quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Obra


Do Huaiss: ObrarExpulsar excrementos; defecar. Sujar-se de matéria fecal.

Colegas da FAB instaram-me a escrever alguns “causos aeronáuticos” os quais eu tenha presenciado na minha longa experiência voando neste Brasil varonil. Lembraram-me que eu poderia ter vivenciado algum que fosse digno de relato. Pois bem, passei por alguns “relatáveis” e até hilários, mas gostaria de contar um que sempre acho particularmente edificante.

Foi em 1979 quando eu era mecânico de helicópteros SH-1D na Base Aérea de Florianópolis. Estávamos em vôo de instrução, cujo instrutor era o tenente Cláudio e o aluno era o tenente coronel Salger, subcomandante da Base. Há que se esclarecer que o TC Salger era descendente de alemães aqui do sul, muito austero, sério, empertigado, não costuma brincar nunca, coluna ereta, tinha o porte de um nazista sem a maldade daqueles. Alto e magro, se usasse monóculo lembraria o coronel Klink do antigo seriado “Guerra, sombra e água fresca”, obviamente sem o gestual caricato daquele personagem. Falava bem alemão, francês e inglês, costuma ser frio no trato com as pessoas, nunca “abria a guarda”, ninguém tinha intimidade com ele, embora todos o respeitassem e sentissem certo temor de sua postura marcial de milicão irado. Era senhor prá cá, senhor prá lá, uns diziam que o sangue que corria em suas veias era azul cerúleo, outros juravam que estava mais para o azul cobalto, mas nunca se chegou a um consenso.

Então, sobrevoávamos o oeste catarinense, lá no planalto, próximo a Lajes, sobre extensas plantações de não sei o quê - as plantinhas mal se viam brotando do solo revolvido. Não tínhamos voado nem meia hora quando o TC Salger comunicou que estava acometido de cólica intestinal violenta, havia comido alguma coisa na noite anterior que não lhe caíra bem. Notava-se pela sua expressão que ele se encontrava constrangido e visivelmente angustiado. Não sei se pelas cólicas ou por ter que expor-se num assunto tão delicado, tão íntimo. Foi falar e, imediatamente, pedir para que o Ten Cláudio pousasse ali mesmo na plantação de não sei o quê. Como sabemos, helicópteros e seus ruídos característicos são o que há de mais atrativos para o público leigo. Lembram ímãs na presença de limalhas de ferro. Pois bem, o piloto procurou rapidamente um terreno plano próximo a um capãozinho de mato – não tão próximo a ponto de pôr em risco as pás do rotor, é claro, mas perto o suficiente para que o TC Salger pudesse correr até àquele matinho para soltar o barro com privacidade. Pousada a máquina, Salger pegou rapidamente uns papéis que conseguiu alcançar e abriu a porta. A coisa era muito mais urgente do que supunha nossa vã filosofia! Foi abrir a porta, agachar-se ali mesmo ao lado do barulhento “Sapo”, baixar o macacão e a cueca e, com grande ruído, adubar com violência aquela plantação delicada que mal se projetava timidamente do chão pátrio. E quem já tentou obrar de cócoras, com as calças arriadas, sabe o quanto é difícil não sujar a roupa com a matéria expulsa do organismo com certo ímpeto, ainda mais numa emergência. Pois é, como depois viemos perceber, Salger não ficou livre desse efeito colateral de sua obra.

Como escrevi acima, o ímã helicóptero atraiu toda a limalha em forma de colonos das redondezas. Nunca vi tantos em tão pouco tempo vindos de não sei onde. Eram dezenas de agricultores curiosos que se aproximaram de todos os lados, respeitando apenas os rotores que continuavam girando. Era hilário, o Salger, com a famosa compostura em frangalhos, defecando, vermelho, não sei se de vergonha ou porque estava em êxtase fecal diarréico. O piloto e eu não resistimos e começamos a rir, mesmo sabendo que poderíamos ser devidamente punidos, não nos contivemos diante daqueles cidadãos simplórios, cheios de curiosidade, perguntando: o que está acontecendo? E Salger sem ter como se esconder, colocava uma providencial carta de navegação sobre o rosto a guisa de tapume. Aliás, essa mesma carta serviu para limpar sua retaguarda que, nessa altura, todo o povo ingênuo e simples à volta havia contemplado a cores e sons em tempo real. Não sei dizer como o majestático militar se comportou depois de tão inusitada defecada. Não mais tive oportunidade de voar com ele e pouco tempo depois ingressei na Escola de Oficiais Especialistas.

OBS – Os fatos aqui narrados são a pura expressão da verdade, apenas os nomes foram trocados para evitar constrangimentos... e ações judiciais também. JAIR, Floripa, 31/03/11.

16 comentários:

Leonel disse...

Situação bem incômoda, Jair, principalmente levando-se em conta a pose marcial do cavalheiro!
Eu imagino como foi o "clima" na cabine, durante o regresso desta funesta missão!
Abraços!

R. R. Barcellos disse...

- Em cores e sons, disse você... e eu acrescentaria "em aromas" - delicadamente espalhados por um ventilador gigante.
- Viva nóis... que em episódios semelhantes pudemos evitar as luzes da ribalta.
- Abraços, amigo!

Attico Chassot disse...

Muito estimado Jair,

vamos organizar uma pesquisa interblogal acerca de Seleções– e claro que contamos com aquele ‘blogue que pensa’ no grupo.

Admiro muito Dawkins, mas me desagrada o sua ‘ evangelização’ do ateísmo. Irrita-me do missionarismo. Quanto ao teu texto vou publicá-lo talvez amanhã. Tenho pautado um texto acerca do preconceito contra os negros, envolvendo Bolsonaro e seus asseclas.

Com crescente admiração

attico chassot

http://mestrechassot.blogspot.com

www.atticochassot.com.br

J. Muraro disse...

Também vivi ou soube de histórias interessantes enquanto fui milico, só não tenha a habilidade de contá-las com elegância como você o faz. Meus parabéns pelo excelente texto!

Gerúsia disse...

Pelo que escreveste parece que no fim houve certa justiça natural contra esse nazista personificado. Gostei do blog, vou visitá-lo mais vezes.

Marylisa disse...

Nossa, maravilhoso post, uma história muito engraçada e que nos mostra que o orgulho é uma atitude perversa e totalmente desnecessária, porque muitas vezes nos deparamos com pessoas assim e estamos sendo maltratados por elas.
Mas é isso ai, contar a história faz com que achemos engraçado e nos divertimos com a cara do "milicão irado" como disse você.
Um abraço.

Mariza disse...

Passei por aqui, como sempre pelo prazer de ler seus posts, tentei visualizar a cena, dai não deu prá segurar uma grande e sonora gargalhada. Obrigada, foi muito bom.
beijos

shan-Tinha disse...

hu horinha pra fazer lembrar que somos todos iguais! sem lenço e sem documento numa tarefinha tão comum que independe do querer ou não, é o corpo ditando as regras! ótimo e PARABÉNS!

Carla Castro Maia disse...

Tudo bem é humano, dessas situações e atos que nem a realeza escapa, por mais que queira convencer os súditos, de sua divindade, mesmo nestes tempos e com tanto segredo escancarado, mas em se tratando do TC Salger, por mais que a gente ria, tb não dá pra evitar um certo pesar pelo homem, pois qto maior o orgulho... Em função disso a fragilidade do homem ficou bem mais exposta... Nua, literalmente!

Joel disse...

Jair. Bastante interessante este seu realto além de hilariante. Entretanto, acredito que vc deve lembrar de um caso parecido que aconteceu ha muitos anos atras quando dois jovens depois de vistarem o Museu do Ipiranga, em São paulo, perambulavam nas imediações, meio que embasbacados com as coisas que viam, quando bem em frente ao Museu um deles sentiu as mesmas cólicas que teve o pobre TC Salger, e, sem outra alternativa, para que não fizesse nas calças, teve que se aliviar entre os arbustos que circundavam o local, arbustos estes podados ou tosados em forma retangular formando um muro baixo. Podia-se ver a cabeça do dito cujo sobressaindo sobre o muro. Lembra?
Aliás, foi neste dia que ambos tiraram uma foto com um lambe-lambe que foi batizada pela Myrna (hummm!) de: Dois Palermas no Museu.
Abraços de com força.
Joel.

JAIRCLOPES disse...

Joel,
Já que você lembrou também me veio à mente tal evento. Parece que aquela foi uma cagada "histórica", já que o local era quase exatamente onde supostamente Don Pedro proferiu o grito que, tão forte era, separaou o Brasil de Portugal. Abraços.

Daniela disse...

Com tantas descrições me senti no local, no meio dos colonos!! Que situação hein?! Ainda mais para um alemãozão!!

Rogério Olegário disse...

JJ, que descrição, hein! Parabéns. Ri até lacrimejar, imaginando o quanto o "alemão" lacrimejou também. Um abraço.

Tereza disse...

Jair, meus afazeres domésticos estão na espera. Preciso me recompor do ataque de risos que fui acometida ao ler o hilário relato. Essa é a única OBRA que dispensa QI elevado, títulos, brasões, sangue em cores diferentes, etc. Antes do início desse processo, existe alguns avisos as vezes constrangedores mas... O Tenente Coronel em questão, usando sua autoridade, exigiu pouso rápido e foi salvo!!!
Meu carinho,
TM

Camila Paulinelli disse...

Olá,
Que história engraçada! Adoro contos verídicos! Muito bom ver a empáfia vencida por uma força natural oriunda do mesmo ser. Hilário! Beijos da nora

Adri disse...

Adorei!!!