A história não oficial registra que o Imperador Pedro II, num viés aparentemente racista, estimulou a migração de europeus para o Brasil com intuito de “branquear a raça” dos brasileiros aqui nascidos escurecidos pela miscigenação com negros e índios. Verdade ou não, o fato é que a partir de 1824 quando os alemães começaram a migrar para a região sul do país, passando pelas migrações de italianos (1880), de japoneses (1908) e vários outros povos tais como lituanos, russos, ucranianos, romenos e poloneses, principalmente os estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, receberam uma massiva leva de europeus e japoneses que, se não branquearam as peles dos brasileiros, pelo menos trouxeram contribuições culturais e laborais expressivas que moldaram os costumes da região sul do país.
Escrevi no texto, “As Polacas” o seguinte: “Sou oriundo de uma região, centro-sul do Paraná, onde o elemento europeu branco é muito numeroso, russos, poloneses, italianos, alemães, ucranianos, são tantos que gente amorenada e negra é minoria”. Pois é, a parte o fato de “gente branca” ter sido comum durante minha infância, o convívio com culturas européias trouxe-nos influência no dia-a-dia dos costumes, do idioma, das roupas, das expressões artísticas e, principalmente, da culinária. Até hoje vina wurst é a maneira “correta” de se denominar salsicha para cachorro quente em várias cidades do Paraná. Influência alemã, com certeza.
Minha mãe era uma ótima cozinheira! Por certo afirmação de filho amoroso, não é mesmo? Errado. Quem dizia eram os outros, eu não tinha parâmetros para comparar, só comia alimentos preparados por ela, então como saber? Assim, cozinheira talentosa e que aprendeu arte culinária na convivência com os descendentes de europeus, suas criações, apesar de restritas pelos recursos escassos de uma família pobre, eram autênticas homenagens a Apicius. Sua habilidade em variar o trivial com pratos verdadeiramente nativos como mingau de bugre e “introduzido” como goulash húngaro, por exemplo, faziam dela uma virtuose do fogão e da mesa.
Dentre as tantas deliciosas comidas de minha infância, uma, em particular, marcou minha memória gustativa para sempre. Trata-se de um prato de origem eslava de nome aproximado tampf kleis que, numa tradução livre bem tupiniquim, virou pão de bafo. A hetorodoxa combinação de carne de porco cozida com repolho, onde se adiciona pãezinhos crus a serem cozidos no vapor dos dois alimentos numa panela hermeticamente fechada, resulta no que se convencionou chamar de pão de bafo, prato que minha mãe confeccionava com maestria e que pensei nunca mais encontrar por aí.
A sete de Abril deste ano, Palmeira comemorou 192 anos de existência e eu lá estive por quatro dias, aproveitando a festa e revendo os parentes que há dez anos não os via. Como faço habitualmente quando estou naquela cidade, fui almoçar no restaurante “Dona Catarina”, o qual pertenceu a uma prima de minha mãe. A prima Catarina já é falecida, de modo que quem toca a casa é sua amiga Ana, cozinheira inspirada e criativa. Pois bem, qual não foi minha surpresa ao constatar que o prato principal daquele dia, a pièce de résistance por assim dizer era, justamente, o tampf kleis o delicioso pão de bafo. E para não ficar só nisso, o sabor era o mesmo que estava armazenado lá no fundo de minha memória do paladar. Foi como encontrar um diamante há muito procurado. Cometi o pecado da gula, coisa incomum, visto que desenvolvi rigorosa disciplina alimentar por causa do diabetes e hipertensão. Para culminar, minha prima Neuza nos brindou com mais pão de bafo de elevadíssimo sabor no dia seguinte. Se não foi um êxtase alimentar chegou bem perto disso.
Palmeira fabrica uma espécie de queijo cozido conhecido como queijo de pescoço porque tem um pescocinho pelo qual é pendurado. Às vezes chamado de queijo bola por causa do formato, consta como tendo um sabor inigualável que muitas vezes foi imitado por produtores de outras cidades vizinhas, mas nunca foi igualado. Pode ser folclore, mas gosto muito daquele produto, me sabe a algum sabor primitivo, básico que remete ao gosto de leite in natura, ou algo do gênero. Parece que a fama desse lacticínio transpôs as fronteiras do burgo e tornou-se mais conhecido que a cidade. Certa vez, quando morava no Rio de Janeiro, fui apresentado a um médico carioca que quando soube que havia nascido em Palmeira, fez a seguinte observação: “Aquela cidade que produz o delicioso queijo de pescoço?” O nome da cidade não lhe ficara gravado na memória, mas o queijo sim. Não foi a única vez que ouvi referência ao queijo, minha vizinha ao lado encomendou o tal laticínio quando soube que eu estava indo para lá. Pois é, parece que pão e queijo são duas iguarias palmeirenses que, se divulgadas com competência, podem redimi-la de ser apenas um ponto indistinto no mapa. Pão e queijo podem ser o passaporte para a cidade entrar no circuito gastronômico de iguarias regionais e projetá-la como ponto turístico de degustação a ser visitado. JAIR, Floripa, 15/04/11.
7 comentários:
- Pão de bafo e queijo de pescoço... que tal você abrir uma "franchising" de nome "Fungando no Cangote"?
- Mas, infames trocadilhos à parte... bela matéria. Deu água na boca!
- Abraços.
Fiquei babando, imaginando essas delícias da cozinha sulina.
Um belo resgate dessas iguarias oriundas das comunidades européias que fizeram do sul a sua morada.
Feliz você, que conseguiu saciar a sua gula, reencontrando esses sabores da infância...
Abraços!
Jair, meu caro colega de blogares,
quando o caracterizei como polímata ainda não tinha conhecimento do viés culinário de teus textos. Em meu livro Alfabetização científica: questões e desafios para a Educação tenho um capítulo sobre a cozinha de minha mãe que teu saboroso escrito me evocou.
Semana que vem, talvez, estarei em Floripa, oxalá houvesse espaço para saborearmos um pão de bafo na panela.
Com admiração
attico chassot
Jair. Além das iguarias citadas por vc nunca vi em outro lugar a Carne de Onça, tão tradicional em Palmeira. Uma pergunta: Nessas tuas andanças por este mundo de Deus, alguma vez comeu um cachorro quente mais delicioso do que aqueles comíamos no bar do Wile? Aquela mostarda, hummmm!
Abraços de com força,
Joel.
Realmente, Joel, aquela mostarda escura, forte e picante nunca mais encontrei em lugar algum. Bem lembrado. Abraços, JAIR.
Olá,
Nunca havia ouvido falar no Pão de Bafo e no Queijo de Pescoço. Interessantíssimo. Apreciadora de pão e queijo que sou, gostaria muito de um dia experimentar tais iguarias. Lá nas minhas Minas Gerais não me lembro de ter visto nada parecido! Fiquei curiosa! Beijos da Nora,
Oi Jair,
Conheci seu blog por indicação do Ruy Lopes. Adorei sua história e fiquei com água na boca pra experimentar o pão e o queijo.
Bjs,
Otávia
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