.
E o melhor é que ele sobreviveu para gerar uma família e um neto como você!
Show de bola este post!
Abraços, amigo!
David Laqueano, ou mais precisamente, David Rodrigues Cordeiro, foi realmente um Herói!
QUE GRANDE ACHADO ESSE SEU, jAIR! e QUE ORGULHO!
Uma descoberta assim, para um neto, que sempre achou ser 'ferrenhice' as aventuras bélicas narradas pelo avô, é de emocionar!!
Certamente que David seria condecorado hoje, elevado, exaltado, reconhecido, não restam dúvidas!
Parabéns pelo legado riquíssimo que ele te deixou, meu amigo!
A placa é a prova cabal disto tudo...
Salve a memória de David Cordeiro!!!
*****
muito grata, Jair, pela presença gentil e amável nas minhas 'caraminholanças'...rs
- Você, amigo, sabe que já li este relato, e quero reiterar aqui minha admiração pelo feito histórico - histórico, sim - de seu ancestral.
- Abraço.
Jair, o que posso dizer? Estou deveras emocionado. Emocionado e orgulhoso, afinal, David Cordeiro pai de Francisca Cordeiro, minha mãe, é meu avô.
Grande abraço,
Joel
Abraço,
Ruy.
Caro manonovo, Jair:
Pra ficar aqui num velho chavão, digo: “foi com incontida emoção” que li no teu blogue o excelente textículo que vc produziu sobre nosso avô David. E acrescento, a leitura me trouxe à memória — já queimando óleo noventa por conta dos neurônios que desertaram —, coisas da minha infância. Eu fui um felizardo, pois tive a chance de conviver com nosso avô David e, embora dele tenha poucas reminiscências, algumas de quando ele já estava cego permaneceram comigo. Diziam nossos tios Beto, Edo e Fredo que eu, por ser o primeiro neto, tive o privilégio de acomodar-me sentado aos seus/dele joelhos para ouvir as histórias que me contava, enfatizando suas correrias pela província antes de acomodar-se no Pinheiral, quando casou com nossa avó. Também tenho gravado na cachola a noite do velório, ocorrido na casa dos avós que situava-se quase à frente da nossa. Eu tinha cinco, seis anos de idade e, brincando pela casa sem atinar com a enormidade que representava para a nossa família aquela perda, passei algumas vezes sob a mesa onde repousava o corpo do nosso avô. Nossos tios — mais tarde —, inculcados por uma secular crendice sertaneja, diziam que pelo fato de ter vazado sob a mesa do “guardamento” eu seria sempre um cara “sem medo”. Claro que não assino embaixo dessa afirmativa, pois o “ter medo” faz parte da minha existência de homo sapiens, não muito sapiens.
Grande abraço do manovelho,
Ruy.
Muito estimado Jair:
Não vou ratificar os feitos heroicos de teu avô, pois isto foi louvado com oportunidade por outros comentaristas que me precederam aqui.
Vou repetir-te algo que que já te há quase um mês num comentário, agora o trago referido a teu ilustre biografado: Teu avô existe, porque tu contas sua história. A perpetuação de sua memória encanta filhos e netos que o conheceram e bisnetos e outros que se agregaram ao clã familiar ou a nós teus leitores.
Ainda o acréscimo: loas por cultivares o valor da história oral.
Com admiração
attico chassot
Jair. Além do Ruy, o Amadeu tbm teve contato com nosso avô. Dois privilegiados.
Joel.
Os três netos que tiveram contacto com o avô David, por ordem: Ruy, Tereza e Amadeu. Nós, os mais novos, não tivemos esse privilégio.
Costa Matos, muito legal, como é bom resgatar a memoria de um pais. Parabens, eu sabia que tu tinhas um bom "pedigre".
Abração
Fabio
Ola Jair...
Adorei esta história que vc descreveu do David. Mas era nisso mesmo que gostaria de lhe falar umas coisas.
Eu acho q nos somos parentes distantes pois vc deve conhecer meu avo Eduardo Cordeiro filho do seu avo DAVID R. CORDEIRO. Desculpa eu não me apresentei, meu nome é Davi Cordeiro Filho do Claudio dos Santos Cordeiro q é filho do Eduardo Cordeiro q é filho do David R. Cordeiro, 1 sargento do Exercito brasileiro.
Eu moro aqui na capital Curitiba, esses dias vi seu Blog e logo reparei q tudo isso batia com as histórias q meu avo contava, alem do mais, a Lapa é aqui perto e tenho uma foto do nome do meu bisa avo.
Se vc puder passar seu mns pra gente conversar mas eu ficaria muito grato. O meu msn é esse davi_tatu@hotmail.com me add. Add um contato q consta ser seu no seu Blog.
Obrigado e até mais...
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