Para se entender a importância do evento e da expectativa pelo que viria em seguida, deve-se registrar que se tratava da década de cinquenta, e numa pequena cidade do interior como Palmeira, praticamente sem opções de lazer, qualquer novidade que surgisse já seria interessante, imaginem um Cinema! Pois é, na data festiva de aniversário de 132 anos de fundação do município, com direito a desfile cívico, banda de música tocando no coreto da Praça Conceição e discurso do prefeito, foi inaugurado o Cine Teatro Municipal. Cine, porque se tratava de um cinema, primeiro e único da cidade; Teatro, porque, além da tela panorâmica havia um palco com bastidores e dois camarins para os atores e atrizes; Municipal, porque, na falta de empresário que se dispusesse a investir em lazer, a prefeitura assumiu o empreendimento. Inclusive a prefeitura funcionava no mesmo prédio.
Mais de que lazer, mais do que lugar para se assistir um bom filme, mais do que um teatro com apresentações musicais e espetáculos de entretenimento, o Cinema, como nós o chamávamos, representou mudança de hábitos dos cidadãos, representou um profundo marco cultural que os habitantes da cidade adequaram às suas rotinas. Daí em diante, ir ao cinema era um programa familiar ou individual obrigatório, de acordo com interesses ou escolhas que passaram a existir. Por exemplo, marcava-se encontro com a pretensa namorada no Cinema, esta “guardava lugar” ao lado dela para o varão. Era ponto passivo, primeiro encontro sempre no Cinema, os pares que assim procediam “oficializavam” o namoro, até porque, “todos” os viam juntos e, dessa forma, não havia como fugir ao “compromisso”. Nos dias de hoje, se diria que ambos “queimavam o filme” para as possíveis futuras paqueras, estavam namorando e indisponíveis aos demais. Simples e definitivo, o Cinema havia criado um costume que definia claramente uma situação social. Um estranho ficaria em pé, mas jamais ocuparia um “lugar guardado” que a moçoila houvesse reservado ao eleito.
O Cinema também criou outros hábitos que não consigo explicar. Na Praça em frente existia uma banquinha de guloseimas que vendia girassol, sim, as sementinhas da planta com casca e tudo, só que torradinhas. Então, ir ao Cinema significava passar na banca e comprar um pacotinho de girassol para comer durante a sessão. Veja bem, praticamente todos os espectadores comiam a semente da Helianthus. Comia-se colocando a semente na boca e estalando a casca com os dentes de forma a liberar a polpa macia. Imaginem a cena, filme de suspense, momento de anticlímax, silêncio mortal na tela e trezentos expectadores estalando sementes de girassol nos dentes. Acredito que Hitchcock jamais cogitou uma cena dessas.
Minha experiência cinemal começou de maneira bem interessante. Na minha casa só podiam ir ao cinema nas tardes de domingos as crianças que soubessem ler, medida bem racional, visto que a maioria dos filmes era legendado e não havia porque uma criança analfabeta gastar o sofrido dinheiro do pai num espetáculo que não ia entender. Pois bem, estávamos no ano de 1953 e eu havia recém entrado no curso primário. Não sei como as demais crianças aprenderam a ler, mas, no meu caso, foi num átimo. Nos primeiros dias de março, logo nas primeiras aulas de alfabetização, a professora Lair Scheröder explicou as letras, a formação das sílabas e como estas formavam as palavras. Para mim foi “EUREKA!”, percebi que bastava conhecer as letras, juntá-las em forma de sons conhecidos e tínhamos qualquer palavra. Havia entendido o mecanismo daquela elementar gramática e passei a ler TUDO a partir dali. No domingo seguinte abordei meu pai para que ele me desse os dois cruzeiros necessários à compra do ingresso da matinê. Meu pai me olhou e disse: Como você quer assistir filme se não sabe ler? Está a apenas um mês na escola! Eu sei ler, respondi. Ele pegou um jornal que estava sobre a mesa e desafiou-me: Então leia isto. O jornal O Estado do Paraná trazia a manchete: “Preço internacional do café cai” em letras grandes. Passei a ganhar o dinheiro do ingresso a partir de então.
As crianças de minha rua eram todas filhas de operários das madeireiras, então, dinheiro para a obrigatória sessão dos domingos nem sempre existia. Nossa inventividade criava mecanismos para descolar a grana necessária, só que às vezes era impossível alavancá-la a tempo, então valia alguns expedientes pouco ortodoxos. Havia dois porteiros, um em baixo que cuidava da entrada da platéia (mais cara), e outro na parte de cima que fiscalizava a entrada do Balcão (mais barato). Seu César, o porteiro de baixo, costumava acompanhar o filme dando umas espiadas bem longas na tela, depois que a sessão começava. Era aí que alguns piás espertíssimos conseguiam se esgueirar rapidamente para dentro da sala de projeção, o mais das vezes percebidos pelo seu César, mas já se escafedendo pelo meio das poltronas sem chance de serem capturados. Essa modalidade de assistir filme de graça chamava-se entrar “de ratão”. Alguns guris eram tão confiantes nessa técnica que, mesmo tendo o dinheiro do ingresso, gastavam-no antes em refrigerantes e gibis e entravam “de ratão”. Existia uma variante dessa prática que permitia a entrada de vários garotos juntos. Consistia em sacrificar um deles que, ostensivamente, “tentava” entrar quando o porteiro estava atento. Seu César diga-se, sentia certo prazer sádico em impedir os moleques de burlar o Cinema, então corria atrás do contraventor, no qual aplicava uns cascudos, e os demais aproveitavam para adentrar o recinto correndo. A artimanha, que podia ser chamada de “boi de piranha”, era muito hilária para os expectadores. Esclarecendo, o guri “escalado” para levar os cascudos sempre tinha dinheiro para o ingresso, ele apenas participava da trama para facilitar a vida dos colegas “ratões”.
Como vetor cultural o Cinema era veículo inestimável. Os habitantes da cidade que já tinham visto filmes eram poucos, então não havia “massa crítica” suficiente para contrapor opiniões, declarar preferências, discutir o trabalho deste ou daquele ator, apaixonar-se por esta ou aquela atriz. O cinema, formador de opinião como se diria hoje, assegurou para os cidadãos de Palmeira a inserção no mundo oliudiano. Gary Cooper, James Stewart, Rock Hudson, Clark Gable e outros bonitões faziam os corações das moçoilas do velho burgo baterem em compasso acelerado. Já as preferências da piazada recaíam nas bem fornidas, Libertad Lamarque, Vivian Leigth, Zaza Gabor e Elisabeth Taylor. Eu, particularmente, gostava mesmo era da Ingrid Bergman, o nariz dela era espetacular.
Quando funcionava como Teatro, a casa trazia atrações como Mario Zam, sanfoneiro internacionalmente conhecido, hoje falecido. Mas a apresentação que mais marcou época foi a do hipnotizador Karl Maia, ele hipnotizou pessoas conhecidas da gente, e as vimos fazendo besteiróis no palco, tornou-se um espetáculo inesquecível até hoje.
Como veículo social, o Cinema apresentava uma sessão de filme grátis toda primeira segunda-feira do mês. Todos os assentos eram tomados, muita gente ficava em pé e outros sentavam nos corredores entre as cadeiras. Nossos conterrâneos que moravam nas vilas rurais vinham em carroças, cavalos ou a pé para ver os filmes, em geral filmes nacionais os quais facilitavam a compreensão pelos analfabetos que, creio, eram maioria naquelas populações. Viva o Cinema! JAIR, Floripa, 20/01/11.
6 comentários:
- Você não dá ponto sem nó, meu amigo... essa descrição do primeiro cinema de Palmeira serve para incontáveis outros "pulgueiros" da mesma época. Lembro dos noticiários que antecediam os filmes... Herbert Riches? Acho que era esse o produtor.
- Abraços.
Jair, cena digna de um filme, você lendo a manchete do jornal para o seu pai, provando que já sabia ler, para ele um fato inusitado! O filme seria: "Primeira Sessão de Cinema"!
Empolgante mesmo essa narrativa da sua "sessão nostalgia" que muito me tocou!
Lá em Porto Alegre, antes do filme, também tinha o cine jornal que o Barcellos citou e ainda um tal de "Atualidades Francesas", com notícias internacionais, na maioria da Europa. Eu gostava da sequência inicial, em que a camera mostrava a Terra no espaço e ia se aproximando...
Obrigado por mais esta remexida no fundo do baú!
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Que delicia a sua narrativa!!! Fez-me lembrar do Cinema da minha infância...Também uma cidade interiorana, Irati. O que nunca esqueci, foi o hábito que tínhamos de levar pilhas de gibis, que trocávamos com outras crianças... Meu irmão e eu "devorávamos" essas leituras!
Também ficaram na memória, os filmes de Tarzan e os épicos como " Ben Hur, Os ultimos dias de Pompéia, os Dez Mandamentos e por aí afora...
Obrigada, pela ótima leitura!
Beijos de luz...
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Que texto delicioso!!! E realmente, sua paixão pelo cinema veio junto com a leitura!! Uau!! Adorei!!
No texto que escreveu sobre o Cine Teatro Municipal de Palmeira vc diz que Mario Zan foi casado com Inezita Barroso. Vc tem certeza? Será que não está enganado? A biografia escrita por Mariangela Zan, filha de Mário Zan, diz que este foi casado 7 (SETE) vezes mas não dá os nomes das ditas cujas. Já as biografias de Inezita que estão na internet, dizem que a mesma foi casada com Adolfo Cabral Barroso de quem herdou o sobrenome, e mais nada, por isso estou achando que vc está enganado.
Se eu estiver errado me desculpe, a intenção foi apenas a de colaborar com vc.
Grande abraço,
Joel.
OBS. Em São Paulo havia uma senhora chamada Ana Zan, que alguns diziam ser mãe de Mário Zan, que frequentava a SNB e comercializava com moedas na Praça da República.
Joel,
Acho que você tem razão, o senhor Mario Giovanni Zandomeneghi nunca foi casado com senhora Inezita Barroso. Minha deteriorada memória está cadaz vez pior, tenho que escrever tudo que lembro urgentemente e esperar que meus amigos que conhecem as estórias me corrijam. Já acertei o texto.
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