terça-feira, 22 de março de 2011

A cidade


A oeste do litoral e, no entanto, bem a leste do outro extremo do estado, sobre o segundo planalto, estende-se a Cidade Clima, vinda das sombras do passado, de olho nas luzes do futuro, esta era a Palmeira de minha infância. Eu a via de manhã, quando os primeiros rubores do dia começavam a despertá-la; lá estava ela, verde com tons de cinza e pincelada de mil cores por suas casinhas de madeira, plantadas no solo marrom. Naquela hora, nos arredores pobres, a fumaça azulada já subia em espirais das chaminés das modestas moradas, acusando vida no interior humilde de suas paredes. Os zunidos dos apitos das madeireiras cresciam e fundiam-se em uníssono de tal forma a despertar de seus sonhos honestos, aqueles que daí a momentos iam fervilhar, sonolentos, as ruas, apressados, rumo a seus trabalhos insalubres que lhes proporcionavam, o mais das vezes, salário de fome.

Uma vez, conta-se, Palmeira dormia o justo sono, lerda e modorrenta, no berço dos campos gerais, quando subitamente o batismo do ferro e vapor d’água acordou-a com sua fúria barulhenta de comboio apressado em busca de seu destino além. Acordou-a e ela, feliz, sentiu-se integrada ao mundo: Havia uma linha férrea a partir de então. E as colinas verdes gritaram para as araucárias e estas gritaram para os campos, capões de mato e riachos de águas límpidas, talvez já antecipando saudade do silêncio que não mais existiria, talvez sentindo que o trem haveria de trazer o “progresso” seguido da degradação ambiental, tão zelosamente guardado naquelas paragens e quadra da história. O povo feliz, entorpecido pelo inusitado evento, de nada suspeitava. No rastro do mecanismo barulhento de rodas de ferro viria a maldição do “progresso”.

A bela Cidade não era a primeira nem seria a última donzela a quem a sede de “progresso” levou a entregar seu corpo imaculado e conspurcar o belo templo que a natureza levou milhões de anos para consolidar. Também outras, além das donzelas, obsedadas pelo brilho do ouro, na corrida do lucro, deixam para trás os ideais elevados e se adornam com os atavios da impostura e adotam o jogo sujo do avilte do ambiente em troca de trinta dinheiros nas algibeiras. A cidade doou suas carnes, e as inocentes matas milenares pagaram o elevado preço do “progresso” que alguns ilustres empresários elegeram como o futuro do castíssimo feudo. Pobre Palmeira, empobrecida de suas matas ombrófilas devoradas pelos gafanhotos carcamanos que, depois de saciados, arribaram para outras plagas onde, diante de outras cidades inocentes, trarão novas devastações. Pobre Palmeira! Tão comum é esse desvio que quase todos o acham normal. Tão indiscutível parece o “progresso”, que receia-se questionar se a meta da vida não é exatamente essa; se o fim último do homem não será apenas alcançar a riqueza em detrimento da natureza. E se esse for o erro comum da civilização, que perigo terrível estende-se diante da espécie humana. O homem, em busca do ouro, vende sua alma e talvez se torne maldito para sempre.

As madeireiras de Palmeira e a opção pela extinção dos pinheirais em busca da prosperidade material foram a ruína das próprias empresas e o afundamento da cidade para a categoria dos lugares estagnados e sem o sabor buliçoso da vida esperançosa. Pobre Palmeira! Teus supostos filhos diletos te sugaram o leite copioso enquanto este existia, e extraíram a carne verde que te dava vida, poluíram rios e degradaram matas; do manto vegetal que cobria tuas terras nada mais restou; as araucárias sobranceiras à mata se tornaram tábuas e caibros nos mais distantes lugares do país; e qualquer lucro que a madeira tenha proporcionado está longe de tuas ruas. Hoje és sombra daquele pujante burgo que prometia ares puros, pelos quais foste cognominada Cidade Clima. Pobre Palmeira que apostou e perdeu; eras ingênua a ponto de acreditar no canto das sereias obesas que olhavam seus próprios umbigos sem ligar para o futuro da urbe que os acolheu. Pobre Palmeira! Tratada como rameira quando eras apenas uma vestal impúbere e crédula que aceitou a cantada do empresário madeireiro dissoluto e mal intencionado. Hoje não te vejo “vinda das sombras do passado e de olho nas luzes do futuro”, hoje és o retrato esmaecido daqueles seres moribundos por inanição e jogados no monturo comum onde tudo que já foi deixou de ser. Se há futuro, é apenas aquele onde existem ganhadores e os “outros”. Pobre Palmeira! Infelizmente hoje estás apenas entre os “outros”. JAIR, Floripa, 13/03/11.

9 comentários:

R. R. Barcellos disse...

- É... e que Gaia no tolere... ou que, ao menos, não nos vomite!
- Abraços.

Luci disse...

Jair!
Neste início de outono o vizinho escritor mobilisou meus neurônios...Fiquei a meditar sobre sua vida pregressa de aviador,tal como Saint Exupéry...em "Terra dos homens"...Do alto do espaço vislumbram o planeta na sua pureza,e bem relacionando,os ávidos
cobiçosos da virgindade do solo pátrio, os avilta e, os céus nos seus mistérios dão o troco da conspurcação...haja visto as catástrofes que nos defrontamos.
Seu estilo literário,lembra Alejo Carpentier!Parabéns.Luci

Leonel disse...

Jair, belissima crônica, apesar do tema melancólico!
Sabe deus quantas "Palmeiras" tiveram este mesmo destino por este nosso Brasil afora!
A história que contastes é a mesma de outras cidades paradisíacas e bucólicas, engolidas pelo "progresso" dos destruidores de sonhos, que só veem o imediatismo do lucro. Depois de sugarem o que podem, como se faz com uma laranja, jogam o bagaço fora e seguem em busca de outra fruta.
Felizmente, apesar deles, sempre haverá alguém dotado dos dons da palavra e da síntese para resgatar estes momentos congelados nas dobras do TEMPO, e traze-los para serem apreciados pelos que não chegaram a TEMPO de vive-los.
Obrigado,meu amigo!

J. Muraro disse...

Bela elegia a uma cidade que, por sinal, conheço e gosto muito.

Chassot disse...

Estimado Jair Lopes,

vibrei com tua visita e teu elogio ao meu blogue. Isto é bom para que diariamente busca postar algo.

Visitei a tua editora e conheci tuas duas obras.

Estão na minha mira.

Com agradecimento e admiração

attico chassot

http://mestrechassot.blogspot.com

www.atticochassot.com.br

Anônimo disse...

A estação não é a de Palmeira,PR

Karine disse...

Olá Jair...

Esta foto é de Palmeira mesmo????


Sacie minha dúvida...

Abraços...

Karine

JAIRCLOPES disse...

Karine,
Eu não tenho certeza, tanto é que não coloquei legenda como sendo a Estação Ferroviária de Palmeira. Encontrei a foto na internet como sendo, mas, como conheci a Estação nos áureos tempos, sei que se parece muito, mas pode ser de outra cidade. Se alguém me fornecer uma foto "legítima" eu deleto essa. Abraços, JAIR.

Anônimo disse...

olá, não esta não é a estação de palmeira. anossa é bem diferente