sábado, 5 de março de 2011

Pinhão


Só quem viveu à sombra dos pinheirais, em contacto íntimo com a Araucaria angustifolia, conhecida como Pinheiro do Paraná, pode ter lembranças que envolvam o gosto do pinhão catado no chão e comido à moda nativa: no sapêco. Nos meses de maio e junho, quando do sazonamento dos pinhões, era programa obrigatório dos garotos de minha infância saírem à cata dessas sementes nas matas que circundavam a cidade de Palmeira. Era diversão garantida andar pelas trilhas das florestas e procurar pelas tão saborosas sementes antes que, cotias, pacas, ouriços, camundongos e serelepes; e aves como papagaio-de-peito-roxo, gralha-picaça, airus, gralha azul, tucanos e insetos, os atacassem. As incursões bem sucedidas dependiam de timing apurado: nem antes que os pinhões caíssem naturalmente, nem depois que os predadores os atacassem.

No entender prático de nosso tempo e conhecimento, existem dois tipos de pinheiros quanto às suas pinhas e ao tempo de maturação delas. O primeiro, mais alto e esguio, tende a ter um perfil do tipo “taça de champanhe” e dá pinhas menores, com pinhões mais abundantes, formatos alongados e claros mesmo quando sazonados. O segundo tipo apresenta o perfil de guarda-chuva, mais baixo com tronco mais grosso, suas pinhas são maiores, sazonam mais tarde e os pinhões, maiores, menos abundantes, são mais escuros e mais deliciosos. Existe um terceiro perfil, o cônico ou tipo árvore de natal tradicional, mas este formato se refere a pinheiros novos ou espécimes anômalos que tenham nascido fora de seu ambiente natural, as florestas ombrófilas.

Pois bem, o ideal seria observar o timing exato e colher os pinhões ainda frescos no chão, só que isso era apenas teoria ou comportamento não observado, a vontade de comer as sementes o quanto antes ditava outras regras. O mais das vezes o que nós fazíamos, capitaneados pelo nosso tio Beto, era ir à colheita antes das pinhas debulharem seu conteúdo no solo, ou seja, quando as pinhas já maduras ainda não tinham se desfeito lá no alto dos galhos. Então, tio Beto cortava um bambu bem comprido, normalmente encontrado na chácara do seu Ângelo Nicolate, e o levávamos para cutucar as pinhas de modo a fazê-las soltarem os pinhões. Catadas as sementes, em geral fazíamos uma fogueira com as próprias agulhas da árvore, agulhas que chamávamos sapê, e jogávamos os pinhões no fogo de forma a assá-los a moda indígena chamada sapêco. Ficavam deliciosos.

Fora esse consumo in natura o ato da colheita, os pinhões eram levados para casa onde podiam ser cozidos com um pouco de sal ou assados na chapa do fogão a lenha e amassados com macete de madeira de forma a ficarem achatados e soltarem a casca, a esta modalidade chamávamos de bilé.

Pois bem, além do pinhão ser fonte importante de proteínas e carboidratos, ele proporcionava-nos a fantástica oportunidade de trilhar aquelas matas maravilhosas com imbuias e cedros centenários ornadas de orquídeas, especialmente a Lelia purpurata que, na época de floração, tingia com tonalidades arroxeadas a floresta. A experiência de incursões na floresta fresca mesmo no verão, perfumada por aromas sutis de plantas, musgos e flores; sonorizada por pios de pássaros os mais variados e assombrada por brisa que farfalhava as árvores dando-lhes movimento de vida perceptível, como se estivessem a falar umas com as outras, é algo inexplicável, algo que só é possível sentir, descrever não.

Mas, uma das vezes em que fomos com tio Beto e o bambu comprido, nos dirigimos a uma mata pequena bem próxima ao bairro onde morávamos, coisa de quarenta minutos a pé. Havia um aglomerado de pinheiros muito antigos, portanto, muito altos, nessa pequena floresta que, segundo nosso tio, pertencia a um conhecido dele, Kaminski, o qual dera permissão tácita para que tio Beto colhesse pinhões lá. Acompanhávamos nosso tio, o Joel, eu e o Jonas, irmão mais novo do Joel, devia ter uns quatro ou cinco anos. Pois estava o tio Beto trepado numa árvore, da qual podia cutucar as pinhas com mais facilidade com o bambu e nós apanhávamos os pinhões que caíam no chão, quando ouvimos gritos de alguém nos enxotando do lugar. “Saiam da minha propriedade, ladrões!” ou coisa que o valha. Assustados, nós os piás, corremos. Tio Beto, sobre a árvore, involuntariamente camuflado entre a ramagem, identificou que quem gritava era o Kaminski, e também gritou: “Kamisnki! Sou eu! Kaminski! Sou eu!”, e o Kaminski nem aí, munido com um facão, ameaçava com gestos. Corremos tanto que nossos calcanhares batiam nas nádegas e só paramos quando a distância ao polaco raivoso e seu ameaçador facão nos pareceu segura.

Serenados os ânimos depois do susto, Jonas tinha urinado nas calças, tio Beto, indignado, ainda reclamava do "amigo" não o ter reconhecido e feito aquele papelão, Joel e eu consideramos que foi o mico do ano e deixamos de comentar o acontecido. Mais tarde, ficou por conta do Jonas os comentários do evento que, segundo pareceu a ele, foi causado por um cachorro chamado Kaminski. Perguntado sobre o fato, respondia: O Kaminski mordeu o calcanhar do tio Beto. E ponto final, não havia mais o que falar. JAIR, Floripa, 27/01/11.

8 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- Tive oportunidade, quando morava em Curitiba, de saborear os pinhões - tanto em foma de bilé como num sapêco (mais civilizado, na assadeira); eram deveras deliciosos, só lhes faltando o inigualável tempero das aventuras de infância.
- Essa foi de dar água na boca, Jair. Parabéns e um abraço.

Leonel disse...

Porra, perdi o comentário na hora de publicar!
Jair, eu te invejo por teres nascido numa terra onde podias apanhar os pinhões no pé!
Eu lembro quando minha mãe comprava daqueles sacos onde eram expostos no armazém do seu Milim, o árabe do meu bairro.
Em casa, eramfervidos numa panela com água e sal, e depois descascados a unha, sem os macetes dos paranaenses! Ficavamos com as unhas impregnadas daquela massa castanha que envolve os pinhões!
Mas, valia a pena!
Obrigado por mais esta lembrança deliciosa!

J. Muraro disse...

Essas "aventuras" da infância estão supimpas. Gosto de pinhões também, mas nunca pensei que pudessem ser homenageados com um texto tão interessante. Parabéns.

Marly disse...

Bran,acabo de receber os livros do Jair!!! Amanhä cedo viajo para Köln e já vou lendo no trem...Beijos,queridos!!! BOM CARNAVAL! Amei o que o Jair escreveu hj sobre o pinhäo... Viciei no BLOG QUE PENSA! kkk

Tereza disse...

A narração que o Jair fez sobre a colheita do pinhão, me fez rir muito!!!!!!!!

Bjs,
TM

Joel disse...

Jair. Bem lembrado o acontecido naquela ocasião, fato que ja comentamos aqui mesmo.
Queria saber o seguinte: Em quase todos os livros que a CBJE publicou com algum texto meu, há também escritos de uma poetisa de Curitiba chamada Anna Karina Kaminski. Por estar na mesma região será que não se trata de uma descendente do Kaminski que nos deu aquele susto? É bem possível, não?
Grande abraço,
Joel.

Léia disse...

Caro escritor, conheci o fruto da araucária há exatos 5 anos e meio, tempo em que moro no sul de MG. Acho que não consegui cozinhar direito o pinhão, pois coloquei na panela de pressão com água e sal e ficou um tempão, quando retirei ainda estava duro e o sabor não era bom... talvez eu não tenha conseguido fazer direito... mas tentarei novamente saborear o tão famoso pinhão. Abraços.

Anna disse...

Olá Joel.

Apesar de o sobrenome ser o mesmo, este Kaminski não é meu parente não, rsrs.

Abraços
Anna Karina