Tabu, do Houaiss: pessoa, animal, prática ou coisa em que é vedado tocar ou referir-se a ela por deter um poder sobrenatural julgado perigoso, impuro ou repugnante. Canibalismo é, essencialmente, tabu.
Por ser tabu, para as pessoas civilizadas a idéia de canibalismo é repulsiva, tanto que, quando alguns indivíduos se veem frente a uma realidade, sem alternativa senão a de comer carne de seus companheiros ou morrer de fome – como aconteceu com um avião uruguaio com 45 ocupantes que caiu na cordilheira do Andes em 1972 – o resto do mundo assiste a isso com horror, mas também com certa dose da fascinação mórbida. Mais ou menos como aquelas pessoas que param para ver um desastre de automóveis onde haja mortos.
O canibalismo é visto como uma das mais bárbaras práticas de tribos primitivas e como prova de sua agressividade selvagem. Portanto quando arqueólogos encontram restos fósseis de nossos ancestrais onde há provas cabais que eles comeram seus semelhantes, é usual as pessoas julgarem que descendemos de seres brutais que almoçavam seus semelhantes para não serem jantados por eles. Pura necedade, porquanto aceitar essa hipótese é ignorar o real significado do canibalismo, além, é claro, o de comer o semelhante para não morrer de fome.
Além dos leões, os humanos são os únicos mamíferos pelo que se observa que em certas ocasiões comem seus iguais. Quando um leão macho assume o controle de um bando, em geral come os filhotes e passa a produzir sua própria prole, empenhando-se para impedir que outros machos fecundem as fêmeas sob seu “comando”. Embora isso possa parecer cruel e carnificina desnecessária porque contraria a conservação do bando, a razão biológica para o comportamento do macho alfa é clara: a geração da prole deve ser de um animal muito poderoso e dominante: ele mesmo. Entretanto, o canibalismo entre humanos – antropofagia – ocorre por razões muito diferentes.
De modo geral, há dois tipos de canibalismo, e a distinção entre eles é fundamental. No primeiro tipo, os membros de uma tribo comem indivíduos de outra, este é o chamado exocanibalismo. Na segunda versão, conhecida como endocanibalismo, os indivíduos comem membros de sua própria tribo. As razões para essas duas formas de antropofagismos são diferentes, mas ambas as práticas ainda são encontradas entre tribos não civilizadas.
No exocanibalismo os vencedores de uma batalha ou de uma guerra costumam comer seus inimigos para exorcizar suas almas que poderiam vir a lhes causar danos ou a suas lavouras. Normalmente é praticado logo após a morte do guerreiro e comem apenas algumas partes consideradas “nobres” de suas carnes, como pedaços de músculos das pernas e dos braços. Em geral apenas os que participaram dos embates é que participam do rito, mulheres, velhos e crianças ficam de fora. Essa prática ainda é observada em algumas tribos da Nova Guiné e se tem notícias que silvícolas da região entre o Brasil e a Colômbia também o fazem.
No caso de endocanibalismo, os mortos são devorados ritualmente por seus parentes para perpetuar suas qualidades e, talvez, manter suas almas vivas através de partes de seus corpos. Na prática, o que se faz é torrar alguns de seus ossos ao fogo, triturar o carvão resultante e colocar o pó numa bebida de milho a qual os parentes devem beber. Como se vê, algo muito mais “light” do que em geral se pensa.
Então, como propõe a História da Infâmia brasileira a qual diz que Dom Pedro Fernandes Sardinha, e outros 90 integrantes de sua comitiva foram devorados pelos terríveis índios Caetés, parece ser um exagero que visava demonizar os índios de modo a justificar quaisquer atrocidades que contra eles se praticasse. Cogitam os estudiosos, a possibilidade de que os três sobreviventes que conseguiram escapar, teriam responsabilizado os caetés com o objetivo de utilizar a falsa acusação da morte do bispo pelas mãos destes para persegui-los até a extinção, a fim de tomar-lhes as terras. História nada edificante, portanto.
Fora esses episódios, algumas vezes a história já descreveu sobreviventes de naufrágios comendo a carne de seus companheiros mortos para não morrer de fome, nada diferente do que aconteceu nos Andes. O canibalismo, pelo que se percebe, não é e nunca foi uma opção de vida, uma forma de obter proteínas em substituição à caça, foi apenas a consequência de situações especialíssimas, ou um rito cultural mais ou menos exótico de algum povo isolado e com costumes estranhos para nós civilizados. JAIR, Floripa, 23/04/11.
8 comentários:
Eu ainda não me convenci de que os nossos amigos caetés dispensaram uma boa carne branca...
Tem tantas histórias sobre canibalismo dos índios brasileiros que eu não vejo dificuldade em acreditar que os caetés tenham feito um tiragosto de Sardinha frito!
Foi isto que me ensinaram na escola, mas por outro lado, também me ensinaram algumas coisas que depois eu constatei serem diferentes!
Mas, como você mesmo disse, tem tribos onde variantes desta prática existem até hoje...
Um assunto bem interessante...e arrepiante!
Abraços, Jair!
- Tirante os "cogita-se que", "quem sabe", "pode ser", eu concordo 100% com você e assino embaixo do Leonel. Abraços.
Também acho que há exagero nesses relatos de canibalismo, é comum histórias de pessoas que morreram de fome por deixarem de comer cadáveres de seus semelhantes que morreram primeiro. Quanto aos índios, os europeu costumavam pintá-los da piores cores possíveis, era vantajoso para eles, na medida que os silvícolas fossem selvagens "comedores de gente" erá fácil justificar sua perseguição e extinção, para vantagem dos brancos.
Pô, canibalismo? Tái uma coisa que ninguém gosta de abordar. Talvez por causo do tabu que voce fala. Abraços e continue escrevendo, quem sabe daí sai um novo livro.
Muito estimado Jair,
a cada blogada tua, devia-se acrescentar uma estrela no título de teu blogue. Ele não só nos faz pensar, como incita a gostoso diálogo que aprendemos na maiêutica socrática.
Li dois livros acerca do desastre de 1972 nos Andes. No tenho como refrescar-me a memória agora. Mas jovens desportistas não eram de uma escola católica uruguaia e deram a seu ágape a dimensão de um ato eucarístico?
A transubstanciação, para os de fé católica (diferente do que para os luteranos), tem uma dimensão antropofágica: “Tomai e comei, isto é o meu corpo....!”
A propósito porque Galileu foi julgado e condenado. Não foi por sua adesão ao copernicanismo. Ele ensinava, quase 1,5 século antes de Lavoisier, que ‘uma substância não pode se transformar em outra, sem que haja uma alteração na sua natureza!”
Em minha blogada de amanhã vou comentar uma quase celebração antropofágica feita pelos estadunidenses com o corpo de Bin Laden.
Gosto de ler-te
attico chassot
Tabus são sempre fascinantes, interessantes e alguns até mesmo horripilantes!!
Parabéns! Mais um texto fantástico!
Abraços,
Ilka
Muito interessante o texto! A diferença descrita do endo e exocanibalismo falou de algo que eu nem imaginava! Sempre aprendo por aqui!!
Olá amigo
Ora aqui está um tema dificil de escrever e de comentar, o tabu impera... Há pouco tempo assisti a uma reportagem sobre esse episodio passado com os sobreviventes do voo, confesso fiquei horrorisado com os relatos, acho que nesse caso concreto foi uma questão de sobrevivencia, mas contina a ser muito contestada. Provavelmente a humanidade teria preferido que eles tivessem morrido todos a ter que conviver com isso.
Pela minha parte nem sei o que pessar...
Grande abraço
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