sábado, 14 de maio de 2011

Sobre comida


O livro “O linguado” de Gunter Grass é, talvez, a maior viagem lítero-culinária em forma de romance que já foi produzido. No decorrer da estória que começa no neolítico e acaba em 1970, há uma profusão de receitas de comidas exóticas descritas em minudências que podem dar engulhos no leitor de paladar mais sensível. O fato é que o tema comida não é tão comum numa obra literária do porte desse livro, são mais de oitocentas páginas, com talvez mais de uma centena de receitas gordurosas, super condimentadas feitas com ingredientes de origens duvidosas. Parece que a intenção do autor é mostrar as nuances das relações amorosas entre homens e mulheres e o quanto estas são dominadas por aqueles, contudo, através de estranhas analogias, adentra o mundo culinário impondo ao leitor descrições de farta variedade de comidas e seus preparos, de modo a tocar naquela parte do cérebro que detecta a falta de alimentos e indica que é hora de comer. No “linguado” sempre é hora do almoço.

O assunto alimentos foi tema de um programa que assisti no canal Discovery sobre a arte japonesa de comer baiacu, ou fugu como os japoneses o chamam. É que os japoneses, especialmente aqueles cultores de grandes desafios gastronômicos, gostam de comer fugu o qual é um risco calculado para comensais. Extremamente venenoso, se não preparado corretamente, o baiacu causa paralisia, dificuldade de respiração, perda de consciência e, em casos extremos, morte. A tetradotoxina presente no baiacu é cem vezes mais venenosa que o cianureto de potássio – composto químico usado pelos nazistas para cometer suicídio, se capturados, durante a Segunda Guerra Mundial. A história registra que 1889 a iguaria foi oferecida ao então primeiro-ministro japonês, Hirobumi Ito, em forma de sashimi que, surpreso com seu sabor único e suave, liberou o consumo, mas com a condição de que somente cozinheiros licenciados devessem prepará-lo. Desde então, cozinheiros podem se licenciar através de treinamento cuidadoso e técnico para retirar o ovário, fígado, intestino e pele do peixe, que é onde se encontra a toxina letal. Uma vez retiradas essas partes, o peixe é inofensivo, havendo mesmo a venda do produto já limpo e pronto para o consumo no mercado japonês.

Como disse, o canal Discovery apresentou um programa no qual os cinegrafistas entrevistavam pessoas comendo o baiacu em restaurantes credenciados para servir a iguaria. Num desses locais havia uma família bem numerosa, aparentemente de posses, já que o preço do fugu era salgado, comendo e expondo suas impressões, quando um senhor mais velho acusou que estava sendo intoxicado. Ele começou apresentar uma dormência na boca, primeiro sinal de envenenamento pelo peçonhento peixe. Houve certo início de pânico pelo que sobreviria, mas o homem, solenemente anunciou que continuaria comendo até o fim, só então chamassem a ambulância para levá-lo ao hospital. Depois que ele foi levado em companhia de uma das mulheres, a família continuou comendo tranquilamente. As estatísticas esclarecem que, em média, nove pessoas morrem por ingestão de fugu por ano no Japão.

Qualquer que seja a história dos alimentos, a verdade é que nos alimentamos com o que fomos condicionados a comer, qualquer que seja nosso cardápio sempre se constituirá daquilo que aprendemos que é “bom”, “saudável”, “apropriado” etc. Para povos comedores de carnes de vaca, porco e galinha pode parecer estranho que outros se alimentem de insetos como grilos e baratas, ou lesmas, iguaria que os franceses adoram, mas lembremos que existem culturas que acham estranho e deploram o consumo de carne de porco, animal “impuro”. Ao contrário do adágio, “Somos o que comemos”, na verdade, comemos o que somos, nossa maneira de alimentar-nos é reflexo da maneira como fomos criados. A cultura e os produtos disponíveis ditam nosso cardápio, ninguém é livre para comer o que estiver disponível. Há relatos de sobreviventes de naufrágios que morreram de inanição por se recusarem a sequer pensar em comer seus companheiros mortos. Existe, também, registros de casos extremos, como de sobreviventes em selvas onde o que comer é, teoricamente abundante, mas que deixaram de se alimentar por que desconheciam o que poderia servir de alimento e não se atreveram experimentar o desconhecido, os condicionamentos sócio-culturais foram mais fortes que a fome que acabou ceifando-lhes a existência.

Importante também, na medida em que o Planeta se tornou uma aldeia, na qual as distâncias se tornaram desimportantes e as coisas passaram a acontecer em “tempo real”, também a comida tendeu a tornar-se mais padronizada, mais uniforme, ainda que guardando suas diferenças regionais e, principalmente, culturais. Hoje até na China come-se hambúrguer, e não porque os chineses optaram por comê-los, e sim porque o Mac Donald impõe seus calóricos, insípidos e nutricionalmente inócuos sanduíches a eles desde a abertura do país para o mundo. Podemos afirmar que a imposição de fast food em todos os setores do Planeta, nivelou por baixo a qualidade da comida ofertada, e quem perdeu com isso foi a sociedade globalizada, o que quer que essa expressão signifique.

Ainda mais, a moda dita que se queremos ter saúde devemos nos alimentar com coisas “saudáveis”; que coisas saudáveis são aquelas que não são saborosas, são mais caras e difíceis de encontrar na maioria dos lugares. Fora isso, a indústria de alimentos é a única que jamais sofre recessão, por pior que a economia esteja não é possível viver sem alimentar-se, daí a produção, distribuição e venda de alimentos são atividades que mais crescem no mundo. Afinal, se não comermos, morremos de fome, não é mesmo? JAIR, Floripa, 10/05/11.

3 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Os vegetais são seres vivos que se alimentam da luz do Sol e dos elementos da Terra. Os animais são seres vivos que comem vegetais e outros animais.
- Conclusão: nós humanos somos devoradores de cadáveres... e disfarçamos esta infeliz sina inventando rituais elaborados, seja nos jantares de cerimônia, seja na pastelaria da esquina...
- Abraços, devorador de livros!

Leonel disse...

Jair, tenho que admitir a impressão que esta impactante postagem me causou!
Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o garbo com que o ilustre filho do sol nascente encarou a sua sorte, decidindo concluir a refeição mesmo sabendo estar envenenado pelo baiacu!
Autêntico piloto kamikaze!
Essa história da escolha do que é prato e o que é tabu se aplica em todo mundo, com estranheza de todos com o que os outros comem!
Abraços!

Attico CHASSOT disse...

Meu caro Jair,
ofereces, uma vez mais, um ágape multicultural.
Não houve como não evocar uma ocasião em Marrocos quando minha glote se estrangulava pela ingestão de comida exótica. Foi das vezes que senti minha vida mais ameaçada.
Obrigado pela referência ao livro do Guinther Grass . Não conhecia ‘O linguado’.
Um bom domingo pré-viagem,

attico chassot